UMA NOVA PROPOSTA DE CATEGORIZAÇÃO LINGÜÍSTICA

Mariangela Rios de Oliveira (UFF)

 

O papel da lingüística no ensino de língua

(Furtado da Cunha & Votre, 1998):

Lingüística descritiva Û lingüística aplicada

Formação do profissional de educação, através do conhecimento lingüístico que fundamentará sua prática pedagógica

Finalidades do ensino de língua materna:

Educacional: a língua como bem cultural;

Pragmática: domínio das variedades lingüísticas;

Preparação para ensino de língua estrangeira;

Acesso à produção literária nacional.

Os três tipos de ensino de língua:

Prescritivo: substituição de um padrão lingüístico por outro (culto); acentuação das noções de “erro” e de “prestígio”; o tipo de ensino mais tradicional em nossas escolas; ênfase na modalidade escrita literária;

Descritivo: demonstração do funcionamento da língua; dependência do desenvolvimento da pesquisa lingüística pura e aplicada; questão: que uso(s) descrever ou priorizar?

Produtivo: treinamento de habilidades lingüísticas em língua estrangeira e materna (leitura e escrita); ampliação das estratégias de uso; ênfase nas variedades de padrões e de recursos de que a língua dispõe.

 

A aplicação da lingüística

na solução de problemas

Há algumas décadas, informações ou resultados de análise lingüística são usados na resolução de problemas do mundo real;

Década de 50: surgimento do termo “lingüística aplicada”;

Lingüística aplicada: disciplina reconhecida, definida e complexa;

Complexidade: emergência de variados paradigmas de descrição e interpretação no âmbito da lingüística pura;

Crescente ênfase nos resultados de análise do discurso.

 

Abordagem funcionalista

no contexto da lingüística aplicada:

Capacidade adaptativa da linguagem; as formas da língua revelam parcialmente sua funcionalidade; observação dos usos lingüísticos em situação real de comunicação;

Gramática: sistema das estratégias consagradas no e pelo uso social; conjunto dos procedimentos que, na trajetória histórica das línguas, se ritualizam, passando a funcionar como convenção; estrutura parcialmente maleável/motivada e parcialmente arbitrária / convencional;

Gramaticalização: processo unidirecional cumprido pelas formas da língua, em que estratégias discursivas (escolhas fortuitas e pessoais) entram progressivamente no domínio gramatical (usos consagrados, sistêmicos).

Estágios do ciclo funcional (Givón, 1995):

Discurso > sintaxe > morfologia > morfofonologia > zero/discurso

. + motivação .................................................................... + convenção

 

Princípios e categorias

do funcionalismo lingüístico

Abordagem pancrônica: mescla sincronia x diacronia;

Discurso: uso potencial da língua em situação de comunicação; uma das origens dos usos gramaticais;

Categorização e expressão do mundo real - moldagem da expressão gramatical: pressões de uso e pressões cognitivas;

Língua: construída na interação; convencionalizada no trato social; de base experiencialista;

Relação homem/mundo Þ percepção do mundo/relação léxico e gramática;

Realismo experiencialista: transferência de domínios

domínio real (concreto)

domínio epistêmico (experiencial)

domínio lingüístico (abstrato)

Abstratização dos usos lingüísticos: Espaço > (tempo) > texto (Traugott e Heine, 1991);

Trajetória da língua: direção crescente ao mais abstrato (exemplificado na mudança de advérbios espaciais a temporais e a conjunções, como ocorre com o termo );

Perspectiva complementar: princípio de extensão imagética instantânea (Votre, 2000), para dar conta da estabilidade, da continuidade dos processos de transferência de sentidos; princípio do uniformitarismo (Labov, 1994);

Polissemia: distintas etapas de transferência de domínio de um termo na sincronia da língua (Achar uma maleta de dinheiro./ Achar a cidade limpa./ Achar que vai chover./ Achar errada sua opinião.)

Variabilidade lingüística: formas em competição, de distinta contextualização e motivação;

Natureza das estruturas lingüísticas: sempre estando, nunca sendo;

Tendência da escola: refrear a emergência da mudança lingüística;

Princípio de iconicidade: motivação função > forma, desdobrado nos subprincípios de: quantidade, proximidade e ordenação linear.

Princípio de marcação: distribuição de formas marcadas x não-marcadas, desdobrado nos subprincípios de: complexidade estrutural, freqüência e complexidade cognitiva.

 

Algumas pesquisas de orientação funcionalista

Motivações discursivas da voz passiva; emergência da ordenação sintática; regularização das estratégias de repetição; gramaticalização e discursivização de circunstanciadores; surgimento e uso do sujeito prototípico; ordenação verbo-sujeito; complementação verbal e integração sintática: orações substantivas, adverbiais e adjetivas; estruturas negativas; estratégias de modalização; fluxo informacional e topicalização; relevância discursiva, dentre outros.

 

Grupos que incorporam

a abordagem funcionalista no Brasil

Grupo de Estudos DISCURSO & GRAMÁTICA (UFRJ, UFF, UFRN, UERJ, UNI-RIO); Projeto de Estudo dos Usos Lingüísticos - PEUL/UFRJ; Grupo Gramática e Cognição (UFJF, UERJ, UFRJ); Projeto Gramática do Português Falado - NURC/BR.

 

As categorias morfossintáticas

na perspectiva gramatical

Categoria

Conceito geral: toda e qualquer classe ou conjunto de variada natureza;

Conceito lingüístico tradicional: entidade fechada, discreta, do tipo lexical ou gramatical, em que se distribuem os diversos níveis e constituintes da língua;

Cat. A @ Cat. B @ Cat. C

 

 

 

Conceito lingüístico funcional: classe de contorno irregular, cujo núcleo, formado pelo maior número de seus termos, mais firmemente contém os traços básicos e característicos do conjunto; é comum um termo encontrar-se à margem do perfil categorial nuclear, no espaço intercategorial ou mesmo “em trânsito”, migrando de uma classe a outra.

Cat. A Þ Cat. B Þ Cat. C Þ

 

 

 

 

 

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Categoria

Na acepção tradicional Þ unidade discreta, bem definida, absoluta

Na acepção funcional Þ unidade prototípica, relativa, maleável

Exemplos de categorias da língua:

Na morfologia: as classes de palavra (nome, verbo, advérbio, artigo...)

Na sintaxe: as funções oracionais (sujeito, predicado, objeto...)

Na fonologia: as classificações articulatórias (oclusivo, constritivo, lateral...)

Conseqüências do tratamento das estruturas lingüísticas a partir de categorias prototípicas (funcionais):

O trabalho com classes não fechadas.

A admissão de possível mudança categorial.

A maleabilidade na interpretação das classes.

A aceitação de que há termos mais ou menos ajustados ao paradigma categórico, ocupando posições distintas - mais nucleares ou mais marginais - nos limites da classe.

A possibilidade de se trabalhar sem medo com variadas e pouco definidas expressões lingüísticas

Localização, no ciclo funcional, das categorias morfossintáticas:

discurso > sintaxe > morfologia > morfofonologia > zero / discurso

Critérios de classificação categorial:

Semântico: significação

Sintático: ordenação

Morfológico: flexão

 

As categorias morfossintáticas

na tradição gramatical

fontes pesquisadas:

NGPC (Nova gramática do português contemporâneo, de C. Cunha e L. Cintra)

MGP (Moderna gramática portuguesa, de E. Bechara)

 

Na sintaxe

Sujeito

É o ser sobre o qual se faz uma declaração. (NGPC)

É o termo da oração que denota a pessoa ou coisa de que afirmamos ou negamos uma ação, estado ou qualidade. (MGP)

Problema: A partir das definições, como classificar os sujeitos mais abstratos, o sujeito indeterminado e, principalmente, a oração sem sujeito?

 

Predicado

É tudo aquilo que se diz do sujeito. (NGPC)

É tudo o que se declara na oração, ordinariamente em referência ao sujeito. (MGP)

Problema: Como entender as expressões tudo aquilo e tudo o que se declara? Processos, estados e eventos, significados veiculados no predicado, teriam o mesmo status funcional?

 

Objeto direto

É o complemento de um verbo transitivo direto. (NGPC)

É o complemento verbal não encabeçado por preposição necessária. (MGP)

Problema: Se o verbo é transitivo direto, por que a possibilidade de um complemento preposicionado? O objeto direto e o objeto direto preposicionado podem ocupar o mesmo espaço categorial?

 

Adjunto

Termo acessório que se junta a um nome ou a um verbo para precisar-lhes o significado. (NGPC)

Termo oracional de natureza acessória que especifica ou individua um nome ou pronome ou exprime uma circunstância adverbial. (MGP)

Problema: A distinção entre a natureza complementar e acessória das estruturas da língua é muito consensual? Por exemplo, como classificar a função de para a escola nos períodos: Para a escola, ele é um bom aluno. X O bom aluno foi para a escola. São constituintes situados no mesmo espaço categorial?

 

Na morfologia

Substantivo

É a palavra com que designamos ou nomeamos os seres em geral. (NGPC)

É a expressão com que designamos seres em geral - pessoas, animais e coisas. (MGP)

Problema: O que são seres em geral? Se estão distribuídos em pessoas, animais e coisas, como incluir nesse rol os substantivos abstratos, os verbos substantivados, dentre outros? Seriam coisas ou outra coisa?

 

Adjetivo

É essencialmente um modificador do substantivo. (NGPC)

É a expressão modificadora que denota qualidade, condição ou estado de um ser. (MGP)

Problema: Como se estabelece a modificação adjetiva? Identifica-se o adjetivo por sua localização no sintagma nominal ou por seu significado?

 

Verbo

É uma palavra de forma variável que exprime o que se passa, isto é, um acontecimento representado no tempo. (NGPC)

É a palavra que, exprimindo ação ou apresentando estado ou mudança de um estado a outro, pode fazer indicação de pessoa, número, tempo, modo e voz. (MGP)

Problema: Como classificar, a partir da definição exprime o que se passa, termos do tipo falar, correr, pensar, admitir, estar ou ser? Qual o conjunto mais verbal: o que indica ação ou o que se refere a estado e mudança de estado?

 

Advérbio

É, fundamentalmente, um modificador do verbo. (NGPC)

É a expressão modificadora que denota uma circunstância (de lugar, de tempo, modo, intensidade, condição, etc). (MGP)

Problema: O que é um modificador? Os variados sentidos da modificação adverbial encontram-se no mesmo espaço categorial? As formas adverbiais denotam sempre idêntica circunstância? Em que categoria incluir, por exemplo, a partícula integrante dos seguintes períodos: Ele já chegou para a reunião. X Ele é pontual, já seu irmão está sempre atrasado.?

 

TEXTOS PARA ANÁLISE

CORPUS DISCURSO & GRAMÁTICA

a língua falada e escrita na cidade de Niterói

Informante: Mariana (Ensino fundamental - 8ª série - 15 anos)

 

DESCRIÇÃO DE LOCAL - texto oral

E: tô aqui com a Mariana... que é estudante da oitava série... do colágio/ do colégio Quarto Centenário... daqui do município da Ponta do/ da ci/ do bairro da Ponta d’Areia... ela tem:: quatorze anos... eh:: Mariana... agora você vai me contar... qual é o lugar que você mais gosta aqui em Niterói... o lugar que você mais gosta de passear... de ir...

I: o lugar que eu mais gosto... é uma vila... o nome dela é Vila Pereira Carneiro... ela fica ali perto/ bem antes da rodoviária... né? eu gosto muito de lá porque:: meus amigos... a maioria mora lá... né? então:: assim... fica .../ sei lá... fica até legal pra mim... ficar saindo de casa todo dia mesmo olhá/ mesmo horário pra se encontrar com o pessoal no mesmo lugar... porque o pessoal daqui... sei lá... eles são muito estranhos... fofoqueiros... então:: não é boa influência... aí... eu vou pra lá... o pessoal de lá é legal à beça... e:: lá... sei lá... é um lugar assim mais arejado... mais fresco... tem uma pracinha lá dentro também boa à beça... aí todo dia a gente marca no mesmo horário com o pessoal (pra) ficar lá... diferente daqui... aqui também não tem espaço... o pessoal gosta muito de correr... ( ) tem gente que:: nessa idade não leva a sério esse negócio de brincadeira... diz que já está velho demais... mas... lá a gente se torna criança novamente... né? (aí) o pessoal gosta de correr... lá tem espaço... tem tudo que a gente precisa pra se divertir... e eu passo o dia todo lá... eu e a minha irmã...

E: você me disse que é uma vila lá... que tem uma entrada... uma saída... como é que é? me descreve...

I: ah:: lá é:: tem um mon/ é::/ são vá/ é uma vila enorme... né? só que nessa vila tem... minivilas... então você vai entrando em vários lugares... vai saindo em outras vilas... entendeu? aí ((riso)) é diferente... o maior barato... parece até um labirinto...

E: é?

I. é... e o meu tempo... assim... tempo vago eu passo lá... com os colegas... eu e minha irmã...

E: tá legal...

 

DESCRIÇÃO DE LOCAL - texto escrito

O lugar que eu mais gosto de ficar é na Vila Pereira Carneiro, isso porque os meus amigos moram lá e lá é um lugar fresco, espaçoso e calmo para se brincar e conversar. Aqui onde eu moro, o pessoal é bastante fofoqueiro então eu prefiro passar meus horários vagos, lá na vila.

Informante: Priscila (Ensino médio - 3º ano - 17 anos)

RELATO DE EXPERIÊNCIA - texto oral

I: bom... eu ia contar... do que aconteceu na segunda-feira... né? que foi quando eu descobri que (eu) tinha passado pra UFF... que... foi o seguinte... eu estava na casa da minha amiga... aí... meu namorado ligou lá pra minha casa... avisando que já tinha saído a Folha Dirigida... com o resultado... só que ele ficou sem graça de comprar... né? de repente meu nome não estava lá... ele ia ficar muito sem graça... aí liguei pra casa... minha mãe avisou isso... falou “oh... ele ligou dizendo que:: já saiu...” sa/ aí eu sai procurando... né? fui em tudo quanto é... banca de jornal... aí sempre ouvia a mesma... mesma resposta... né? “não... filhinha... é só amanhã...” aí eu... “tá bom...” aí ia pra um... “tem a Folha Dirigida?” “não... filhinha... é só amanhã...” “valeu...” aí eu fui pra casa da... da minha tia... porque eu tinha que pegar meu irmão... chegando lá... fu/ passei na banca em frente da casa dela... aí “tem a Folha Dirigida?” aí o cara “não... filhinha... é só amanhã... oh... mas tem um cursinho de vestibular aqui que está vendendo...” aí... saí correndo... fui pra lá... né? cheguei lá “tem a Folha Dirigida?” “acabou tudo...” eu falei “caramba... putis... não vai/ não é hoje que eu vou saber... né? ainda tem mais um dia de... expectativa... “ah... mas tem uma aqui... se você quiser ver...” (eu) “ah... eu quero...” nunca tinha entrado no cursinho... entrei lá... aí o cara... “eh... qual é a sua carreira?” falei “publicidade... procura aí Priscila M...” aí o cara... olhou assim... estava escrito Priscila T... e embaixo estava Renata... Rodrigo... Rafael... estava tudo com a letra erre já... eu falei “pô... acabou... não passei... agora é só esperar (pro) Fundão mesmo...” aí ele “espera aí... como é que é o seu nome mesmo?” aí eu... falei “Priscila M...” aí ele viu... tinha outra coluna... aí estava lá o meu nome... ah... eu fiquei tão feliz... pô... sessenta e sete pontos no final... precisava de sessenta pra entrar... foi ótimo... eu cheguei na casa da minha tia pulando... né? pô... “passei... eu consegui...”

E: berrando ( )

I: ah... pô... no elevador... eu quase que eu dei um beijo no porteiro... no::ssa ((riso de E)) tão boba que eu estava...

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA - texto escrito

Era uma segunda-feira e eu tinha ido a casa de uma amiga, quando decidi ligar para casa para avisar minha mãe aonde eu estava. Então descobri que já tinha saído o resultado da 1ª fase da UFF e saí a procurar em todas as bancas de jornal pela “Folha Dirigida”. Acontece que nenhuma banca tinha e quando já estava certa de que só saberia o resultado no dia seguinte um jornaleiro comentou que estavam vendendo o jornal num cursinho de pré-vestibular ali por perto. E foi com a maior cara-de-pau que eu entrei e fui dizendo meu nome e carreira. Mas meu nome não estava lá e por um segundo eu perdi todas as esperanças. Foi então que um homem pediu que eu repetisse meu nome e me mostrou o jornal e eu estava lá só que na coluna do lado e com isso eu voltei para casa radiante.

 

Referências bibliográficas

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro : Nacional. 1987.

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro : Nova Fronteira. 1985.

FURTADO DA CUNHA, Ma. Angélica & VOTRE, Sebastião. A lingüística funcional no contexto da lingüística aplicada. IN: PASSEGI, Luís (org). Abordagens em lingüística aplicada. Natal : UFRN, 1998, p. 55-82.

GIVÓN, Talmy. Functionalism and grammar. Philadelphia : John Benjamins, 1995.

LABOV, William. Principles of linguistic change. Vol. 1: Internal factors. Oxford : Blackwell, 1994.

TRAUGOTT, Elizabeth & HEINE, Bernd. Approaches to grammaticalizatin. Vol 1: Focus on theoretical and methodological issues. Amsterdam : John Benjamins, 1991.

VOTRE, Sebastião. Continuidade e mudança na língua portuguesa no Brasil. IN: SILVA, José Pereira da (org). Cadernos do CNLF - série IV, nº 2. Rio de Janeiro : UERJ/ABF, 2000, p. 71-88.

VOTRE, Sebastião & OLIVEIRA, Mariangela (org). Corpus Discurso & Gramática - a língua falada e escrita na cidade de Niterói. Niterói [Inédito], 2000.