ACEITAÇÃO E /OU REJEIÇÃO DA CULTURA
BRASILEIRA NA LITERATURA INGLESA DO SÉCULO XX

Suely Rodrigues Andrade

 

O trabalho de pesquisa Aceitação e / ou Rejeição da Cultura Brasileira na Literatura Inglesa do século XX , que é parte do projeto, O Brasil Sob o Olhar Inglês na Ficção do Século XX, da orientadora, professora Doutora Maria Cristina Stark Gariglio, teve por objetivo analisar e comparar as manifestações de aceitação e / ou rejeição da cultura brasileira, descritas em algumas obras de literatura inglesa do século XX. Dentre as obras analisadas, algumas são de cunho ficcional e outras narram experiências dos próprios autores quando de passagem pelo Brasil. Um subseqüente trabalho crítico foi feito tomando-se por base a noção errônea , que alguns desses autores ingleses contemporâneos têm do nosso país e da nossa cultura. Foi tomado como obra de referência o livro BRAZILIAN ADVENTURE, do jornalista inglês Peter Fleming, e a partir de obras de outros autores foi feita uma análise comparativa. Este trabalho não pretendeu levar em conta todos os postulados teóricos relacionados ao tema da pesquisa, posto que se trata de um campo muito amplo.

No livro BRAZILIAN ADVENTURE, o autor Peter Fleming narra uma aventura autobiográfica. Um anúncio publicado em THE TIMES, em abril de 1932, foi o detonador de sua aventura por terras brasileiras. Levado pela curiosidade, ele se junta a um grupo numa expedição aos rios do Brasil central, com a intenção principal de rastrear o paradeiro do Coronel Fawcett - um explorador inglês desaparecido no interior do Mato Grosso, no ano de 1925. Os relatos do autor baseados na sua própria vivência, espelham a sua percepção da realidade brasileira dos anos 30, nos locais de sua passagem. Fleming pôde apreciar as belezas naturais do nosso país e ter um contato diário com o nosso povo por um longo período. Pôde também presenciar as grandes diferenças sociais e o descaso político de nossas autoridades. A política aliás, na visão de Fleming, é a ruína do Brasil.

A passividade do povo, a ineficiência, o descaso e os constantes atrasos incomodam o jornalista inglês ao extremo. Ele se irrita, sofre e se desgasta pela não aceitação de uma cultura que difere tanto da sua própria. A falta de pontualidade é citada por ele como uma característica nacional. Mais adiante ele vai dizer que o tempo não significa nada para o brasileiro, que não tem o menor valor para ele. A experiência do autor na selva levou-o a desmitificar muito do que ele havia ouvido sobre tais lugares , seus nativos e animais selvagens, perigos insondáveis. Saído ileso de sua aventura , ele conclui que talvez o único perigo real fossem as piranhas e ironiza ao comentar sobre os ataques de carrapatos, que estes sim, seriam um dos muitos perigos do interior do Brasil.

Sabemos que a maioria dos estrangeiros que vêm ao Brasil pela primeira vez, trazem no imaginário idéias pré - concebidas, muitas das quais reforçadas pelos mitos que cercam tudo que é novo ou desconhecido. Esses mitos podem causar terror, medo, desconfiança, curiosidade e até mesmo desejo. Wesley Bright, personagem de um conto de William Boyd, Never Saw Brazil, é um desses que tecem fantasias maravilhosas a respeito de como seria viver nos trópicos brasileiros, apesar de nunca ter posto os pés aqui. Wesley é um inglês insatisfeito com a sua vida pacata e rotineira e com o seu noivado sem paixão. Como subterfúgio ele vive imaginando ser outra pessoa, que nos seus devaneios é um brasileiro, sempre cercado por mulheres belas e sensuais. Ele vive sonhando com um tipo de vida mais relaxado, descompromissado, sem grandes preocupações com o tempo, horário, obrigações, e ele espera encontrar isso no Brasil. Portanto, o que para o jornalista inglês Fleming é um tormento, para Wesley significa o paraíso, ambição de vida. Wesley, que diferentemente de Fleming, nunca esteve no Brasil, rechaça o comportamento britânico e sonha com o “modus vivendi” do brasileiro.

Por falta de informação e conhecimento da cultura brasileira, nosso herói se mete numa aventura desastrosa. Tentando realizar um pouco de suas fantasias brasileiras, Wesley tem um caso com uma garçonete de tipo latino que, vale ressaltar, ele julga ser portuguesa. Uma grande frustração toma conta dele ao perceber que ela não corresponde às suas expectativas, expectativas essas baseadas no estereótipo da mulher brasileira: meiga, quente e sensual. Seu sentimento de frustração aumenta, ao descobrir que sua fantasia “brasileira - portuguesa” é na verdade, italiana. É curioso observar esse mito em volta da mulher brasileira e ao mesmo tempo, a confusão que Wesley faz entre as mulheres das duas nacionalidades, sem observar as devidas diferenças culturais.

Uma das obras escolhidas para esta pesquisa, apesar de não ser obra de literatura inglesa, foi THE TESTAMENT, livro do autor americano de bestsellers, John Grisham. Assim como na obra de Fleming, a maior parte do texto de Grisham se passa na região norte do Brasil. Nate, um advogado da Virgínia, em recuperação do alcoolismo e dependência química, é escolhido para sua última missão - encontrar Rachel Lane. Herdeira de uma fortuna de onze bilhões de dólares, Rachel é missionária e vive numa aldeia de índios nas selvas do Brasil. Por isso, Nate é requisitado a viajar ao Pantanal e ir em busca de tal herdeira. Logo num primeiro instante, ele mostra sua preocupação com piranhas, jibóias, jacarés e canibais, no que ele é prontamente tranqüilizado por seu colega Josh. A apreensão e o medo do desconhecido logo são substituídos substituído pelo que ele imagina ser uma boa oportunidade para se afastar de tudo e todos que o incomodam. Nate, como muitos outros, tem idéias pré - concebidas a respeito de países do terceiro mundo, e se espanta ao saber que há telefones em Corumbá, ao que Josh acrescenta que as telecomunicações estão em grande expansão no Brasil (ano de 1999).

Quando Nate toma o avião de São Paulo para Campo Grande, ele repara que a maioria dos passageiros está lendo os jornais do dia e que esses jornais são tão bons e modernos quanto os americanos. Sua observação em seguida é de que talvez o Brasil não fosse tão atrasado quanto ele pensava e que essas pessoas podiam ler. Vemos aqui reforçada a idéia de que o Brasil é um país atrasado e de analfabetos, não que em parte isto não seja uma realidade, mas não nessa proporção como é vista pelo estrangeiro que espera encontrar isso. Mesmo Fleming, no início do século, mostra surpresa e admiração ao andar por São Paulo e constatar que a cidade não é como muitos ingleses acreditavam ser, porém muito mais evoluída.

Os comentários de Nate sobre a pontualidade e de como os brasileiros dispõem do tempo, em muito se assemelham aos de Fleming, porém com um tom menos crítico. Ele assume que, estando no Brasil não há pressa, “os relógios andam mais devagar, nada é urgente, o tempo não é crucial.” Ele cogita até mesmo tirar o relógio do pulso. Durante seu percurso pelo rio Paraguai, ele observa seus companheiros de viagem que cantam ao som de um violão enquanto o barco sobe lentamente o rio. Nate pondera que esses homens simples vivem o momento como se fosse eterno, sem se preocuparem com o amanhã ou com o que irá acontecer no próximo ano. Ele admite invejá-los.

Passarei agora a uma parte do trabalho direcionada à linguagem e ao contexto cultural. Em várias das obras analisadas, todas no texto original, em inglês, encontram-se palavras e expressões em português. Os autores as mantiveram sem tradução para a língua inglesa por várias razões. Fleming justifica essa atitude usando de três argumentos. Primeiro, ele considera que existem palavras como ‘rapadura’ e ‘mutum’, que denotam coisas desconhecidas fora do Brasil e por isso impossíveis de traduzir. Segundo, existem palavras das quais a tradução literal seria, por uma razão ou por outra, inadequada.

Ele exemplifica com a palavra ‘urubu’, da qual o equivalente em inglês “vulture”, segundo ele, não daria a idéia precisa do animal. Terceiro, apesar de palavras como ‘jacaré’ e ‘arara’ serem perfeitamente traduzíveis, quando ele e seus colegas da expedição conversavam, nunca as traduziam, preferindo assim ao escrever seu depoimento, mantê-las da mesma forma. Ele acrescenta que ao final do livro, há um glossário, para que os leitores possam consultar o significado de tais palavras.

Paulo Ronái em seu livro A TRADUÇÃO VIVIDA explica “... podemos chamar de holófrases, palavras que designam noções peculiares a uma civilização, sem correspondente nos demais ambientes culturais. Disto seriam exemplos..., em português, saudade; em brasileiro, jeito e sertão - palavras essas que , por mais que tentemos traduzir, recorrendo a todos os circunlóquios possíveis, chegamos à conclusão de só haver exprimido parte do seu conteúdo complexo. Tais palavras em geral acabam impondo-se sob sua forma original aos idiomas cultos, que, na impossibilidade de forjarem seus equivalentes, as incorporavam ao próprio vocabulário”.

Na obra de John Grisham, THE TESTAMENT, o autor manteve algumas palavras no original português, exatamente pela razão explicada por Ronái, palavras estas como ‘pantaneiro’ e ‘cafezinho’. E talvez pela mesma razão de Fleming, ele não traduziu ‘jacaré e ‘capivara’.

 

Referências Bibliográficas

Fontes primárias

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Fontes secundárias

ATÉ PARECE O BRASIL. Veja. Rio de Janeiro : Abril, 1691: 14 . março. 2001. p. 110.

SILVA, Adalberto Prado et alii. Novo Dicionário Brasileiro. 6ª ed. Ver. São Paulo : Melhoramentos, 1970.