MOEMA: MITO, MONSTRO E MÁSCARAS

Martha Rocha Guimarães

 

Moema, a protagonista da peça rodriguiana, é a personagem correspondente a Electra nos modelos gregos, tendo seu correspondente mais próximo em Lavínia, personagem de Mourning Becomes Electra (1931) do norte-americano O’Neill.

Como as Electras da tragédia grega ou a Lavínia de O’Neill, Moema, de Senhora dos Afogados (1947), espera por algo. Entretanto, a expectativa da filha de Misael é totalmente singular. Diferente das heroínas gregas, ela não conta com a ajuda de seu irmão para realizar seus desejos. Tampouco espera, como faz Lavínia, que o irmão chegue para que as providências sejam tomadas. A Electra rodriguiana tem um projeto bem definido e sempre toma a iniciativa de lutar para sua execução. Não precisa de seu irmão para agir, embora não se prive de usar quem quer que seja para alcançar seus objetivos. Se as outras Electras amam um pai morto e detestam uma mãe criminosa, Moema deseja um pai vivo e odeia sua mãe que é sua principal vítima.

 

MOEMA MITO

O nome Moema é de origem tupi, evocando um signo de brasilidade. Alude à heroína do poema Caramuru de Santa Rita Durão, personagem que se lançou ao mar para alcançar a nau que levava o homem que amava, nadando até a exaustão e morte, embora esse tenha levado consigo outra mulher, sua esposa Paraguaçu - formando-se, assim, o que chamamos de Paradigma edípico: duas mulheres, um mesmo objeto de desejo. Em Caramuru, a personagem Moema protagoniza um drama de amor e rejeição, sem medir conseqüências.

De forma similar, Moema de Senhora dos Afogados, - embora nutra um amor incestuoso, e por isso proibido, por seu pai - é rejeitada por Misael, que é casado com D. Eduarda. Além disso, é preterida por ele, em relação as suas irmãs e, como a Moema de Caramuru, também não mede conseqüências para a realização de seus desejos.

Em relação à comparação entre as personagens Moema de Nelson Rodrigues e de Santa Rita Durão, Carlinda Nuñez ainda acrescenta uma outra referência importante relacionada ao mito indígena de Yara:

No caso de Moema, torna-se ela, por efeito da mesma lavra que idealiza Paraguaçu, o protótipo da amante indesejada, capaz de assumir, no extremado da paixão, a fúria da Yara mítica (...).

Na construção da personagem rodriguiana, aspectos do mito de Yara se superpõem à imagem plangente que peculiariza a Moema da tradição indianista. (NUÑEZ, 2000).

A referência ao mito de Yara se mostra relevante, visto que ao assumir o papel de amante rejeitada, a Moema rodriguiana é tomada pela fúria, aproximando-se em suas ações da Yara mítica, que é capaz de atrair suas vítimas para a profundeza das águas, afogando os que atravessam o seu caminho.

Sendo assim, os aspectos do mito de Yara se sobrepõem à imagem evocada pela Moema indígena de Caramuru, formando uma outra face da Electra rodriguiana. Uma face dupla, que demonstra o poder e a fúria dessa personagem.

Uma outra referência possível, em relação a personagem Moema, seria sua aproximação às características de Iemanjá, da mitologia iorubana. Segundo o Mito, O filho de Iemanjá, Orungan, apaixonado pela mãe, tentou violentá-la, ela o repudiou, fugindo pelos campos, mas o filho, movido pelo desejo incestuoso, tentava alcançá-la. Na fuga, Iemanjá cai no chão e do seu corpo começam crescer quinze deuses, que a tornam poderosa. O seu poder tornou-se então imenso, pois os deuses eram seus descendentes e estavam todos ao seu dispor, para trazer ao mundo as maiores alegrias ou as maiores calamidades. (TAVARES, 1961)

Nos seus mistérios e sortilégios, a rainha dos mares pode confundir e enganar a todos. Iemanjá dispõe da sorte de todos e faz de uma cidade do mar a capital de seu reino.

De forma similar, ao mito de Iemanjá, Moema domina sobre os de sua casa, dispõe de todos para os seus projetos, dissimula, engana e reina no mar de Senhora dos Afogados. E, se Iemanjá tornou-se rainha do mar e mãe dos deuses devido ao desejo incestuoso de seu filho, Moema torna-se a Senhora dos Afogados movida pelo amor incestuoso que nutre pelo pai.

Ainda em relação ao campo de significação que o nome Moema evoca, mostra-se outro fato interessante, destacado por Carlos Alexandre Moreno, em sua tese sobre Senhora dos afogados.

Se jogarmos com o significante, observaremos que Moema é o único nome com a mesma letra inicial de Misael, o pai, fundamento do amor que radicaliza seu personagem. Mais e melhor: lendo Moema às avessas, encontramos AME-O, M. O anagrama desvela o imperativo de amar Misael, contra tudo (rejeição, interdição de incesto), contra todos (mãe, irmãs, opinião pública). (MORENO, 1996).

Além de chamar atenção para o anagrama do nome Moema, que já revelaria o destino da personagem, Moreno ainda encontra outro significante interessante, que revelaria aspectos da personalidade de Moema:

O significante nominal pode levar-nos a uma outra leitura não excludente, antes complementar da primeira: E , ou seja, pela maldade que caracteriza suas ações, a primogênita de Misael tritura (como faz a pedra do moinho) as pessoas (coisificadas como grãos) que lhe parecem obstáculo ao desejo. (MORENO, 1996).

Essas leituras mostram que no nome Moema podem ser encontradas uma gama de significações e articulações semânticas que revelam e compõem aspectos importantes da construção dessa personagem.

Essa última citação chama atenção para o aspecto monstruoso da personalidade de Moema, que se evidencia pelos seus atos cruéis e pelo seu poder destruidor. Impelida por seu desejo incestuoso, a filha de Misael não hesita em aceitar um programa de ação que implica homicídios, traição e vileza.

 

MOEMA MONSTRO

Moema, como uma , tritura tudo o que lhe parece obstáculo para a realização de seu desejo, as pessoas são reificadas, transformadas em grãos, é , a maldade caracteriza suas ações. Assim, se mostra mais uma face de Moema, a face monstruosa.

Segundo Jean Chevalier, os monstros representam uma ameaça exterior e mostram também um perigo interior, são como formas horríveis de um desejo pervertido. Eles procedem de uma certa angústia, da qual são as imagens. Pois a angústia é um determinado estado compulsivo, composto de duas atitudes diametralmente opostas: a exaltação desejosa e a inibição amedrontada. (CHEVALIER, 1998.)

De forma similar, a monstruosidade de Moema é evidenciada pelo seu desejo incestuoso e pervertido - no sentido do amor/paixão -, pelo pai, fato que gera sua angustia, refletida em suas ações ameaçadoras, por não ser correspondida. O estado compulsivo, a angústia de Moema, são compostos, tanto pela atitude de idealização, ou exaltação desejosa, da figura paterna, quanto pela inibição amedrontada, manifestada pela atitude humilde e doce perante o pai: Muito humilde e doce, Moema substitui as duras botinas do pai por outro calçado macio. (Senhora dos Afogados, p. 275)

Etimologicamente, a palavra monstro deriva-se do verbo latino mostrare, que significa mostrar, tornar evidente. Sendo assim, Monstro é aquele que se mostra. Mostra ou torna evidente algo anômalo, que chama a atenção por se diferenciar do que é considerado normal. O dicionário ainda define monstro como o indivíduo que causa pasmo, pessoa cruel ou horrenda. Em oposição ao belo, pode-se estabelecer a relação em que belo seria algo para ser visto, enquanto que monstro seria aquilo que se mostra.

No caso de Moema, seu caráter monstruoso não se relaciona com seu aspecto físico, mas com suas atitudes cruéis. Para ser a única mulher junto a Misael, Moema tem de eliminar as irmãs e conseguir que sua mãe se torne adúltera, o que justificaria e poderia resultar em sua morte . No início da peça, as duas irmãs de Moema já estão mortas: Primeiro Dora, depois Clarinha. (Senhora dos Afogados. p. 262) Após muita especulação, Moema esclarece, no último quadro do segundo ato, como e por que as irmãs morreram: Afoguei as filhas que preferias e acariciavas, enquanto eu sofria na minha solidão... (Idem. p. 304) Na mesma cena, explica que não havia mais vestígios de Dora e Clarinha: Não existem mais retratos, que eu destruí; nem as roupas... Queimei a memória delas... (Idem. p. 305) e ainda revela por que escolheu matar as irmãs por afogamento: Os afogados têm olhos brancos e boca obscena!... Não se pode amar um afogado... (Idem. p. 278) Moema planejou e escolheu com cuidado o tipo de morte de suas vítimas, de forma que não restasse dessas nenhum vestígio, nem lembrança, nem amor.

O poder monstruoso de Moema aumenta, quando, sem saber, une-se ao noivo no mesmo projeto de vingança. Ele entra na casa dos Drummond para atingir Misael e Moema o usa como instrumento para a perdição de sua odiada mãe. Devido às maquinações simultâneas de Moema e do Noivo, D. Eduarda acaba por se deixar envolver totalmente e, no desespero de sua carência, cede a atração que sentia pelo noivo de sua filha, traindo seu marido. Assim, Moema passa a provocar o pai para que esse elimine a adúltera e o convence a punir sua esposa, sugerindo ainda como a mãe deve ser atingida:

E por que não a castiga nas mãos? As mãos são mais culpadas no amor... Pecam mais... Acariciam... o seio é passivo; a boca apenas se deixa beijar... O ventre apenas se abandona... Mas as mãos, não... São quentes e macias... E rápidas... E sensíveis... Correm no corpo... (RODRIGUES, 1981. p. 308).

Induzido por Moema, Misael amputa as mãos de D. Eduarda e a deixa sozinha na praia, onde morre por hemorragia. A mãe de Moema tem uma morte lenta e torturante, além de ter sido humilhada pela filha em seus últimos momentos de vida, acusada de ser adúltera e prostituta. Moema destrói sua mãe de forma física e moral.

Moema também leva o irmão Paulo a assassinar o amante da mãe (Como Lavínia faz com Orin), provocando a explosão do amor do filho que se sente substituído pelo outro:

Neste momento, Paulo corre e apunhala o noivo pelas costas. O noivo se projeta pela escada. Tudo absolutamente imóvel. Paulo petrificado. Moema com seu rosto cruel. (RODRIGUES, 1981. p. 322. O grifo é nosso).

Depois de assassinar o noivo, Paulo enfrenta seu desespero maior quando soube da morte da mãe. O irmão de Moema passa a se atormentar imaginando sentir o ódio de D. Eduarda por ter apunhalado seu amante. Não encontrando mais razão para continuar existindo sem o seu objeto de amor, sua mãe, Paulo encontra no suicídio sua única saída e no mar a esperança de purificação.

Mesmo consciente do desejo suicida de seu irmão, Moema não faz nada para impedir a ação de Paulo, pelo contrário, parece apoiar sua decisão:

Moema (sôfrega) - Queres o mar?

Paulo (maravilhado) - O mar

Moema (doce) - O mar te chama. (RODRIGUES, 1981. p. 326).

Para concluir a realização do programa de se tornar a única mulher da casa, Moema livra-se ainda da avó, com frieza e monstruosidade, deixando-a morrer de inanição, submetendo-a ao descaso e a uma morte torturante.

Eu lhe dava de comer e de beber, mas há muitos dias que eu me esqueço... E pouco a pouco ela foi perdendo as forças... Hoje, de manhã, deixou de respirar... (RODRIGUES, 1981. p. 330).

É importante ressaltar, até aqui o requinte e as diversidades sádicas das mortes praticadas ou induzidas por Moema, pois constituem um traço marcante que caracteriza sua monstruosidade.

Por fim, ocorre a última morte na casa dos Drummond, a de Misael. Embora seja a única morte que, com certeza, Moema não desejou, de certa forma, foi causada por ela. Perdendo o controle da situação que gerou, Moema não percebe que aquilo que escapa ao seu desejo traz conseqüências funestas: Misael, ao se arrepender de ter matado a esposa, culpa a filha por o ter induzido ao assassinato. Talvez devido ao remorso, o patriarca dos Drummond sofre um ataque cardíaco.

 

MOEMA MÁSCARAS

Conforme pode-se perceber, até aqui, Moema apresenta-se sob diferentes faces e de diversas formas. Ao mesmo tempo que se aproxima das Electras gregas e de Lavínia, personagem de O’Neill, também revela uma outra face mítica, sobrepondo aspectos dos mitos de Yara e Iemanjá à imagem evocada pela Moema indígena de Caramuru. Além disso, revela-se monstro, por assumir as características de um mar devorador.

Por essa razão, pode-se dizer que Moema se constrói por um conjunto de máscaras simbólicas, postas e sobrepostas, que não escondem, mas revelam e formam sua personalidade. Utilizando-se de diversas máscaras, Moema impõe sua vontade, assustando e causando terror em suas vítimas. Sendo essas máscaras simbólicas, invisíveis, constituem-se mais perigosas, pois como não são vistas, só podem ser percebidas. No caso de Moema, suas vítimas só percebem a espécie de máscara utilizada pela personagem, quando essa já agiu, quando se vêem sem saída, enroladas em sua teia.

Entretanto, o uso de máscaras não é inócuo para quem as usa. Moema, tendo desejado captar as forças de suas vítimas, lança-lhes as ciladas de suas máscaras. As máscaras e seu portador se alternam e a força vital que está condensada dentro da máscara pode apoderar-se daquele que se colocou sob sua proteção. (CHEVALIER, 1998.) Moema identifica-se a tal ponto com suas máscaras, que não consegue mais desfazer-se delas, ela se transforma nas imagens representadas. Moema é, portanto, Mito, Monstro e Máscaras.

 

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário etimológico da mitologia grega. Petrópolis : Vozes, 1991.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro : José Olympio, 1998.

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FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. XXI. Rio de Janeiro : Imago, 1969.

KRISTEVA, Julia. Sol negro. Depressão e melancolia. Rio de Janeiro : Rocco, 1989.

MAGALDI, Sábato. Introdução. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo/vol.2: Peças Míticas. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1981.

MORENO, Carlos Alexandre Carvalho. Electra em preto e branco: leitura semiológica de Senhora dos afogados. Rio de Janeiro : UFRJ, Fac. de Letras, 1996. tese de doutorado em Literatura Comparada. 215 p.

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RODRIGUES, Nelson. Senhora dos Afogados. Teatro completo/vol.2: Peças Míticas. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1981.

SÓFOCLES. Electra. Traduzido por Irmã Maria da Eucaristia Daniellou. Rio de Janeiro : USU, s.d. 45 p.

TAVARES, Odorico. Bahia. Imagens da Terra e Povo. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira. 1961.

TUCHERMAN, Ieda. Breve história de corpo e de seus monstros. Lisboa : Vega, 1999.