O Encontro de A. S. Byatt com o Amazonas
Um Formigueiro na Mansão Vitoriana
Maria Cristina Gariglio Stark (UERJ)
O olhar vê, a lembrança revê, a imaginação transvê.” (Manoel de Barros)
Uma visão descuidada da parte dos estrangeiros – principalmente dos norte- americanos -- nos tem sido oferecida recentemente. Autores estrangeiros demonstram uma total ignorância a respeito da geografia e da cultura brasileira que procuram representar em filmes cujas histórias se passam num Brasil onde as pessoas falam Espanhol (Stigmata), ou onde podem dar uma volta saindo de carro do Copacabana Palace no Rio de Janeiro para chegar em poucos minutos ao Pelourinho em Salvador , Bahia, onde estacionam para provocar o riso do telespectador brasileiro (Orquídea Selvagem). Em outro filme, Wonderland, um rapaz brasileiro fala um belíssimo Portunhol ao convidar uma garota para ir à praia na cidade de São Paulo.
Essa ignorância, ou talvez negligência óbvia em relação a nosso país pode se tornar irritante depois do riso espontâneo que também pode nos conduzir a um sentimento de superioridade diante da estupidez estrangeira.
Em literatura não conheço caso algum que se equipare de forma tão chocante a esses do cinema. As obras que originaram meu interesse pelo olhar do estrangeiro sobre a realidade brasileira foram, no início, dois romances da era Vitoriana no século dezenove nos quais os protagonistas têm de passar temporada no Brasil por razões nada nobres. Em Vanity Fair (1847-48), de William Makepeace Thackeray, Lord George Gaunt espalha rumores sobre sua viagem ao Rio de Janeiro. Mas logo, o leitor é informado que ele nunca esteve no Brasil. “Brasil era St. John’s Wood” e “o Rio de Janeiro uma cabana cercada por quatro paredes; e George Gaunt é confiado a um guarda que o condecorou com a Ordem da Camisa de Força.” (THACKERAY, W. M., 1994, p. 455). Na verdade, devido a seu comportamento estranho, ele é enviado para um manicômio nas vizinhanças de Londres. O leitor fica sabendo que ele se encontra internado no manicômio de St. John’s Wood quando lê que seu pai, Lord Steyne era perseguido pelo pressentimento de que o filho poderia herdar a maldição da família, que era a loucura. O leitor brasileiro só não compreende o que teria levado o autor a equiparar o Brasil do século XIX a um manicômio, mesmo que em linguagem figurada.
No romance Tess of the D’Urbervilles (1891), de Thomas Hardy, Angel Clare, o homem que ama e se casa com a heroína Tess, que foi violentada, passa uma temporada no Paraná onde é acometido por uma febre tropical antes de voltar à Inglaterra para tentar recuperar sua esposa então vivendo com Alec, o homem que a violentara. Logo que Angel soubera que Tess fora estuprada, não lhe fora possível aceitá-la como sua esposa, embora tivessem acabado de se casar. Deixou a casa e saiu andando ao léu em desespero até ver um anúncio que pregava “grandes vantagens do Império do Brasil como campo para o emigrante agricultor. Oferecia-se terra em termos excepcionalmente vantajosos. O Brasil atraiu-o, de certa forma, como uma idéia nova.” (HARDY, T., 1983, p. 333) No Brasil, mais precisamente no Paraná, Angel Clare conseguiu – não se sabe exatamente como –entender a condição de abandono e desamparo de sua esposa ao ser violentada. Volta para casa inteiramente livre de sua intolerância. Sua aparência, a de um ser destruído pelas intempéries do clima, deixava ver “o esqueleto atrás do homem e quase um fantasma atrás do esqueleto.” Tess fica sabendo do sofrimento do marido que, com outros agricultores ingleses, fora enganado pelas promessas do governo brasileiro e pela suposição de que os métodos ingleses de arar a terra e semeá-la resistiriam às intempéries que os surpreenderam em terras brasileiras (p. 348). O leitor comum brasileiro suspeita de confusão entre Paraná e Pará devida a descrição das condições climáticas que o remetem para a região Amazônica ao invés de para o frio do Sul.
Num artigo publicado recentemente – 28 de abril de 2001 – no “Prosa & Verso”, Suplemento Literário do jornal O Globo, Wilson Martins (MARTINS, W., 2001, p. 4) tenta esclarecer essa situação apresentando “discussões em torno do Brasil espelhado em Tess D’Urbervilles. Segundo o autor, quando Hardy decidiu estender seu romance ao Brasil, “escolheu o Paraná, de terras doces e de natureza quase toda equilibrada, para representar aquela América mais hostil ao Europeu civilizado.” Técnicos ingleses, como o engenheiro Thomas P. Bigg-Wither, chegaram a retificar visões generalizadas da natureza tropical e hostil do Brasil, ao descrever minuciosamente o Paraná da época carbonífera. Embora sua descrição não apresente o Paraná como um pedaço do paraíso, ela não justifica a escolha de Hardy para os sofrimentos exagerados de Angel Clare. Gilberto Freyre, por sua vez, acreditava que Thomas Hardy teria feito confusão do Paraná com o Pará, ou quem sabe, como cita Wilson Martins, “com Pernambuco e com o Pará a deformarem esse Paraná de invenção numa terra tropical. /.../ que rigorosamente não existe. /.../ Um Paraná de febres. Um Paraná de sol quase igual ao da África. Um Paraná de chuvas amazônicas.” Para Freyre, “houve erro de geografia por parte de Hardy.” (FREYRE, G., 2000). Mas, ao que parece, um debate classificado de amável por Wilson Martins que opôs Temístocles Linhares a Gilberto Freyre (“O Paraná, Hardy e o Sr. Gilberto Freyre”, O Jornal, Rio, 16/01/44) veio esclarecer que “o erro foi dos “críticos meticulosos” que imaginaram um Paraná como deveria ser e não como é. Após transcrever no original as passagens do romance de Hardy, Temístocles Linhares afirmava que lendo e relendo o trecho que descrevia o sofrimento de Angel Clare, não entendia porque ele não podia se ajustar às regiões próximas de Curitiba, “às colônias inglesas que haviam se fixado por aqui, principalmente em Assungui, um dos maiores núcleos ingleses, e cujas terras se apresentam tantas vezes semelhantes às dos trópicos, invadidas de febres e miasmas, nem sempre benignas àqueles moços louros e pobres vindos do norte da Europa.” Parece que, quando fez a crítica à passagem em que Hardy descreve o Paraná no romance Tess of the D’Urbervilles (1891), Gilberto Freyre não conhecia ainda o livro de Thomas P. Bigg-Wither, Pioneering In South Brazil (Londres, 1878). Mais tarde, o autor brasileiro escreveu que era muito interessante o livro do engenheiro inglês, especializado em construção de estradas de ferro, e também “um entusiasta da colonização do Paraná por lavradores ingleses.”
Segundo Wilson Martins, acredita-se ter sido o livro de Bigg-Wither a fonte das informações colhidas por Thomas Hardy para sua descrição das agruras sofridas por Angel Clare no Paraná. Tais informações são confirmadas por higienistas como Trajano Reis, que escreveu o seguinte em “Elementos de Higiene Social” (1894): “o paludismo é intenso, como sucede não só nos arredores de Curitiba, mas também em grande parte da cidade nova /.../ além das febres que são provocadas pelos serviços nos banhados, sóe reinar em Curitiba, em época em que aqueles serviços são suspensos.” Portanto, como Temístocles Linhares concluiu, se em 1942 Gilberto Freyre conhecesse o livro de Bigg-Wither, que depois veio a admirar, não teria escrito “O Brasil num Romance de Thomas Hardy.” Conforme Wilson Martins demonstra, a geografia de Thomas Hardy “assentava em bases bem mais sólidas que as de seus críticos meticulosos. O pobre Angel Clare /.../ reviveu na ficção a tragédia real dos seus compatriotas que emigraram para o Paraná. ”
Interessante é opor o erro dos críticos brasileiros , supostamente conhecedores da terra brasileira, ao acerto de Thomas Hardy, que, além de descrever o Paraná numa obra de ficção, nunca esteve no Brasil. Os papéis parecem trocados. Não é do autor inglês que obtemos uma visão pré-concebida da realidade brasileira. Ao incluir o Brasil num romance, produto de sua imaginação, Thomas Hardy apresentou uma descrição mais confiável, ou se preferirmos, mais verdadeira.
Confusões do Paraná com o Pará podem aparecer como lugar-comum, quem sabe devida a semelhança entre os nomes dos dois estados. Uma crônica de Artur Xexéu no Caderno B do Jornal do Brasil de (data) traz informações sobre a biografia de Noel Coward, escrita por Philip Hoare, publicada aqui pela Editora Record, na qual “há uma insólita passagem do escritor, autor de teatro, cantor, compositor e ator pelo Brasil.” (Xexéu, A. 2001). Apenas 30 linhas das 660 páginas da biografia são dedicadas às impressões de Coward sobre o Brasil, onde esteve com seu amigo Jeffrey Amherst em outubro de 1930. De suas atividades em Copacabana e no Rio de Janeiro em geral, o relato parece de acordo com o que esperamos em termos de atividades sociais e culturais. Mas sua viagem tornou-se exótica, segundo Xexéu, quando Coward e seu amigo saíram do Rio a convite de uma empresa de erva-mate, e viajaram para o interior do país. No trecho da biografia citado por Xexéu ficamos sabendo o que se segue:
Dois dias depois de sai de São Paulo, chegaram a Porto Epitácio, o fim da linha de trem, e foram levados numa balsa que transportava o mate.
Flutuaram pelo rio cheio de piranhas e crocodilos, durante dois dias e duas noites. Coward achava as centenas de quilômetros de densa mata virgem “absolutamente aterrorizantes”—você não pode se aventurar por mais de alguns metros terra adentro que tudo fica cheio de cobras, orquídeas e papagaios.
Porto Epitácio fica no Paraná. Piranhas, crocodilos, cobras e papagaios são fauna do Pará. Daí, somos levados a acreditar na criatividade excessiva da mente de Noel Coward. Só hesitamos em suspeitar que o autor inglês foi enganado em sua viagem brasileira. Acreditamos que ele chegou aqui trazendo idéias preconcebidas a respeito da geografia brasileira. Na mesma época, ou logo depois, o jornalista inglês Peter Fleming iniciaria, também de São Paulo, sua viagem pelo interior do Brasil. Este, sim, poderia falar de piranhas e papagaios, já que se embrenhou pela selva amazônica através do estado do Mato Grosso. Sabemos que em sua descrição Fleming não pode deixar de exprimir com emoção sua percepção da realidade no interior brasileiro, não pode deixar de lado a imaginação que se deixava estimular por seu contato com a flora e a fauna que o rodeavam.
É possível que Noel Coward e Peter Fleming tivessem encontrado na nossa realidade o Outro de que precisavam para afirmar sua superioridade. Fleming num gesto de reconhecimento. Coward numa espécie de aversão, ou se preferimos, medo de uma realidade selvagem.
Em seu ensaio sobre histórias de mal entendidos intelectuais, Umberto Eco discorre sobre o choque que ocorre quando duas culturas distintas se encontram, choque esse resultante de sua diversidade recíproca. (ECO, U., 1998, p. 71) Nesse ponto, três possibilidades são consideradas: a conquista, a pilhagem cultural e o intercâmbio. Em vários casos, há uma fusão dessas três atitudes. Há também, segundo Eco, duas outras formas para a interação de duas culturas: a primeira, o exotismo, que leva uma cultura inventar uma imagem ideal da cultura distante através de má interpretação e bricolage estética. O segundo fenômeno, mais difícil de se rotular, deriva do fato de que o homem viaja levando consigo “background books,” ou seja noções preconcebidas do mundo derivadas de sua tradição cultural. Um exemplo é o de Marco Polo que viajou para a China preparado para encontrar os unicórnios que, porque não podiam ser vistos na Europa (e certamente nem existiam), eram descritos como fauna de lugares exóticos. Em Java, Marco Polo encontrou animais parecidos com os unicórnios descritos nos livros que lera. Porque estava preparado para ver unicórnios, identificou e descreveu o que viu como tal. Só que os animais que vira eram rinocerontes. Mas não se pode dizer que ele mentiu, pois na impossibilidade de falar do desconhecido, ele só podia se referir ao que já sabia ou imaginava saber e esperava encontrar.
Esse fenômeno pode muito bem ter vitimado Noel Coward e outros autores que descrevem o Brasil que esperam encontrar, uma outra terra que tem de existir porque seus livros e sua a tradição não podem falhar. Interessante no caso de Gilberto Freyre e de um grande número de leitores brasileiros de Thomas Hardy é o fato de os próprios “donos” de uma cultura estarem preparados para uma descrição que não corresponde à realidade que deveriam conhecer. Esse tipo de leitor pode se equiparar a personagens como aqueles que habitam o conto “Never Saw Brazil,” do autor inglês William Boyd.
Nesse conto, o protagonista Wesley Bright, inspirado pelo chorinho brasileiro, cria para si uma vida inteiramente ligada ao Brasil, mas cheia de enganos. Wesley Bright considerado um herói sem sorte pelo crítico Michael Upchurch em resenha publicada no New York Times de 19 de janeiro de 1997. A obsessão pelo chorinho leva o personagem a cair em armadilhas e confusões e não a melhorar sua vida, com a qual não está satisfeito. Irrita-se também com o próprio nome que o faz sentir como se usasse sempre o mesmo sapato apertado. A obsessão de Wesley pelo chorinho e sua idéia preconcebida do jeito latino de ser, de forma semelhante à confusão de Marco Polo com o unicórnio, fazem com que ele tome por brasileira qualquer mulher latina -- uma italiana, uma portuguesa, por exemplo. Suas confusões e seus enganos são recebidos com certo prazer pela leitora brasileira que, controlada pelo texto, acredita em sua simpatia pela cultura brasileira. O crítico Upchurch , por sua vez, expressa sua visão mais do que preconcebida e estereotipada do Brasil quando diz que a simpatia de Wesley revela um pouco de William Boyd, e que tanto o personagem como o autor não podem passar sem ir a lugares exóticos em seus sonhos e também na realidade.
O conto “Never Saw Brazil” nos permite também uma apropriação do vocábulo “transver” cunhado por Manoel de Barros e que aparece na epígrafe deste trabalho. Podemos dizer que a imaginação de William Boyd transvê o Brasil e a mulher brasileira através de seu personagem Wesley Bright. Ao agir como “o Outro” que vislumbra nossa cultura, Boyd usa seu texto como jogo que transporta para seu corpo o mundo que transforma. Outros autores fazem esse mesmo jogo, claro, mas no caso de Boyd, trata-se de produto exclusivo de sua imaginação. Pode-se observar uma deformação implícita no ato de seleção apresentado por cada autor cuja obra aqui comentamos em sua descrição de aspectos da realidade brasileira. Em cada um desses atos, o Outro aparece nas lacunas que o leitor brasileiro deve preencher ao entrar no mundo de cada obra, ao confrontar cada percepção daquilo que já conhece ou pretende conhecer. Em “Never Saw Brazil,” as lacunas pedem correção. Ou são sinônimos dos erros causados pela obsessão do personagem Wesley Bright pelo chorinho brasileiro.
Evelyn Waugh, por sua vez, em seu romance A Handful of Dust (Por um punhado de pó), cujo título foi retirado do verso de T. S. Eliot: “I will show you fear in a handful of dust”, trata de transmitir do início ao fim, da casa de campo na Inglaterra à clareira na floresta amazônica brasileira , segundo Edmund Wilson (Wilson, E., 1987, p. 45), a impressão de um terror , de um sentimento de que o alicerce está para destacar-se das coisas. Isso é o que motiva o livro todo, mas os personagens não parecem conscientes desse fenômeno.. Um casal aristocrata atravessa uma crise; a mulher abandona o marido o filho para ter um caso com o desinteressante e mal educado filho de uma decoradora. O filho morre num acidente de caça, o marido foge para o Brasil e acaba prisioneiro de um degenerado analfabeto que por vários anos o faz ler em voz alta na mata obras de Charles Dickens.
Terry Eagleton (Eagleton, T., p. 110.), por sua vez, considera o romance de Waugh uma sátira que explora a propensão contemporânea para ruptura e futilidade em termos do colapso da relação de Tony e Brenda Last e da conseqüente erosão da tradição da casa de campo que Tony representa. A última parte do livro, dedicada às aventuras de Tom na América do Sul, mais específicamente na floresta brasileira, é uma zombaria, um escárnio à cultura civilizada. Para Eagleton (p. 112), o ritual macabro da leitura de Dickens no meio da floresta pretende ser paralelo ao ciclo de vida da classe alta inglesa.
As descrições da paisagem e dos acontecimentos nos trópicos são por demais realísticas e detalhadas para exercer uma função meramente simbólica. No entanto, é dessa forma que Eagleton considera o desfecho dessas descrições, quando Tony tropeça em Mr. Todd no coração da floresta. Essa ambivalência é resultante das intenções misturadas do romance, traduzindo (“translating”, sic) Tom de sua mansão ancestral para os trópicos. Por um lado, a aventura de Tony na mata amazônica representa o contato com a experiência “real” – com uma paisagem presente, cheia de vida, com a doença, a necessidade, o esforço físico – em contraste com as realidades herméticas de uma Londres elegante. Por outro lado, essa experiência pode também significar a projeção simbólica da busca desesperada de Tony por uma cidade de verdade paradisíaca numa extensão da tese pessimista de “terra devastada” que o romance representa a partir de seu título. Terry Eagleton afirma que o realismo e a fantasia se cruzam constantemente na consciência febril de Tony. Se consideramos simbólica sua experiência, esta combina com a prática britânica ao provar por meio de uma metáfora realisticamente incrível que o vazio percebido de relance no centro de uma cultura inglesa declinante é na verdade universal e metafísico. Acredito que essa interpretação reforça a idéia do estrangeiro inglês como o “Outro” em busca de uma realidade de que necessita para afirmar sua superioridade cultural. Para Eagleton, Waugh pretende usar a experiência estrangeira de duas formas: como fuga de irrealidade ou ilusão relativa para uma realidade também relativa; e como símbolo da febre, da futilidade e do caos contemporâneos. Embora de forma metafísica, a descrição da exploração feita por Tony Last na floresta amazônica, revela a qualidade oca da sociedade inglesa. Por outro lado, sua experiência demonstra que a vida em qualquer outro lugar pode ser igualmente corrupta. A falha é do ser humano mais do que da condição social.
A “tradução” do personagem Tony Last de sua mansão inglesa para a floresta brasileira remete-nos a uma outra tradução, se assim podemos considerar a fusão realizada por A. S. Byatt em sua novela “Morpho Eugenia” contida no livro Angels and Insects. É essa fusão que produz o formigueiro metafórico a que o título desse trabalho se refere. A própria autora utilizou a metáfora do “formigueiro” em entrevista numa página da Web (Lit Chat : A. S. Byatt, Angels and Insects. 03/12/2000.) a respeito do filme baseado em sua obra. Ela declara que uma imagem visual deu início à escrita da novela. Queria combinar sua obsessão pelo naturalismo televisivo com sua também obsessão pelo gótico vitoriano. Pensou que seria possível realizar um belo filme que comparasse um formigueiro a uma mansão vitoriana. E no meio do formigueiro haveria uma enorme e gorda rainha branca a produzir filhos. Por muito tempo não conseguiu produzir a trama, ou enredo, se quisermos. Pensava apenas na metáfora do formigueiro e em vários criados ligeiramente assexuados em correria pelos corredores da mansão vitoriana como formigas trabalhadoras. Para desenvolver essa metáfora, a autora leu muito sobre formigueiros e sobre a vida dos criados vitorianos.
A novela conta a história do cientista vitoriano William Adamson que, tendo perdido num naufrágio espécimes colecionados na Amazônia brasileira, vê-se forçado a catalogar a coleção comprada por Mr. Harald Alabaster, um rico naturalista amador de uma Londres decadente.
Byatt mistura a Inglaterra e o Amazonas numa fusão poética fascinante e encantadora. Adamson, o naturalista, é constituído com base no cientista David Wallace que descobriu, ao lado de Charles Darwin, a teoria da seleção natural. Na história, ele considera a família de seu patrão quase tão interessante quanto a natureza, principalmente uma jovem dama fechada na mansão como num casulo. O título da novela “Morpho Eugenia” refere-se aos insetos, mais especificamente borboletas, sendo que Eugenia é o nome da jovem.(Morpho Eugenia, p. 18-19).
Ao chegar à mansão dos Alabaster, Adamson encontra um baile, a casa inteira num redemoinho de criados correndo pra lá e pra cá e grande desordem. (So Mr. Adamson arrived to find the whole house in turmoil and servants running hither and thither in the greatest possible disorder. p. 4 e Byatt. A. S., Morpho Eugenia, 1995, p. 4) Adamson sente-se logo atraído por Eugenia Alabaster que dança com o irmão Edgar rodopiando pelo salão, eu diria como um inseto. É ela que, quando ao lado de Adamson, percebe que seus pensamentos se perdem pelo Amazonas, de onde acabou de voltar. O cientista admira a arquitetura a sua volta e diz a Eugenia que lembra do que Ruskin disse a respeito do leque arqueado (p. 7) comparando-o à imaginação anciã das árvores que numa floresta formam uma arcada. Adamson pensa em palmeiras levantando-se como torres na mata, nas borboletas sedosas que voavam no meio das árvores fora do alcance de qualquer um.
Eugenia conta que organizou uma espécie de colcha com os espécimes das borboletas que Adamson tinha enviado a seu pai. Quanto à formiga, a primeira ocorrência de qualquer imagem do inseto aparece na descrição do que Adamson podia ver dos seios de Eugenia na linguagem sensual usada por Byatt : uma mancha cor de carmim do tamanho de uma formiga média onde os seios redondos se encontram ou separam-se um do outro. [There was a little crimson stain, the size of a medium ant, where her round breasts met , or parted from each other, where the violet shadow began. (p. 8)]
As formigas continuam invadindo a mansão vitoriana nas lembranças que William Adamson guarda desses insetos sociais que pôde observar ainda quando jovem em Rotherham , no Instituto de Mecânica. Escreveu então um Diário que se tornaria o Diário de um guarda-formigas (“the journal of an ant-watcher”, p. 10). Ao ser convidado para unir-se a uma expedição ao Amazonas em busca de espécies ainda desconhecidas, William lembrou-se das descrições feitas pelo alemão Humboldt e pelo inglês W. H. Edwards que falavam de uma exuberância selvagem colorida pelos coatis, agoutis, bichos-preguiça, pica-paus, papagaios, borboletas. (p. 11)
William tinha sido apresentado a Harald Alabaster por Samuel Stevens, o agente que lhe vendera a coleção de insetos. O Reverendo Alabaster era um colecionador obcecado que herdara o título de Barão e a mansão vitoriana após a morte do irmão em 1848, e que escrevia cartas ao ainda desconhecido William na Amazônia perguntando sobre as crenças religiosas dos Nativos, sobre os hábitos da mosca-embusteira de beija-flor e da formiga Saúba (sic, p. 11). Convidado pelo Barão, William carrega seu diário tropical, onde havia descrições de tudo: bandos de formigas devoradoras, o coaxar dos sapos e dos crocodilos, os gritos monótonos dos macacos berrantes, as línguas das várias tribos que conhecera, os vários tipos de borboletas, as pragas de moscas que picavam, e o desequilíbrio de sua própria alma dentro desse mundo verde da vasta selva, de crescimento assassino, e de existência preguiçosamente sem rumo.
É possível observar uma fusão entre a floresta amazônica e a Londres Vitoriana nas lembranças que povoam a mente e os sonhos de William no decorrer da história: ao mesmo tempo que recorda ter sentido falta de uma presença feminina ao ser curado de uma febre na cabana de uma bruxa imunda no meio da mata (p. 13) , ao dormir na mansão, sonha que corre atrás de um bando de pássaros dourados na floresta. (p. 14) Além do mais, compara as águas da mata com as do dilúvio em Paradise Lost, de Milton (p. 31) E, ao explicar à assistente de que dispõe na mansão vitoriana as atividades da formiga sangüinária que invade e destrói os casulos das formigas de madeira que são trabalhadoras, William não pode deixar de compará-las a seres humanos. Diz que batalhas terríveis se passam entre atacantes e defensores, e que as formigas lembram a sociedade humana em muitas coisas. (“Terrible battles are fought by raiders and defenders, They resemble human societies in that as in many things. P. 38) Inclusive o relacionamento entre o o inseto inglês escravizador, predador, e o escravo que ele captura e de quem passa a depender sugere à leitora lembranças de relações humanas que caracterizam o colonizador e o colonizado, o senhor e o escravo.
Podemos concluir que, metaforicamente, o formigueiro da mansão vitoriana consiste também de formigas sangüinárias, nobres escravocratas e traficantes de escravos, que dependem dos criados que trabalham incansavelmente como formigas. Além disso, em outro sentido, a metáfora do formigueiro na mansão vitoriana pode ser usada com referência não só à obra de A. S. Byatt, mas também à de E. Waugh e ao conto de William Boyd. Além das fusões e paralelos que notamos em Morpho Eugenia e A Handful of Dust, as confusões imaginárias de William Boyd também podem ser comparadas às de um formigueiro em turbulência. Quanto à invasão da mansão inglesa, de forma metafórica ela ocorre quando consideramos as letras como formiguinhas devoradoras mencionadas por Byatt. Elas se organizam para se apropriar da cultura do Outro usando a arma da própria língua inglesa manipulada pelos mesmos ingleses que representam um olhar de superioridade que a floresta e a realidade tropical não lhes permite mais sustentar.
Referências Bibliográficas
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http://www.egroups.com/message/first-impressions/10
http://www.nytimes.com/books/97/01/19/reviews/970119.upchurch.html