PRESERVAÇÃO OU DIVERSIFICAÇÃO
DA FORMA DRAMÁTICA?
ARGUMENTOS SOBRE CONCEITOS SZONDIANOS,

ABORDANDO O CASO FRANCÊS CONTEMPORÂNEO

Geraldo R. Pontes Jr. (UERJ

O estudo da preservação da forma dramática de Peter Szondi, em sua Théorie du drame moderne, (SZONDI, P., 1983) identifica questões estilísticas na construção do sujeito e do objeto do drama, desdobrando-se dos mesmos um quadro de representação das idéias hegemônicas de sua época de cada um e da funcionalidade da enunciação segundo a forma com que cada autor fundamenta a comunicação e a condição humana, que resulta em um olhar para sua própria cultura. Averiguando casos como o da dramaturgia sartriana, o teórico alemão reflete sobre o quanto este autor está para a preservação da forma, em contraposição a Beckett, por sua vez associado à transgressão, criando assim quase dois modelos de fundamentação. Partindo desses pressupostos, estudarei a conseqüência de se manter o ponto de vista de Szondi ao ler autores franceses contemporâneos como J.-P. Wenzel, M. Deutsch, V. Haïm, J.-C. Grumberg que, passando por discussões de crises sociais e políticas, propõem, de forma heterogênea, uma diversidade de estilos que requer a ampliação desse terreno de conceituações.

Esses autores, que se firmaram desde os anos 70, compõem, por assim dizer, um quadro de dramaturgia tradicional, uma vez que não se ligaram a projetos centrados na natureza do espetáculo, mas operaram mudanças da construção dramática. Contribuíram para desmistificar a não atualidade de uma pesquisa cênica que partia do processo dramatúrgico, o que possibilitou a continuidade da criação textual.

 

I

A teorização szondiana parte de dois eixos: primeiramente, a de que o drama é um conceito atemporal, sendo uma arte possível em todas as épocas, postulável em todos os momentos pelas poéticas, uma vez que a forma dramática é considerada como não ligada à história. Em segundo lugar, esse elo entre poética transistórica e concepção não dialética da forma e do conteúdo remete ao ponto culminante do pensamento dialético e histórico: a obra de Hegel torna inseparáveis e idênticos o conteúdo e a forma daquilo que considera a verdadeira obra de arte. Nessa perspectiva, o conteúdo é a inversão da forma no conteúdo e vice-versa. A assimilação da forma e do conteúdo anula igualmente a oposição do atemporal e do histórico, que se achava contida na relação historiográfica que vigorou até o século XIX; tem, como conseqüência, a historização do conceito de forma, e, em último motivo, a própria historização da poética dos gêneros. As categorias de poesia lírica, de poesia épica e de arte dramática, de sistemáticas que eram, tornam-se históricas.

A concepção dialética trouxe seus frutos na idéia da forma condensando o conteúdo, ou seja, tornando-se metáfora do conteúdo, metáfora daquilo que expressa sua forma durável e sua origem, portanto, sua capacidade de significar, que ela tira do conteúdo. Assim, pode-se desenvolver uma verdadeira semântica da forma, uma vez que a dialética passa a ser a do enunciado formal e do enunciado do conteúdo. Entretanto, contradições também se instalam no questionamento da forma pelo conteúdo, uma vez que a temática do conteúdo evolui no enunciado formal. Szondi propõe-se então a explicar as diversas formas da arte dramática moderna pela resolução de contradições. Definindo sua teorização como não causalista, oposta a uma leitura sociológica da arte como representação de um quadro cultural vigente, propõe que, sem fazer diagnóstico de épocas, as contradições são apreendidas no interior das obras sob o aspecto de técnicas, como dificuldades.

Ao mesmo tempo, as análises conclusivas apresentadas não evitam uma leitura, via obra, de sua época. Com respeito ao drama, demonstra que suas exigências técnicas são os reflexos de exigências existenciais: a totalidade que ele desenvolve nada tem de sistemático, ele tira sua essência da filosofia da história. A história está contida nas falhas entre as formas poéticas e só a reflexão histórica é capaz de construir as pontes que transcendem. Considerando a forma de uma obra de arte incontestável em sua expressão, a descoberta do enunciado formal só se produz em uma época na qual a evidência deixou de estar evidente e na qual aquilo que era óbvio tornou-se problemático - pensamento convergente com o de Jean Duvignaud em Les ombres collectives. Por isso, o conceito de drama se vê contraditoriamente elaborado a partir do que o impede de existir quando sua elaboração quer entender sua possibilidade.

A dramaturgia moderna se afasta do próprio drama. Um termo antitético acoplado ao conceito de drama, o épico, se faz necessário para introduzir um elemento que se chamou "sujeito da forma épica" ou "eu épico". A questão diz respeito à transformação dramática oitocentista: o naturalismo nórdico, de fim de século, rompe radicalmente com o conflito desencadeador da ação aristotélica. O conceito épico szondiano explora a quebra de dramaticidade na obra por afrouxamento da tensão do diálogo. Trata-se, por ex., da incidência de monólogos concomitantes, típica da obra de Tchekov, entre outros autores, onde diálogos não somente não estabelecem comunicação, como, conseqüentemente, não desencadeiam o caráter de antagonização do conflito aristotélico, que seria um elemento capaz de configurar, no outro, o objeto do drama, e não no próprio sujeito. O traço épico, cortando a tensão, opera uma inversão dramática e formal.

Nas décadas seguintes, a fissura formal desaparece sem que se apaguem as invenções temáticas e formais como o processo do passado no presente, de Ibsen, o narrador épico, de Strindberg, ou a questão social interessando a personagem em Hauptmann. Na obra deste, a vida entre os homens é determinada por fatores exteriores: as condições político-econômicas impõem uma uniformidade que anula o caráter único do momento presente tornando-o também passado e futuro; a ação cede lugar ao dado situacional de que são vítimas os homens. T|rês fatores elementares (tempo presente, relação inter-humana e acontecimento) se relativizam pelas circunstâncias objetivas que seu drama deve representar.

Na transição estilística do decorrer do século XIX, elementos temáticos (inalterados) cristalizam-se em uma forma e fazem romper o mecanismo anterior (onde o estilo "contraditório" derivava do deslocamento temático). A tensão forma/conteúdo remete à contradição entre a união dialógica do sujeito e do objeto na forma e a dissociação dos mesmos no plano do conteúdo. Começa a se constituir a dramaturgia épica quando a relação de conteúdo, entre sujeito e objeto, cristaliza-se na forma. É determinante na estrutura do drama pós-romântico a oposição sujeito/objeto. Procede de uma atualização temática onde a atualidade dos laços humanos, negada em seu conteúdo, é expressa formalmente por fidelidade à tradição. Não há suplemento intra ou extrapessoal de que a relação inter-humana venha acompanhada, pois o diálogo se limita ao espaço do entre-dois; o presente não conhece nenhum contexto temporal; o acontecimento, desligado da situação interior à alma, e da situação exterior da objetividade, funda a dinâmica da obra, de modo que a poética do acontecimento inter-humano e o presente, tanto quanto a forma dramática, são anulados em seu absoluto, portanto, relativizados. A confusão dinâmica entre sujeito e objeto na forma e a separação estática dos mesmos no conteúdo é a contradição interna do drama moderno.

Em comentário convergente com a visão de Richard Sennet (SENNET, R., 1988) sobre os laços sociais, diz Szondi sobre a elucidação destes no drama: "La crise du drame dans la seconde moitié du XIXe siècle est due pour une bonne part aux puissances qui excluent les hommes des relations interhumaines et les poussent dans la solitude." (p. 81). Isso esclarece o fato anunciado como transição estilística, de que o retorno ao dialogismo da relação inter-humana é o trajeto de tangenciamento que o drama descobre contra esse perigo para não se exaurir no monólogo; os dramas que escaparam à penetração épica encontram-se em uma situação de estreitamento: Danse de mort, de Strindberg (1901) e Casa de Bernarda Alba, de Lorca (1936). Tendo origem histórica provavelmente na tragédia burguesa de Hebbel (1844), fórmula que se rompe com a decisão dos indivíduos uns em relação aos outros, o estreitamento priva os homens do espaço necessário para estar a sós com seus monólogos e seu próprio silêncio, mas esta impossibilidade faz retornar necessariamente à forma dialogada.

Para entender melhor o termo épico na teorização szondiana há que se diferenciar o traço estilístico com que trabalha o autor da conceitualização do teatro brechtiano. No caso da ação brechtiana, como objeto do discurso no palco, ela desencadeia uma oposição que produz a totalidade da obra, de forma que o espetáculo da ação, oferecido ao espectador como objeto, põe-no em face dela (a ação estando além de estabelecer empatia e aquém de colocá-lo fora do jogo); a ação não constitui a obra em si e portanto não pode converter o tempo da representação em uma sucessão de presentes absolutos, pois o tempo presente da representação, visando a reflexão final, é mais amplo que o da ação. Contrariamente à noção hegeliana de drama, onde a ação do herói passa da subjetividade ao objetivo e da objetividade ao subjetivo, a intenção científica e sociológica do teatro épico implica uma reflexão sobre a infraestrutura social das ações humanas em sua alienação reificada.

 

II

As questões trazidas por alguns dramaturgos franceses recentes relacionam-se à crise ideológica das sociedades contemporâneas diante de suas heranças culturais, políticas, históricas, fruto do encontro do passado com o presente. O senso crítico desses textos constrói-se na forma, com a ruptura em relação à estrutura orgânica tradicional do teatro, centrada no binômio antigo conflito-ação. Uma análise mais completa das obras dos novos autores franceses deve levar em consideração a transformação da linguagem dramática contemporânea que deu lugar à fragmentação do sujeito.

Há que se fazer uma nova reflexão para o enfoque dessas questões em obras com as de Jean-Claude Grumberg (Amorphe d’Ottenburg, L’atelier ou ainda Dreyfus), assim como de Victor Haïm (L'Arme Blanche), onde o sentido da guerra ocupa de tal maneira a forma de apresentação das obras, pois invade a mentalidade das personagens, desmobilizando seu posicionamento em cena. Da mesma forma, nas obras de Jean-Paul Wenzel (Loin d’Hagondange) e Michel Deutsch (Convoi, Bonne vie ou Dimanche), a violência escondida das estruturas sociais contemporâneas emerge da banalidade dos acontecimentos entre personagens ordinárias, que representam aqueles que não conseguem expressar sua vontade.

Quanto à linguagem dos dois últimos dramaturgos, fundadores do Théâtre du Quotidien, o crítico francês J.-P. Sarrazac ressalta que se trata de preencher a cena com a forma e não a substância do cotidiano real; suas peças, centradas na dialética entre a vida do trabalho e a vida doméstica, exploram a opressão de uma expressa na outra, na suspensão da tensão do diálogo, a interiorização da ordem burguesa na classe operária e da ideologia dominante na linguagem e no comportamento. As raízes de seus textos tanto se encontram em Adamov quanto em deformações de Brecht:

A l'origine, le Théâtre du quotidien procède moins du relevé exhaustif de notre "quotienneté" - voire de la quotidienneté des êtres les plus démunis dans notre société - que d'une volonté de s'attaquer frontalement à l'impensé du brechtisme: la relation du psychisme des individus à la structure sociale, la mise en écho et en résonance des névroses individuelles et/ou collectives et des convulsions planétaires. Démarche dont, au carrefour de l'avant-garde des années cinquante et du brechtisme, la dramaturgie d'Adamov, qui se réclamait autant de l'individualité que de l'analyse sociale, fut incontestablement l'initiatrice. (SARRAZAC, J.-P., 1995)

O resultado, para Sarrazac, é o número de questões que vêm à tona, submetendo a realidade encenada.

Em Dimanche, de 1974, a tensão está na divergência de caminhos geradora de incomunicabilidade entre a protagonista, Ginette, e as personagens de sua cidade provinciana. A falta de perspectiva de uns, de mudar de vida, contra o comportamento obsessivo de Ginette, de tornar-se ginasta - ou, primeiramente, majorette, a baliza da banda de música da festa esportiva -, motivo para ultrapassar os limites da cidadezinha, transforma a dança em um caminho de fuga absurdo - porque levado às últimas conseqüências -, assustando a mãe quanto à mudança de personalidade da filha, ao pai quanto aos novos hábitos e companhias; ao namorado por causa de sua habilidade esportiva. O enfoque é no sentido de frustrar a perspectiva anunciada quanto ao domingo, dia do desfile. Os fatos superpõem-se como flashes. O namorado morre de angústia, por falta de ocupação. Françoise, uma amiga, não compreende a obsessão de Ginette, que, longe do senso comum, não se interessa pelos rapazes. O vigia do ginásio abandona a moça trancada toda a noite se exercitando. Na sucessão de cenas em que “l’état minimal des personnages au maximum de son aliénation” toma lugar sucessivamente, instaura-se um ambiente harmônico final, pano de fundo de uma cena absurda: a morte sem motivo da atleta. As crianças retornam ao normal, dando uma idéia da preponderância da impotência individual, da anulação das vontades no passar cíclico do tempo, sem saída.

A peça Convoi marca nas atitudes das personagens uma “pane” generalizada, metáfora utilizada por Jean, o mecânico que conserta um rádio, para se referir à França ocupada durante a Segunda Guerra Mundial. Censura e recessão, falta de víveres, meias palavras, o quadro debilitado da Resistência, em que Marthe, irmã de Anne, tenta convencê-la de não esconder a identidade de uma jovem judia; o mecânico fala das ameaças, do perigo iminente; sua determinação faz com que ela não mude o destino e seja punida por sua coragem. Ressaltando as dificuldades deste momento histórico, a peça enfoca a dimensão com que as forças individuais sucumbem à opressão dominante, hegemônica, às forças irracionais.

A contradição vivida pelo homem moderno, ao mesmo tempo triturado por um sistema e em completa comunhão com ele, perpassa por La Bonne vie, onde um operário especializado se afasta do cotidiano para construir gaiolas, esperando encontrar pássaros em extinção, ou mesmo extintos, como um arqueopteryx; afasta-se aos poucos da realidade, para acabar sucumbindo à mesma, ao construir suas próprias idéias. Sua esposa, Marie, uma funcionária, repentinamente descobre sua gravidez, e acaba fazendo um aborto involuntário. Esses percursos crescem até o escatológico, em que, concentrando-se toda a economia da desconstrução da peça, um monólogo furioso de Jules contra a realidade do senso comum, simbolizado pelos sub-produtos da televisão, faz irromper a violência inexplicada através de uma paródia de western. No monólogo, a reação ao sistema:

J’ai oublié aussi comment on boit une bière. Je ne sais plus manger le pain frais. Voici donc la partie jouée. Le complot a toutes les chances de réussir. Des années durant, ils ont tout calculé afin de ne rien laisser au hasard.[...] Dans ma chère, la résistence se calcine...(p. 114).

O desconserto absurdo entre a realidade e o destino em La Bonne Vie e Convoi suspende a ação ao suspender o caráter de acontecimento do presente das personagens. Como que desprovidas de força de vontade, são vencidas por uma força maior, arbitrariedade que cria um mal-estar no espectador, pelo amesquinhamento do quotidiano. O argumento constrói-se como um fato apresentado, de um diálogo de baixa sintonia, que narra um opróbrio. A massificação forja um “terrorismo épico” nesses textos, fazendo preponderar, ao diálogo sem soluções, em que se desdobram os quadros melancólicos aos olhos dos espectadores, a absurda perda de sentido da vida, perspectiva que o horizonte vem a frustrar.

Apesar de convergir com Sartre no sentido de mostrar que os seres são emergências existenciais informes, ou passíveis de se descobrir em uma motivação, ou imotivação, Deutsch diverge ao reduzir o campo de sua busca e demorar sobre momentos pontuais. Diferentemente de Sartre, que utilizava as situações dramáticas para demonstrar como essas existências adquirem uma essência, fazendo suas escolhas em atitudes filosóficas, as personagens de Deutsch estão moldadas por atitudes dos que com eles (e como eles) convivem num cotidiano opressor, onde forças arbitrárias controlam suas existências. A análise de Sartre feita por Szondi propõe que o restabelecimento do conceito clássico de liberdade, em situações de estreitamento, ajuda o drama a preservar-se da contaminação épica. Em Huis-clos, Sartre faz uma inversão do espaço para criar o equilíbrio entre a transferência dramática das metáforas textuais e a transferência existencialista da concepção da peça. A inversão fictícia do inferno no espaço fechado de um salão seculariza a vida social, tornada infernal até que a personagem inverta a predicação vida-inferno // inferno-vida, através da palavra final: "O inferno são os outros." Assim, as personagens de Deutsch e de Wenzel não se contextualizando na morte, como em Huis-clos, para cessar de se transformar, nem estando jamais aptas a isso, uma vez que incapazes de escolher um novo caminho, recebem um enfoque quase semelhante, com estreitamento da situação que evita o monólogo, mas que se diferencia definitivamente por não terem a perspectiva da escolha. O quadro predominante em relação ao sujeito pulveriza a determinação, o antagonismo abre para a rarefação que é efeito do traço épico resultante do pano de fundo, força que passa por cima dos destinos e suspende a relação de seu presente com outros momentos.

Jean-Paul Wenzel, autor de Loin d’Hagondange, apresenta a situação de um casal de operários aposentados, em uma vida sem histórias e retirada no campo, onde eles morrem aos poucos de tédio. Tendo aceito o modelo conjugal que se completa com as necessidades da sociedade consumista, afastam-se da vida comunitária e cedem a um instinto de possessão. Ao adquirir a casa ideal para o fim de seus dias, faltam-lhes recursos mentais para lhes possibilitar a aquisição de um sentido para a nova existência. Sem nada mais a se dizer, agora que os clichês habituais do trabalho do marido não existem, resta limpar a casa, que nunca está suja, ou procurar uma ocupação que imitasse a vida na fábrica, única tentativa de recuperação de um tempo não mais possível de se viver. As palavras expressam uma alienação imposta ao longo de suas vidas. Desprovidos de uma existência pessoal, reproduzem clichês para se manterem vivos. Em seu outro trabalho, Marianne attend le mariage, a violência provoca a desintegração da vida familiar.

O caráter de um teatro como o de Deutsch e Wenzel explora o fundo daquilo que, no drama de conversação, descrito por Szondi, tende a dispersar a tensão. Como impasse histórico do drama, em uma série que compõe juntamente com o Naturalismo, a peça de conversação e a peça em um ato são, para Szondi, tentativas de preservação. Na peça de conversação, há ruptura com o sujeito, impossibilidade de um enunciado subjetivo, o espaço vazio do diálogo se preenche com temas da atualidade: direito de voto, amor livre, divórcio, desentendimento amoroso, socialismo. Formas que se identificam no vaudeville, entre outros; opondo-se ao processo histórico, toma aparência de modernidade; bóia entre os homens em vez de traçar laços entre eles, constitui sua própria temporalidade como cadeia causal e se afasta do decorrer temporal; não tendo origem subjetiva, a conversação é incapaz de definir os homens. O processo de modernidade em Beckett pode ser visto por oposição formal a um tipo de diálogo da "peça de conversação". Ao contrário da limitação puramente formal do drama de conversação, em Esperando Godot, este Deus abscôndito e duvidoso não podendo dar sua existência confirmada, desencadeia em sua espera a conversação nula tornada então temática. A conversação no lugar de um espaço metafísico vacante dá importância ao preenchimento deste espaço com um diálogo em ruína, assim como a existência humana e a própria forma dramática, desprovida de contradição crítica, pois a conversa não é mais um meio de ultrapassá-la. Mas a conversação em Deutsch e Wenzel não estaria nem para a transgressão formal absoluta, nem para a conservação dramática, ao divergir do procedimento sartriano que evita a formalização épica. As relações do teatro existencialista são vistas no fecho de uma conservação, como uma busca do Classicismo própria a integrar o Naturalismo, destruindo a idéia de meio, quintessência naturalista que aliena o homem do homem na crise oitocentista.

Do absurdo de uma “existência dominada”, chega-se ao absurdo da comunicação estabelecida, como na obra de Victor Haïm, onde transparecem questões judaicas da natureza das da peça convoi, de Deutsch. Mas os traços desse autor acabam desembocando em um estilo quase surrealista, suprimirei sua análise para dar continuidade à questão em outro trabalho.

Jean-Claude Grumberg, tendo também escrito sobre problemas judaicos como o anti-semitismo e o nazismo, em Amorphe d’Ottenburg, L’atelier ou ainda Dreyfus, fez o elo, segundo David Bradby (BRADBY, D., 1990), entre o bulevar e a vanguarda, combinando as lições do Nouveau Théâtre, as descobertas do teatro popular e do teatro épico. Abordando racismo e intolerância nas primeiras peças, constitui-as de forças grotescas que chocavam por introduzir a violência em situações convencionais e fazendo aflorar instintos inconscientes. A análise proposta pelas obras de Grumberg também ultrapassam a problemática da tensão sujeito-objeto do drama, para alcançar a dimensão das dificuldades de uma época em que o quadro impossibilita a configuração do referido binômio.

Reproduzindo uma análise de David Bradby, a peça Amorphe d’Ottenburg, foi montada em 1971 no Odéon, em um palco que se assemelhava a uma imensa teia de aranha, parábola do nazismo. Amorphe encarna Hitler; seus parentes o poder vigente que o fez ascender; o tio Merlo é o papa e um corcunda sinistro o comércio e a economia que tirou proveito do regime nazista e que, com o fim da guerra, ganhou poder. Sobre o texto e sua montagem, Bradby ressalta:

La plupart du temps, la pièce est une parodie du mélodrame “gothique”, et sa force vient de ce qu’elle fait apparaître les bas instincts qui se cachent sous des motifs grandiloquents. [...] Lorsque Amorphe tue le “troubadour” (un prince voisin déguisé), on peut penser qu’il est allé trop loin; mais son père réussit à lui faire regagner la sympathie du peuple en prononçant un discours énergique sur le parasitisme des artistes et des musiciens.

L’influence de Jarry se fait très nettement sentir dans la cruauté, la distorsion systématique de la vérité et l’égoïsme sordide qui caractérisent tous les personnages. [...] Les adversaires d’Amorphe sont tout aussi corrompus que lui, et ne s’intéressent qu’à la façon dont ils peuvent réprimer leurs serfs, mais en employant des méthodes plus discrètes que celle d’Amorphe. A la fin d‘une longue guerre, ils envahissent Ottenburg et tuent Amorphe; mais le bossu sauve sa peau en communiquant aux vainqueurs ses livres de comptes parfaitement tenus. C’est sur ce mauvais génie financier que se reporte l’horreur des spectateurs; et, lorsque le rideau tombe, on voit soudain apparaître toute une rangée de bossus, munis chacun d’un livre de comptes. (p. 334/5).

Para Bradby, a peça ganhou mais como humor negro, apesar da temática. O paralelo com o terceiro Reich se fazia perceber apenas no decorrer do texto. Mas a questão do anti-semitismo se torna mais clara em Dreyfus, montada em 1974. A ação se passa ao fim da década de 20, no bairro de uma cidade polonesa onde se fala ídiche e onde um grupo de atores amadores pretende montar uma peça por um deles eles escrita, o diretor Maurice, sobre o oficial judeu que dá título à peça, perseguido e acusado por um crime que não cometeu. O conflito, meio cômico, meio trágico, é a própria encenação da incongruência fatal dos atores, que não compreendem bem os propósitos de seu diretor, o anti-semitismo de gerações anteriores, e custam a perceber o ressurgimento mais brutal ainda do novo flagelo.

A peça tenta construir, no seu próprio fazer, o seu próprio propósito. Compreender o anti-semitismo e representá-lo para levar os espectadores à reflexão é a dificuldade do presente. Aproxima a linguagem de Grumberg à de Deutsch e Wenzel, uma vez que demonstra um cotidiano que massacra a consciência das personagens: a identidade judaica é a frágil esfera protetora das personagens que não entendem como o oficial perseguido colocava, em primeiro lugar, sua identidade de oficial francês, e não de judeu. A discussão sobre a acusação de traição, demonstram que a diferença de raça não estava oficialmente estabelecida até então, tendo sido o exato golpe contra Dreyfus, que se via outro que não o assinalado. Isso fecha a proposta da peça dentro da peça de se construir a representação vencendo a dificuldade do entendimento: se o conservadorismo das personagens representa a massificação dos espectadores e do mundo alienado que se encena, o diretor procura desfazer em seu texto a diferença entre as raças, para entender que se criou algo para fazer o judeu de bode-expiatório.

A montagem se torna no entanto impossível porque os atores, custando a compreender seus papéis, são interrompidos em duas noites e atacados por anti-semitas. O objetivo de comprender o anti-semitismo pela peça é substituído por uma mensagem de Maurice, alguns anos mais tarde, que lhes escreve de Varsóvia. Ele explica, como demonstra Bradby, que só se pode compreendê-lo no contexto de uma grande teoria marxista da História.

Assim, as semelhanças entre esses autores possibilitam vê-los em uma mesma categoria em que se vê que a idéia de estreitamento dramático, também a eles aplicável, diverge do caminho de Sartre. Não há, por outro lado, como no que foi remanescente do século XIX em alguns autores do século XX, separação estática, no âmbito do conteúdo, entre sujeito e objeto, e sim na forma. A princípio, isso inverte aquilo a que Szondi chama confusão dinâmica do drama moderno. Mas obedece a um novo mecanismo, em que o conteúdo do objeto contamina o sujeito e o submete. Daí a revisão da conceituação szondiana.

 

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