SER OU NÃO SER
A DIALÉTICA DO EU EM FLORBELA ESPANCA

Tatiana Alves Soares (UNESA/UniverCidade)

Florbela Espanca, poetisa portuguesa das primeiras décadas do século XX, apresenta uma obra marcada pelo lirismo amoroso. Seus poemas traduzem as inquietações da alma feminina, sendo a sensualidade e o panteísmo algumas de suas mais marcantes características. Com um enfoque direcionado para a problemática feminina, sua poesia é marcada por uma constante insatisfação e pela busca do amor absoluto. Esta busca coloca o eu-lírico, assumidamente feminino, como uma espécie de “peregrina do amor”, condenada a passar pela vida envolvida nessa eterna procura. A obsessão em encontrar o objeto de desejo torna-se, pois, uma justificativa para a própria existência.

Fundamentais para a compreensão de toda a extensão do amor em Florbela são os sonetos intitulados “Eu”, um pertencente ao Livro de Mágoas e o outro integrante de Charneca em flor. Publicados respectivamente em 1919 e em 1930, os sonetos em questão dialogam entre si, na medida em que o segundo constitui um contraponto do primeiro. Dessa forma, nosso estudo analisa o processo de construção da identidade e da auto-imagem a partir de uma dialética detectável na própria estruturação dos sonetos. Nossa reflexão enfoca essa intertextualidade, pensando o redimensionamento proposto pelo segundo soneto, com base nos aspectos morfológicos e lexicais neles encontrados.

O primeiro soneto apresenta uma mulher que vaga, sem rumo, pela vida, à espera de que alguém a encontre. Note-se o caráter estático do eu-lírico, que parece depender do Outro para existir:

 

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do Sonho, e desta sorte

Sou a crucificada... a dolorida...

 

Sombra de névoa ténue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida!...

 

Sou aquela que passa e ninguém vê...

Sou a que chamam triste sem o ser...

Sou a que chora sem saber porquê...

 

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

Alguém que veio ao mundo pra me ver

E que nunca na vida me encontrou!

(Espanca, F. [s/d], p. 37)

Apesar de o título sugerir uma posição auto-referencializada por parte do eu-lírico, o poema apresenta uma tensão quanto à identidade daquele. De fato, trata-se de um Eu que prescinde de um Outro para existir e, na ausência deste, torna-se errante. A despeito das inúmeras tentativas de se autodefinir, marcadas pela repetição dos vocábulos eu e sou, o código imagístico presente no soneto apresenta conotação negativa, remetendo ao campo semântico da dor, do luto, da mágoa. Já na primeira estrofe, tem-se simultaneamente as imagens da desorientada e da crucificada, acentuando o caráter melancólico de sua jornada:

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do Sonho, e desta sorte

Sou a crucificada... a dolorida... (Ibidem, p. 37)

Às imagens de errância e de desorientação segue-se o epíteto de irmã do Sonho, sugerindo o teor quimérico contido na busca empreendida pelo eu-lírico. Note-se que o vocábulo sonho aparece capitalizado, numa personificação que demonstra a vertente neo-romântica de Florbela. Como conseqüência de tal parentesco, restam-lhe a dor e a amargura: sou a crucificada... a dolorida...

Os vestígios simbolistas, outro traço recorrente na produção florbeliana, surgem sobretudo nas imagens vagas e fugidias, e no tédio que as acompanha:

 

Sombra de névoa ténue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida! (Ibidem, p. 37)

Após se autocaracterizar a partir de negativas - a que não tem norte, a incompreendida -, a instância narrante sintetiza, nos dois tercetos finais, o verdadeiro motivo de seu infortúnio: uma vez que sua vida se resume à busca do Outro, o fato de não o encontrar impossibilita a sua própria existência. A identidade do eu-lírico estabelece-se a partir da alteridade. Na ânsia de corresponder às expectativas do amado, ela tenta encontrá-lo para, de fato, existir. Estática em seu sacrifício, aguarda a chegada do Outro, colocando-se na condição de objeto desejado, incorporando os estereótipos normalmente associados à figura feminina da época: a passante baudelairiana, princesa chorosa e passiva:

Sou aquela que passa e ninguém vê...

Sou a que chamam triste sem o ser...

Sou a que chora sem saber porquê... (Ibidem, p. 37)

Note-se que ela absorve a imagem que lhe atribuem, chorando sem motivo e personificando o clichê feminino da dama frágil e melancólica. Embora haja a repetição do verbo na 1a pessoa no início de cada verso, os demais vocábulos colocam-na como aquela que é vista, sendo toda a caracterização feita a partir do olhar que o outro lhe lança.

A última estrofe intensifica o sentimento de inadequação presente no soneto: remontando ao mito do amor-paixão descrito n’O Banquete, em que se aponta o encontro com o ser amado como única perspectiva de retorno à perfeição original, a voz enunciadora constata a falência de seu projeto:

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

Alguém que veio ao mundo pra me ver

E que nunca na vida me encontrou (Ibidem, p. 37)

Além de explicitar a frustração do eu-lírico em relação a seu projeto romântico, a última estrofe revela, mais do que as anteriores, a perspectiva da alteridade que pauta o soneto. O predestinado encontro não ocorreu, e note-se que a instância narrante não se coloca como sujeito dessa busca, mas como objeto, o que lhe acentua a impotência. O seu referencial é o Outro e, portanto, encontrá-lo significa encontrar a si mesma. Sua existência é posta em xeque, como se observa no tom modalizante sugerido pelo advérbio de dúvida: Sou talvez a visão que Alguém sonhou. Observe-se que ela não é sequer real, mas a visão ou o sonho de alguém. Os vocábulos visão e sonho remetem à alucinação ou ao desvario, e o uso de um pronome indefinido - alguém - intensifica a fragilidade de sua existência. A idéia do encontro predestinado, presente no imaginário romântico, é destruída pela informação de que tal encontro não se realizou.

Maria Lúcia Dal Farra, em estudo acerca do amor na poesia de Florbela, destaca essa tensão quanto à auto-imagem do sujeito lírico, marcada pela dicotomia identidade / alteridade:

(...) A vontade de amor a encaminha para um processo conturbado de auto-reconhecimento. Uma expressiva porção de sua poesia é atravessada por pungentes apelos para que lhe respondam “quem sou eu”, ao mesmo tempo em que se representa reflexo, sombra, prolongamento, sonho de Alguém. Esse alguém é sempre o homem amado, aquele que tem o poder de metamorfoseá-la.(...)Diante dele ela se põe à mercê, pronta a se transfigurar na denominação que ele lhe conferir.

(Dal Farra, M. 1995, p. 41)

Enquanto o poema de 1919 apresenta um Eu cindido pela ausência do Outro, o homônimo é marcado por uma nova perspectiva: apesar de também pregar a realização amorosa como meio de autognose, o segundo soneto traz uma mudança de posição por parte do eu-lírico, que vê na fusão amorosa uma integração de duas identidades diferentes. O amor continua a ser prioridade, mas há, por parte da instância narrante, um movimento no sentido de assumir a própria libido, colocando-se como agente do processo de sedução. Não se trata mais da moça que chora e aguarda a vinda do amado, mas de uma mulher que questiona a própria condição e se inscreve como sujeito, e não objeto, de seu desejo:

 

 

Até agora eu não me conhecia.

Julgava que era Eu e eu não era

Aquela que em meus versos descrevera

Tão clara como a fonte e como o dia.

 

Mas que eu não era Eu não o sabia

E, mesmo que soubesse, o não dissera...

Olhos fitos em rútila quimera

Andava atrás de mim... e não me via!

 

Andava a procurar-me - pobre louca!-

E achei o meu olhar no teu olhar,

E a minha boca sobre a tua boca!

 

E esta ânsia de viver, que nada acalma,

É a chama da tua alma a esbrasear

As apagadas cinzas da minha alma!

(Espanca, F. [s/d], p. 117)

A nova tentativa de se definir fica patente pelo uso do pronome pessoal que nomeia o soneto. A repetição do título conduz a uma inevitável comparação, gerando um diálogo entre os textos e marcando o contraponto representado pelo segundo em relação ao anterior.

A mudança de atitude já se faz notar na primeira estrofe, quando o eu-lírico demonstra, em uma dialética hamletiana, que a mulher de agora em nada se parece àquela de outrora. Mais segura e consciente, a mulher que personifica o eu-lírico afirma-se a um só tempo como sujeito desejante e dona de sua enunciação. A frágil mocinha que era vista e chorava cede lugar a uma voz firme que se caracteriza a partir de seu próprio olhar, numa demonstração de auto-reconhecimento. Coloca-se, ainda, como senhora de seu discurso, diluindo parcialmente as fronteiras entre os estatutos do autor e do eu-lírico:

Até agora eu não me conhecia.

Julgava que era Eu e eu não era

Aquela que em meus versos descrevera

Tão clara como a fonte e como o dia. (Ibidem, p. 117)

Ao contrário do primeiro soneto, marcado por definições que partiam da negação de um paradigma (não compreendida, desnorteada, não vista), acentuando ainda mais a submissão feminina a um modelo imposto, o segundo poema distingue-se através da afirmação de uma identidade ímpar, porque construída a partir de seus próprios referenciais. Diferentemente do outro, o segundo soneto retrata o olhar do eu-lírico sobre si mesmo, deixando, portanto, de ser mero reflexo de uma imagem imposta, e fazendo brotar a verdadeira personalidade da mulher antes sufocada por estereótipos. Digno de destaque é o primeiro verso do soneto, pois apresenta uma afirmação categórica do eu-lírico acerca de si, num tom e atitude jamais encontrados no anterior. A mulher tão clara como a fonte e como o dia, compatível com os padrões sociais da época, vai-se revelar então sensual, liberada, desejante, traços que tanto escandalizavam a sociedade portuguesa de então. A mudança de posição frente à vida, marca do livro Charneca em flor, é traduzida pela postura da instância narrante, que antes tinha sua personalidade abafada, ao aceitar uma imagem imposta, e que agora não mais se cala, dando voz ao verdadeiro eu que irrompe, numa demanda de si mesma:

Mas que eu não era Eu não o sabia

E, mesmo que soubesse, o não dissera...

Olhos fitos em rútila quimera

Andava atrás de mim...e não me via! (Ibidem, p. 117)

Além das diferentes leituras sugeridas pelo primeiro verso , em que o pronome capitalizado tanto pode pertencer à primeira oração, sendo um predicativo, quanto à segunda, sendo, nesse caso, sujeito, a referida estrofe traz ainda uma espécie de mea culpa feita pelo eu-lírico, que reconhece a sua estranheza em relação a si mesma, e admite que, ainda que se conhecesse, não o diria. Tal confissão evidencia a passividade de outrora, e prenuncia o redimensionamento que será verificado a seguir.

As duas últimas estrofes coroam a nova perspectiva a partir da qual o eu-lírico se observa. As reticências e o tom modalizante do primeiro soneto são aqui substituídos por exclamações e assertivas, refletindo a segurança da voz que as enuncia. A fusão amorosa permanece como ideal a ser alcançado, mas não se trata mais de um eu que prescinde de um tu para existir: tem-se, agora, um eu construído a partir de suas próprias escolhas, dentre as quais figura o ser amado:

Andava a procurar-me - pobre louca!-

E achei o meu olhar no teu olhar,

E a minha boca sobre a tua boca!

 

E esta ânsia de viver, que nada acalma,

É a chama da tua alma a esbrasear

As apagadas cinzas da minha alma! (Ibidem, p. 117)

Ainda que a paixão desmedida do eu-lírico pareça enfatizar a dependência amorosa, tem-se aqui uma mulher que assume seu desejo, desafiando as próprias convenções do amor romântico. Note-se que as referências ao jogo amoroso mostram-na como sedutora em vez de seduzida:

Andava a procurar-me - pobre louca!-

E achei o meu olhar no teu olhar,

E a minha boca sobre a tua boca! (Ibidem, p. 117)

A estrofe citada mostra alguém que procura a si mesmo, e acaba por se encontrar junto ao Outro, perspectiva diversa à observada no primeiro soneto, em que ela se mantinha à espera de alguém que a encontrasse. O desejado encontro era, pois, anterior à existência, o que não ocorre agora. A utilização dos possessivos é igualmente expressiva, apontando uma inversão dos papéis atribuídos ao homem e à mulher no jogo de sedução. Ao dizer: Achei o meu olhar no teu olhar/ E a minha boca sobre a tua boca, a instância narrante toma para si a iniciativa da conquista amorosa. Significativa é ainda a preposição sobre, numa alusão ao ímpeto apaixonado e à sofreguidão sensual.

A última estrofe sintetiza a passionalidade já entrevista nas anteriores:

E esta ânsia de viver, que nada acalma,

É a chama da tua alma a esbrasear

As apagadas cinzas da minha alma! (Ibidem, p. 117)

Os vocábulos chama, esbrasear e cinzas remetem ao campo semântico do fogo, metaforizando a carga erótica presente no soneto.

O último terceto é ainda importante por reiterar a vontade de viver expressa pelo eu-lírico, dado esse que estabelece o grande contraponto realizado pelos textos: enquanto o primeiro soneto apresentava uma mulher cuja existência parecia perdida, uma vez que ela não pudera cumprir o seu destino, o segundo poema mostra-nos uma mulher que, ainda que se refira às apagadas cinzas de sua alma, alude a uma ânsia de viver que cresce ao longo do texto, demonstrando que o tu, por mais desejado que seja, não lhe constitui a razão única do viver.

O redimensionamento aqui verificado reflete uma mudança de atitude já vislumbrada nos próprios títulos dos livros da poetisa. O primeiro soneto, marcado pela mágoa e pelo ceticismo, integra o não menos melancólico Livro de Mágoas. Já o segundo, repleto de paixão pela vida, pertence a Charneca em flor, livro cujo título traduz a ânsia dessa bela flor que ousou, um dia desabrochar.

 

BIBLIOGRAFIA

DAL FARRA, Maria Lúcia. O amor na poesia de Florbela Espanca. In: PAIVA, José Rodrigues (org.). Estudos sobre Florbela Espanca. Recife : Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, UFPE, 1995.

ESPANCA, Florbela. Sonetos. Lisboa : Europa-América, s/d.

PLATÃO.O banquete. São Paulo : Globo,1980.