A MODERNIDADE DA GRAMÁTICA HISTÓRICA

Manoel Pinto Ribeiro (UERJ/CEUAM/ABF)

“ULTIMA FLOR DO LÁCIO, INCULTA E BELA
ÉS, A UM TEMPO, ESPLENDOR E SEPULTURA...”
(Olavo Bilac. Língua Portuguesa, Tarde).
Apud
Coleção Nossos Clássicos, Agir, 1959, p. 86)

A verdade deste poema de Olavo Bilac deverá ser questionada por nosso tema desta mesa-redonda, que trata da importância do estudo da gramática histórica, ou melhor, do estudo diacrônico da língua portuguesa que, infelizmente, vem sendo desprezado em nossas universidades. As cargas horárias estão reduzidas, num flagrante desinteresse pela matéria. Trata-se de uma atitude incompreensível e radical que acarreta um despreparo de nossos graduandos em Letras. Certas tendências ou modismos no ensino universitário trazem, como conseqüência, uma visão deformada do fenômeno lingüístico em toda a sua extensão. Pretendemos, nesta mesa-redonda, demonstrar que a história da língua se torna extremamente agradável, longe, portanto, de ser um assunto que traria enfado ao estudante.

Por outro lado, não se pode apenas pensar em assuntos ou matérias que tragam prazer, estético ou não, ao futuro professor. Deve-se, antes de tudo, pensar no conhecimento científico e global daquele que se forma em nosso curso.

O estudo da língua, em qualquer época, deve ser visto como de uma verdadeira religião, por isso poderíamos, com palavras do escritor Francisco de Castro, afirmar que o “esplendor da língua portuguesa desvia-se da caducidade universal e sobrenada aos destroços dos séculos e à subversão das idéias e sistemas”

Celso Cunha e Wilton Cardoso, em Estilística e gramática histórica, da Tempo Brasileiro, 1978, p. 8, dizem que, “na medida em que se vai fixando a noção de que a língua é a construção de um sistema particular de expressão, impõe-se concomitantemente ao professor o dever de ensinar ao aluno que ela é, ao mesmo tempo, uma herança histórica, cujo pecúlio fundamental lhe cabe resguardar”.

A gramática histórica vai estudar a diacronia sob dois aspectos: primeiro, a história externa da língua procura revelar todas as conquistas dos romanos, que levaram à constituição, por meio de lutas sangrentas, do chamado Império Romano, principalmente com os territórios da Hispânia (Portugal e Espanha de hoje), da Gália (atual França), da Itália e Dácia (Romênia atual), todas integradas na unidade imperial até o século V, depois de Cristo, durante o apogeu dos latinos; segundo: história interna - a que se ocupa da descrição do processo evolutivo a que se submeteram os fonemas, a forma e o significado dos vocábulos e, também, os tipos de construção sintática que foram adotados em cada língua derivada do latim vulgar.

Cabe esclarecer que todas as línguas possuem várias modalidades ou usos, que comumente chamamos de registros, que costumam ser: o literário, o formal, o informal ou coloquial e o vulgar. Com o latim acontecia o mesmo, pois o uso literário era restrito aos escritores principalmente. No dia-a-dia predominava o coloquial e, nas camadas mais pobres ou afastadas, o falar vulgar: língua corrente e comum. Dessa língua há poucos registros de escritores de limitada cultura ou de outros que tiveram como finalidade uma circulação maior entre as camadas mais humildes; alguns procuravam retratar os personagens rústicos, conservando-lhes a linguagem típica. O Apendix Probi, por exemplo, apresentava uma listagem de palavras em que aparecia a forma incorreta ao lado da forma correta: O propósito de nosso trabalho é, porém, revelar a contribuição pré-romana e latina para o léxico do português.

Sabe-se que o latim vulgar, transportado para a Península Ibérica, se converteu na língua de habitantes que até então falavam outra língua. Havia uma indefinida mescla ibérica com elementos bascos, célticos, gregos, fenícios ou cartagineses.

Quando um povo se torna vencedor e impõe a sua língua, o povo vencido deixa uma influência residual no idioma sobrevivente. A esses elementos desses povos vencidos que vão ser absorvidos chamamos de substrato. São:

1. Elemento ibérico - contribuição pouco numerosa, com origem duvidosa, provavelmente vindo a maioria do basco: abóbora, arroio, baía, balsa, barro, bezerro, bizarro, cama, esquerdo, garra, louça, manteiga, manto, modorra, nêspera, páramo, sapo, sarna, seara, veiga;

2. Elemento céltico - menos significativo, pois muitos vocábulos já se haviam infiltrado no latim por volta do século IV a.C, nas lutas dos romanos com os gauleses da alta Itália. Porém, antes da ocupação românica, na Península Ibérica, a Galiza e o Norte de Portugal já se tinham convertido em centro de cultura céltica. Alguns exemplos: bico, brio, cabana, caminho, camisa, carpinteiro, carro, cerveja, duna, gato, lança, légua, peça, touca, vassalo, etc. Topônimos: Bragança, Lima, Penacova, Penafiel e Coimbra, de Conimbriga, cuja terminação - briga, que significa “altura”, “castelo”, é um elemento céltico.

3. Elemento grego - é bem complexa a contribuição grega ao substrato peninsular. Costumam citar duas fontes pré-românicas: a primeira aparece na colonização grega, no seu domínio na Península Ibérica; a segunda surge como conseqüência da propagação do cristianismo. No primeiro caso, as palavras se confundiram com as que os romanos utilizaram no seu vocabulário ou se perderam; no segundo, é difícil saber se as palavras do aliciamento cristão já não haviam sido incorporadas antes ao latim, por igual razão. Citam-se: bolsa, corda, caixa, ermo, golfo, gruta, órfão, tio, ou anjo, bispo, crisma, diabo, esmola, igreja, mosteiro, dentre outras.

4. Elemento fenício - por meio dos navegadores e depois com as colônias cartaginesas, os fenícios deixaram poucos vestígios de sua língua, como o substantivo saco. Dos cartagineses ou púnicos, mencionam-se mapa, malha (cabana) e mata, todos com origem nebulosa, como o substantivo barca, que parecia de étimo fenício e que deve originar-se do latim.

OS ELEMENTOS LATINOS - O fundo românico

O latim introduzido na Península Ibérica vai introduzir a maior parte da camada inicial do vocabulário português. Aqui aparece o vocabulário fundamental; elementos designativos de partes do corpo, parentesco, nomes de animais, de substâncias, de qualidades, verbos que expressam atos essenciais à vida: manus (mão), pedem (pé); pater (pai), mater (mãe), filium (filho); canis (cão), capra (cabra); aqua (água), panis (pão); bonus ( bom), malus (mau); comedere (comer), bibere (beber)...

Mas havia palavras de uso popular que na língua culta apresentavam outra forma. Vulgarismos como apprendere, bellus, bibere, bucca eram eram substituídos por discere, pulcher, potare, os.

Neste ponto, desejamos mostrar toda a influência do vocabulário latino no léxico, seja ele produto de transformações fonéticas (camada popular), seja ainda fruto de origem erudita, ou seja, buscou o vocábulo diretamente do latim clássico, para enriquecer o contingente de palavras à disposição do falante.

Assim temos: 1) integru > inteiro (palavra popular: a que sofre transformações fonéticas): houve vocalização do /g/ e o /u/ breve deu o. E a forma “integro”? É um empréstimo erudito trazido para o português com a mesma prosódia do latim clássico: é um proparoxítono. Sabemos que, na transformação do latim vulgar para o português, todos os proparoxítonos desapareceram. A sua inclusão na pauta prosódica de nossa língua se deve aos empréstimos eruditos. 2) stella > estrela: além do aumento de fonema no início, que chamamos de prótese, tivemos a epêntese do /r/, por influência (analogia) do vocábulo astro. Já o adjetivo “estelar” segue a forma latina stella, com as devidas adaptações ao sistema formo-fonêmico do português. 3) nidu > nio > nio > ninho: houve a queda do /d/ intervocálico (síncope), seguida da nasalização do /i/, por influência do /n/ inicial, e posterior desenvolvimento da consoante palatal, para desfazer o hiato de dificíl pronúncia. Mas observem os vocábulos eruditos, que mantiveram o radical latino: nidificar (formar ninhos), nidícola (aquele que permanece no ninho algum tempo depois de nascer), nidiforme (que tem forma de ninho), nidífugo ( que está apto a correr, mal sai do ovo).

No dicionário do Aurélio, verificamos o vocábulo velar, com três origens diferentes: 1. velar, adj. - relativo ao véu palatino; origina-se do latim velu acompanhado do sufixo adjetivo -ar; 2. velar (do latim velare ), verbo - cobrir com véu; 3. velar - (do latim vigilare), verbo - passar a noite acordado; estar atento, vigiar, proteger.

Em gramática histórica, este processo é chamado de formas convergentes: duas ou mais palavras que vão originar um vocábulo em português. A diferença significativa é explicada, portanto, pela diferença de origem, isto é, são três étimos diferentes.

Dessa forma, perguntamos: Estamos estudando uma língua morta? E o que dizer do uso do latim na propaganda, elemento já utilizado por tantos, já que o nome enobrece o produto.

Quem não conhece a companhia Fiat Lux (Faça-se a luz) produtora de uma marca de fósforo? E O sorvete Magnus ( máximo de prazer no sabor), e o famoso “Habemus Chester” ( temos Chester), propaganda em que aparece um homem vestido de romano? E o brinquedo Lego, em que as peças se unem. E a palavra ônibus (“de omnibus - para todos”, dativo plural de omnis, omnis)? Enfim, “ad vitam aeternam”( para sempre), não precisaremos fazer qualquer adendo (latim “addendum”), para documentar a importância de nossa língua-mãe, que continua viva e universal.

Termos como ego e id, usados na psicologia, ou lato sensu (sentido amplo), stricto sensu (sentido restrito), quorum, forum, e tantos outros, denotam a importância da língua latina para o ensino universitário.

Temos ainda a influência do superestrato, camada do léxico que veio por influência dos termos dos bárbaros que aniquilaram com o Império Romano, no século V d.C., mas que não impuseram sua língua ao povo vencido. São palavras de origem gótica, ligadas principalmente à arte militar: dardo, elmo, espora, estribo, guerra, trégua, etc.

No século VIII d.C., os árabes invadiram a Península Ibérica. Também não conseguiram impor a sua língua e deixaram numerosas palavras no nosso léxico: alecrim, algodão, alface, alfazema (-al era o artigo árabe); alicate, adarga, alfange, algema; alqueire, arroba, quintal; aduana, alcova, aldeia, armazém; aletria, álcool, xarope; enxaqueca.

Gostaríamos de citar em parte, quase concluindo, um texto fabuloso de Célia Therezinha Oliveira Guanabara, na enciclopédia Bloch, de maio de 1967:

Quando alguém fala com orgulho da garra da agremiação por que torce, está-se utilizando, embora com derivação de significado, de um termo de origem basca. Dos celtas, herdamos as palavras carro, cabana e cerveja. A brasa da atual música jovem é de origem germânica, assim como guerra e ganhar, o que prova que aqueles bárbaros eram mesmo avançados.

...você que é brasileiro, que diz, portanto, o seu amor e o seu protesto, sua fé e seus desejos, sua tristeza, que canta a Banda, tudo no mais legítimo português; você, que lê Machado, Guimarães Rosa, Graciliano, Jorge Amado, Drummond de Andrade e João Cabral, emocionando-se com o algo mais por eles acrescentado às palavras; você, a esta altura dos acontecimentos, já se sente condômino de tão vasta comunidade idiomática, orgulhoso de ter herdado uma língua que, pelo visto, está-se saindo melhor que a encomenda.

E dizer-se que tudo começou em eras remotíssimas, numa parte da Itália, o Lácio, região habitada por um povo de pastores, rude e prático, que falava o latim.

Concluindo, gostaríamos de voltar ao poema inicial de Olavo Bilac, um dos mais importantes da língua portuguesa. A verdade histórica, revelada pela diacronia, nos diz, porém, que a última conquista romana que originou uma língua neolatina foi a do território da Dácia (Romênia), com o romeno. Portanto, salvo melhor juízo, a última flor do Lácio seria essa língua, e não o português.

Esse fato não tem nenhum importância no julgamento do notável soneto de Bilac, que continua assim:

Ouro nativo, que na ganga impura/ A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura, / Tuba de alto clangor, lira singela,/ Que tens o trom e o silvo da procela/ E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma/ De virgens selvas e de oceano largo!/ Amo-te, ó rude e doloroso idioma!

Em que da voz voz materna ouvi: “meu filho”/ E em que Camões chorou, no exílio amargo, / O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BILAC, Olavo. Olavo Bilac - Poesia. 2 ed Rio de Janeiro : Agir, 1959, p. 86.

CUNHA, Celso e CARDOSO, Wilton. Estilística e gramática histórica. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1978.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio - o dicionário da língua portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1999.

GUANABARA, Célia Therezinha Oliveira. Nossa língua portuguesa. In Enciclopédia Bloch, 1967.