ASPECTOS DO PORTUGUÊS DE MOÇAMBIQUE

Fátima Helena Azevedo de Oliveira (UFRJ)

Introdução

Muito pouco se sabe no Brasil sobre a situação da Língua Portuguesa em África. A oportunidade de lecionar Português em Moçambique, durante seis anos, despertou o desejo de pesquisar e divulgar vários aspectos desta língua em situação de contacto com as línguas e dialetos do tronco banto. Desde 1983, quando lá chegou, até hoje, a Autora tem se dedicado a este propósito.

1.1. Delimitações preliminares

O presente estudo objetiva verificar em enunciados de Moçambique, em Língua Portuguesa, componentes conhecidos na literatura da Análise Conversacional sob a denominação de marcadores discursivos (MD). Trata-se de elementos de variada natureza, estrutura, dimensão, complexidade semântico-sintática, aparentemente supérfluos, mas de indiscutível significação e importância para análise da sintaxe da Língua Portuguesa, quer na variante da Europa, América ou África. A análise pretendida retoma elementos situacionais, descrevendo e explicando os laços que unem enunciação e enunciado produzidos por moçambicanos escolarizados. Recupera-se uma parte do “caos” da fala do moçambicano, pela consideração de certas condições da Língua Portuguesa na variante de Moçambique.

Os pressupostos teóricos são variacionistas e funcionais da forma em uso nos enunciados orais de moçambicanos.

Esta pesquisa do texto oral moçambicano, do discurso e da sintaxe caracteriza-se pela ruptura de três barreiras, ao mesmo tempo: preocupa-se com a situação da Língua Portuguesa em África; examina as relações entre discurso, enunciação e fatores sócio-históricos e analisa as relações sintáticas em mudança, à luz da modernidade.

Assim, considera-se o espontâneo do falante moçambicano como determinador da gramática, sendo a norma culta nada mais que uma variante da língua.

1.2. Orientação teórica

Observando os aspectos de mudança da Língua Portuguesa, Votre (1994) alega que a emergência de estruturas lingüísticas se dá pelo fato de as que estão à disposição no sistema se encontrarem semântica e pragmaticamente enfraquecidas, não dando mais conta das necessidades dos usuários de modo satisfatório, ou de simplesmente ainda não existir na língua alguma forma pela qual estes possam se expressar para atingir seus propósitos comunicativos.

Hopper (1996) chama de gramaticalização o processo diacrônico que se desenvolveu inicialmente através da sintaxe.

No que concerne ao comportamento sintático e as acepções semântico-pragmáticos de algumas partículas de improvisação da fala, Martelotta (1996) notou que as mesmas vem se distanciando de seu sentido original através, basicamente do processo de discursivização. O autor considera discursivizacão o processo de mudança que leva determinados elementos lingüísticos a serem usados para reorganizar o discurso, quando suas restrições de linearidade se perdem em função da improvisação típica da fala, ou para preencher o vazio comunicativo causado por essa perda.

Tomando como referência a norma da variante européia da Língua Portuguesa, Gonçalves (1991) investiga aspectos da gramática do Português, estudando fenômenos situados na área da estrutura argumental dos verbos. Reúne dados relevantes para compreensão do processo de formação de uma variante da referida língua, contribuindo, assim, para uma captação da situação de contacto de línguas em Moçambique.

1.3. Metodologia

Moçambique é um país da África Austral, cercado de países anglófonos. Nesta região os povos falam línguas do tronco banto. Segundo o último recenseamento, apenas 2% da população tem a Língua Portuguesa como materna. Ao ocorrer a independência, em 1975, o presidente Samora Moisés Machel, instituiu o português como língua oficial e veicular. A população, em geral, inicia a aprendizagem dessa língua quando faz parte do sistema educacional. Sua aprendizagem se dá através das gramáticas portuguesas e textos.

A descrição da metodologia utilizada no estudo está dividida em duas subseções. Na primeira, descreve-se o corpus coletado para os propósitos da pesquisa e o processo de coleta. Na segunda subseção, os fundamentos das abordagens de base em corpus são definidos em maior detalhe.

1.3.1. O corpus

Uma vez decidido que a pesquisa utilizaria uma abordagem baseada em corpus de Moçambique, concentrando-se no português falado, o próximo passo foi selecionar um corpus adequado aos propósitos da pesquisa. Recorreu-se ao arquivo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual foram investigados quarenta e nove casos representativos da fala do sul de Moçambique: Maputo, capital, e Xai-Xai, província de Gaza.

1.3.2. A abordagem

Enfocando o nível do discurso, foram levantados marcadores que diferenciam a variante africana da Língua Portuguesa da variante européia. Levou-se em conta que a aprendizagem da mesma se dá na escola, com grande tendência à norma culta.

1.4. Hipóteses

Iniciou-se a pesquisa com as seguintes hipóteses:

1.4.1. Os usos da partícula portanto seguem a trajetória conclusivo > discursivo.

1.4.2. Há trajetórias diferentes para os usos do , todas partindo do seu valor dêitico espacial e gerando usos diferentes para essa partícula.

2. ANÁLISE

2.1. Casos investigados

Portanto

Em amostragem do corpus, o “portanto” não é usado de forma prototípica, ou seja, como conjunção. Nota-se certa cumplicidade entre falante e ouvinte quanto à continuidade do diálogo.

“ eh, durante a infância, eh, portanto, que passei, eh, eh, no Xai-Xai, eh, ainda com, mais ou menos, cinco ... a seis anos, já, já apascentava gado em casa dos meus pais, eh, enquanto ia, [...], enquanto fre [...], e frequentava o, a, portanto, a, a pré-primária”. (Amostragem da UFRJ, 1986. Informante moçambicano, aluno de um curso superior.)

O conector “portanto” não representa a súmula dos argumentos, conceitos, fatos, hipóteses, teorias, mas, ao contrário, continua a argumentação. O locutor, após o emprego do “portanto”, perde-se em argumentações.

Em conseguinte, o pressuposto de que a conjunção “portanto” deva iniciar um período preciso e categórico parece não se sustentar na variante moçambicana do Português.

Dentre os casos de mudanças sintático-semântica foram encontrados casos de usos diferentes da partícula . Essa partícula é tradicionalmente classificada como advérbio de lugar, mas esse rótulo não dá conta da variedade de usos que ela representa, seja no Brasil, em Portugal ou em África. Ao buscar uma teoria que relacione esses usos, vendo-os como pontos de uma trajetória de mudança, escolheu-se o paradigma da gramaticalização. No corpus foram localizados contextos em que a partícula mostra sinais de gramaticalização e de discursivização na forma “diga lá”.

Lá locativo

(2) “Hum, deixamos o gado à vontade e, e não, e pomo-nos a brincar. Eh, o gado vai, portanto, eh, apastado. E...por todo o tempo que, que lá, lá, lá estiver...” (Meninice na machamba, 1986. S. M, 21 anos - freqüencia de um curso superior)

A partícula localiza pontos no espaço mais distantes do falante e do ouvinte ( em comparação com ali.)

Lá temporal diacrônico

(3) “eh, dos tempos de, de Ngungunhana, eh, que eram muito, a gente gostava muito de, de, de, de acompanhar essas histórias”. (Meninice na Machamba, 1986. S.M. Maputo, freqüência de um curso superior)

O valor dêitico espacial de gerou o diferente uso da partícula. No exemplo a partícula é usada com valor anafórico, que, por sua vez, gerou o valor temporal e inferível.

Lá conclusivo (= então)

(4) “ Como é que é apascentar o gado? Dá assim uma idéia de como é que é o dia de uma criança que apascenta o gado, está bem? ( Meninice na Machamba, 1986 - entrevistador)

O perdeu o seu valor semântico de indicador espacial para assumir a nova função de cunho gramatical. O valor conclusivo da partícula segue do espaço para o texto, passando a organizar estratégias comunicativas, com funções interativas.

3. CONCLUSÃO

Olhando atentamente os dados, vê-se que há uma tendência para mudança no emprego das partículas “portanto” e “lá” no português africano. É prematuro afirmar que tal fato só ocorra em Moçambique. Como a Língua Portuguesa nesse país é segunda para maioria da população, pode ser que o fenômeno em estudo também esteja ocorrendo em Portugal.

Conclui-se, neste estágio da pesquisa, que as partículas “portanto” e “lá” tendem a inserir informações novas no texto. A partir daí, as partículas reorganizam o discurso, marcando uma pausa, para que seja retomada a linearidade do fluxo das informações.

4. Bibliografia

GONÇALVES, Ma. Perpétua Morgado. (1991) A construção de uma gramática de português em Moçambique: aspectos da estrutura argumental dos verbos. Tese de doutorado, Lisboa, Faculdade de Letras.

HOPPER, P.J. (1987) Emergent grammar. In: berkeley linguistics society. V. 13, pp. 139-57.

MARTELOTTA, Mário Eduardo et alii. (1996) Gramaticalização no Português do Brasil. Uma Abordagem Funcional. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, Departamento de Lingüística e Filologia, UFRJ.

VOTRE, S. et alii. (1994). Projeto Integrado Iconicidade, Cognição e Gramaticalização. Rio, UFRJ.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. (1983) Atlas geográfico. República Popular de Moçambique. V. 1 e 2.