DIACRONIA E SINCRONIA
ABORDAGEM E INTERRELAÇÕES

Antônio Carlos Siqueira Andrade (UERJ/UCB)

O termo gramática atualmente pode ser entendido como internalização dos princípios que fazem da língua um código pertencente a uma dada comunidade lingüística - a chamada gramática natural ou teorização desses princípios que, isoladamente, têm propósitos bem definidos: gramática normativa, gramática descritiva e gramática produtiva.

A gramática, em sua concepção mais abrangente, i. e., a descritiva, inicia-se com as reflexões filosóficas dos gregos com o propósito de explicar a natureza da linguagem, descrever a sua estrutura, o seu funcionamento e regulamentar seu uso por padrões lógicos ou literários (Azeredo,1995)

Filósofos como Platão e Aristóteles preocupavam-se com a questão do significado e a sua representação - hoje, as duas faces do signo lingüístico: significante e significado

Há dois períodos importantes para o estudo lingüístico na própria Grécia: o helênico, por volta do século V a C., já referido, e o helenístico, que se refere ao período em que a decadência grega se fez sentir (Senna, 1991)

Nesse último período, a normatização surge como um equívoco: os estudiosos, percebendo a grande distância entre o grego falado e o grego literário, atribuem o declínio da cultura grega à degradação da língua. Surgem, então, estudos com vistas a estancar as mudanças das línguas através dos tempos.

Vale lembrar que o conceito de variação já era conhecido dos gregos, pois seu próprio idioma apresentava quatro variedades dialetais: o eólico, o dórico, o jônico e o ático.

O próximo momento de importância para o que se pretende expor a seguir é o século XV - época em que Gutenberg, com seu sistema de impressão, revolucionou o mundo através da língua escrita e, no século seguinte, através do Renascimento, a imposição das línguas vernáculas vai favorecer a elaboração de gramáticas voltadas para a fixação de um padrão lingüístico.

Escrever era uma aventura até então. Sem gramáticas, sem dicionários, aquele que escrevia, só contava com os textos manuscritos como referência, que, por sua vez, ao serem reproduzidos por copistas sofriam voluntárias e involuntárias modificações.

A escrita era muito flutuante - em um mesmo texto se encontravam palavras grafadas de maneiras diversas.

Letras com alguma semelhança entre si eram confundidas com freqüência

A impressão de livros em escala crescente atingiu um público leitor que se incomodava com essas incertezas, o que facilitou o surgimento de gramáticas e de um sistema de representação padronizado - a ortografia.

As gramáticas históricas popularizaram-se a partir do século XIX, em decorrência dos estudos diacrônicos conduzidos por comparativistas e pelos neogramáticos.

A análise a seguir toma como ponto de partida as gramáticas escolares, cujo conteúdo é predominantemente normativo e descritivo, e as gramáticas históricas, que tratam das transformações ocorridas em uma dada língua, a partir de duas ou mais épocas distintas.

Em todas as gramáticas históricas fica explícito que os casos relatados são mudanças ocorridas na lenta evolução do Latim ao Português ou, mais especificamente, do português arcaico para o português moderno.

Não há informações de que alguns casos relatados continuem ocorrendo no estágio atual da língua, salvo na obra de Silveira Bueno (1955), que admite a existência na fala “rústica” e na obra de Serafim da Silva Neto (1986), que informa a ocorrência de casos na fala “vulgar” do brasileiro.

As gramáticas escolares sequer mencionam esses casos, comprometidas com a fixação de um modelo de língua tido como ideal.

Portanto, as gramáticas históricas ensinam que as mudanças ocorreram no passado, como se a língua estivesse buscando a perfeição já encontrada; as gramáticas escolares ignoram uma realidade presente no uso da língua até por pessoas que dominam a norma culta, como é o caso da assimilação: tamém por também, seno por sendo, e da monotongação: caxa por caixa, lora por loira

Em duas ocasiões tive oportunidade de citar pesquisa sobre assimilação com pessoas cultas (Andrade, 1991, 2000), pois o corpus pesquisado pertencia ao projeto NURC.

Bechara (1999) aborda o caso da monotongação, apesar de ser na parte destinada à ortoepia, observando que os ditongos ai, ei, ou devem manter a sua integridade na pronúncia cultivada - sem exageros na pronúncia do i ou do u - e sem omissão: caixa, queijo, ouro.

A omissão de aspectos presentes em variantes de prestígio como aquela acima aludida leva-me a pensar num temor infundado dos gramáticos de que a boa língua se deteriore ou, o que é pior, confundir ideal com real, como se a língua fosse uma encenação com o aspecto ficcional em destaque.

Uma língua de civilização conserva um modelo de expressão ideal corporificado na língua padrão por questões de sobrevivência da própria língua.

Expressões como “assassinar a língua”, “tropeços gramaticais” e outras equivalentes estão clicherizadas e denotam um desconhecimento mais aprofundado da língua, além de denunciar um profundo preconceito por variantes de menor prestígio.

Por outro lado, soa ridículo querer impor uma só forma de expressão, propondo ou proibindo o uso de certas palavras ou expressões.

Examinaremos duas situações bem distanciadas no tempo, mas que parecem ser uma visão bem insuficiente do que sejam as transformações como evidência da dinamicidade e da coerência da língua.

Celso Cunha em seu livro Língua Portuguesa e Realidade Brasileira, (1977), a páginas 34, cita uma obra em que o autor propõe curiosas formações latinas para substituir os “vícios da raça” (grifo do autor)

Choribel por carnê

Ludâmbulo por turista

Preconício por anúncio

Premagem por massagem

O próprio autor de tais sugestões declarava acreditar no poder de suas sugestões, pois a plebe deveria respeitar as autoridades (filólogos e gramáticos) senão haveria anarquia. A obra era de 1889.

No jornal O Globo do dia 26/08/01, Sérgio Nogueira, outra autoridade, insiste em considerar a expressão idiomática “correr atrás do prejuízo” como clichê. Em outra ocasião ele já havia condenado a expressão como errada dizendo que ele, corria atrás do lucro, ignorando que expressões idiomáticas não existem apenas nas línguas estrangeiras e, o que é pior, não se deve substituir um termo de uma expressão bloqueada cujo valor e significado está nas relações contraídas a partir do momento que passaram a se constituir em sintagma.

Empréstimos são evidências de uma cultura saudável, cujo intercâmbio demonstra sintonia com o progresso vivido em nossos dias.

Expressões idiomáticas são a evidência de que a língua tem um poder criador que transcendem as suas relações lógico-semânticas.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Antonio Carlos Siqueira. Assimilação em falantes cultos. In: Revista de Letras, vol. 1, nº 1. Rio de Janeiro: FICAB, 1991.

------. Gramática histórica: o passado no presente. In: Cadernos de Língua Portuguesa, vol.2, nº 6, 2000.

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna,1999.

BUENO, Francisco da Silveira. A formação histórica da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1955.

COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. Rio de Janeiro: Padrão, 1971.

CUNHA, Celso . Língua portuguesa e realidade brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.

LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976

MACHADO, José Pedro. Origens do português. Lisboa: Sociedade de Língua Portuguesa, 1967.

SAID ALI, M. Gramática histórica da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1965.

SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1979.

------. Introdução ao estudo da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1986.