ENTRE A DERIVA E O ABASTARDAMENTO
Aileda de Mattos Oliveira (FGS-CiFEFiL)
Já se tinha observado, na parte anterior deste trabalho, apresentado no IV Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, o comportamento lingüístico da imprensa do Rio de Janeiro, através de seus órgãos mais atuantes, sejam impressos, radiofônicos ou televisuais. A continuação que se dá a ele tem por objetivo transformá-lo, num futuro próximo, numa peça única, desejando que possa ser útil como colaboração a novas pesquisas sobre o assunto.
Serafim da Silva Neto, na sua obra básica Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil, levanta questões que são de grande importância a uma análise acurada, hoje, do estado da variante brasileira em relação a seus usuários. O uso indiscriminado de determinadas formas de dizer, pitorescas ou populares, normalmente próprias a determinadas grupos sociais, nestes tempos de falência cultural, começam a penetrar no registro coloquial, inundando a linguagem com as formas subalternas da língua que seriam vistas pelo filólogo, como uma maneira de “abastardá-la e rebaixá-la a um mísero e tosco meio de comunicação” (op. cit., p. 20), como então se referia ao emprego descuidado do maior patrimônio cultural do homem.
Como produto social, e é uma obviedade dizer, a língua está sujeita à mesma trajetória dos que a falam, refletindo, assim, o estágio da sociedade em todos os seus aspectos. As transformações por que uma língua passa são o resultado da marcha inexorável de todo instrumento de intercomunicação, ajustado, continuamente, às necessidades das gerações que se sucedem. Paralelamente a esses fenômenos naturais de adaptação espácio-temporal, ocorrem outros de degeneração cultural, cujas causas secundárias poder-se-iam analisar no âmbito diastrático, e primárias, no político-educacional.
Paralelamente a estas últimas, os meios de informação, notadamente os televisuais, concorrem para deslustrar o que ainda permanece viçoso em termos de língua, numa tentativa de, pela massificação intelectual, criar nos laboratórios de efeitos lingüísticos, uma variante única, em nível popular, ou chulo.
Procurar-se-á analisar o que decorre da dinâmica social e o que provém da incúria cultural, atendo-se às palavras do grande filólogo Serafim.
Diz ele que a vida social oscila entre o conservadorismo ― a cópia dos antigos ― e a difusão das inovações que, entre outras palavras seriam, respectivamente, a imitação-costume e a imitação-moda, e é a preponderância de uma delas que vai ditar a aparente estabilidade da língua.
A evolução da língua é movida por uma diversidade de causas, nem sempre as mesmas para todas as línguas, por depender cada uma das condições estruturais da sociedade que dela se utiliza. São estas condições que vão determinar uma paulatina ou uma acelerada transformação lingüística.
Parafraseando Vendryés, o que não se pode ignorar, é que cada estado de língua provém do estado de língua anterior e que cada indivíduo tem a sua parcela de responsabilidade na sua (da língua) evolução, traços individuais que desaparecem nesta mudança, desde que ela seja consentida e sancionada pela comunidade.
O que se pretende, então, é mostrar o que se considera a linha divisória entre a natural evolução histórico-temporal e a desagregação a que a língua é submetida.
É ainda Serafim que nos diz que na evolução, não há descontinuidade, mas que na desagregação “há uma nítida cesura, a transição de um estilo social para outro”.
Citando o sociólogo alemão Theodor Geiger, explica que o estilo social representa a soma de caracteres estruturais básicos, que possibilitam a inter-relação dos diversos setores sociais. É a permanência desse estilo que caracteriza a cultura de uma época, a seqüência evolutiva do povo e, em conseqüência, de sua língua, e a marca dessa dada sincronia - palavra aqui ambígua, considerada tanto como a relação harmônica entre esses setores, quanto um ponto determinado no tempo histórico do falante -, é o estilo que se constitui no fundamento cultural por excelência.
Isso significa que cada povo tem características próprias, advindas de sua visão de mundo, de sua filosofia de vida, de ideais que se tornam o dínamo da evolução social. Essas características são uma herança ancestral, que o falante já traz enraizada como indivíduo social.
Contrariamente, ao faltarem-lhe esses caracteres que o conformam como um indivíduo de uma sociedade autônoma, única, representativa de um dado complexo cultural, estar-se-á, então, diante da desagregação, da cesura, da descontinuidade, do corte de um estilo social e o salto para outro estilo social, fenômeno tão difícil de ser avaliado, tão difícil de ser incluído nas variáveis sociolingüísticas até então esquematizadas pelos especialistas na matéria.
Se o desaparecimento do arquifonema nasal em garagem, viagem, bagagem, estiagem que passou, na linguagem oral, a garage, viage, bagage, estiage, é um fenômeno natural já observado no próprio latim, como nos exemplos seguintes: iam<já; novem<nove; acumen<gume; decem<dĕce<dez;
se, da mesma forma, têm-se as alterações prosódicas, como obeso (ê) por obeso (é); ileso (ê) por ileso (é); gratuíto por gratuito; rês-do-chão por rés-do-chão; colméia por colmeia. e a ocorrência de hiperbibasmo em: Cleopatra por Cleópatra; hieroglifo por hieróglifo, levedo por lêvedo; interim por ínterim, num caso de diástole, e em maquinária (ou maquinário) por maquinaria; rúbrica por rubrica, num caso de sístole;
se, ainda no plano prosódico, observa-se o desaparecimento da alternância vocálica entre o singular e o plural de certas palavras na elocução de alguns apresentadores de jornais televisuais e nos locutores ou modelos que fazem publicidade de determinados produtos como: ‘fogos de artifícios’ (com o fechado) em lugar de fogos (com o aberto); ‘fornos microondas’ (com o fechado), em lugar de fornos (com o aberto) ou, como pronunciou um conhecido radialista da Super-Rádio Tupi, ‘fazer a sesta’ (com e fechado), em lugar de ‘fazer a sesta’ (com e aberto), pode-se compreender a tendência na uniformização dos elementos vocálicos da língua, mormente quando, em alguns casos, eliminou-se o acento diferencial que evitava a hesitação na emissão de certas palavras.
Compreendem-se igualmente as transformações regenciais na substituição da preposição a, hoje superada pela preposição para, em frases, tais: “FH promete obras para o Nordeste” (Jornal do Brasil, 27/6/2000, p. 4.); .“Tanto importante como vencer hoje o Cruzeiro é a recomendação que a diretoria rubro-negra passou aos jogadores: ninguém poderá doar camisas ou qualquer outra peça do uniforme para os torcedores.” (O Dia, 4/7/2001, p. 4.) Neste último exemplo, percebe-se a alternância entre o emprego da preposição ‘a’ em “passou aos jogadores” e de ‘para’ em “doar para os torcedores”, tornando flexível a construção frasal, numa relação livre, de acordo com as exigências de enfatização da demarcação do ponto de chegada da ação verbal.
Os sintéticos exemplos apresentados são reproduzidos nos artigos e notícias de jornais, escritos ou falados, o que já determinam a preferência de certos elementos gramaticais em detrimentos de outros.
Bally diz que “A linguagem é também um fato eminentemente social: não somente é um conjunto de símbolos capazes de classificar o indivíduo socialmente, mas indica também a marca dos esforços do indivíduo para se adaptar socialmente aos outros indivíduos do grupo”, no entanto, nos pragmáticos dias atuais, é notório que a competência gramatical do falante não seja preponderante nem exigido nos órgãos denominados ‘de informação’, já que as formas estilísticas preferenciais dos ‘redatores’, nos jornais impressos, e de locutores, nos jornais falados no caso da televisão e do rádio, não são consideradas de importância fundamental, uma vez que a ausência de exigência de seus leitores, de seus telespectadores e de seus ouvintes, já é uma das marcas culturais do povo, porém mais acentuada nos últimos tempos.
Entra-se, então, na imitação-moda a que se referiu Serafim. É quando as palavras ficam ocas, para serem preenchidas por qualquer recheio semântico, pois não há contestação, não há surpresa, há, ao contrário, uma aceitação tácita, porque emitida por alguém que está ali, no ambiente da grande formadora de opinião: a televisão.
No programa ‘Criança Inocente’ (Rede Globo de Televisão, domingo, 21/4/2001.), após a boa atuação de um concorrente ao título de melhor intérprete, a jurada disse: “Estou chocada com a interpretação. Ele canta muito bem. Tem muito potencial.” Ora, ‘estar chocada’ significa ‘estar escandalizada’; ‘estar melindrada’. O contra-senso na resposta dada, está no fato de a jurada dizer logo em seguida, que “Ele canta muito bem.”
No suplemento de um jornal, específico sobre assuntos de casa e decoração, as palavras do arquiteto e decorador expressam essa tendência do falante pelo emprego de uma retórica pobre, que passa ao largo da lógica gramatical. Diz ele: “Quero trocar todo o revestimento da minha cozinha e colocar tudo branco, no piso e nas paredes. Para paginar o piso, utilize dois tamanhos de cerâmica” (O Dia, 31/3/2001, capa, ‘Arte de Morar”.) Paginar significa ‘numerar por ordem as páginas’, mas no contexto doméstico do arquiteto, torna-se duvidoso arriscar qualquer explicação sem a presença do profissional neologista.
Nessa mesma linha, em que o radical reveste-se de novo valor semântico momentâneo ou não, pois se desconhece ainda se é um vocabulário próprio de determinados grupos profissionais ou se é por ausência mesmo de um repertório particular, adequado às situações de fala, destacou-se o exemplo: “Uma grande exposição no Museu Britânico, em Londres, está novamente revirando o mito.” (Veja, 18/4/2001, p. 105.) Explica-se, aqui, que o mito a ser ‘revirado’ é Cleópatra.
A área política também é um campo em que as alterações semânticas servem como eufemismo para atenuar fatos que se desejam velar à curiosidade pública. Porém, outras vezes, não conta com a cumplicidade do repórter que, com seu estilo narrativo inusitado, faz, ao contrário, acentuar o desgaste de determinada personalidade no campo da disputa eleitoral:“As hostes do presidenciável Ciro Gomes sofreram baixa corrosiva, ontem á tarde no Rio”. (Jornal do Brasil, 27/7/2001, p. 6.)
Da mesma forma, Fernando Henrique Cardoso, deixa no seu falacioso enunciado marcas da ausência do signo, previamente anunciado: “Estou dizendo a todos os brasileiros, uma outra palavra muito importante para todos nós: “É o Brasil que quer a paz e que diz não à violência.” (Jornal do Brasil, 8/7/2000, p.5.) Preocupado com a retórica, esqueceu-se de enunciar a palavra que se aguardava ouvir.
O manancial não se esgota em qualquer área jornalística. Parte-se, então, para o suplemento Idéias, do Jornal do Brasil, onde a ênclise no futuro do pretérito, fato lingüístico repudiado pelas gramáticas, destaca-se no texto. Diz a articulista, editora da seção citada, ao referir-se à filósofa Sarah Kofman: “Ali processaria-se a maior transformação da vida de Sarah”. (Jornal do Brasil, ‘Idéias’, 25/8/2001, p. 8. )
A relação de exemplos aqui registrada é diminuta, por ser o objetivo deste trabalho chamar a atenção para a existência da mutação lingüística ocorrente, nos veículos de informação, principalmente no Rio de janeiro, mutação ainda difícil de se aquilatar quanto ao grau de variação. É certo que a continuidade do trabalho permitirá chegar-se a conclusões, não definitivas, porém mais precisas e fundamentadas sobre as variáveis externas que atuam, de maneira pronunciada, sobre as modalidades falada e escrita no Rio de Janeiro.
Para se atingir esse objetivo, ter-se-á que ultrapassar os limites das estruturas lingüísticas do falante e penetrar na estrutura da sociedade, o que certamente apontará o âmbito político, a fim de se buscar nesses campos mencionados as respostas para as questões sobre o comportamento verbal do falante, na área da informação
Assim, um trabalho lingüístico dessa natureza não poderá restringir-se ao seu próprio âmbito, por estar fadado a manter-se numa visão tautológica.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:
PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis de fala. São Paulo : Editora Nacional, 1974.
SILVA NETO, Serafim da. Introdução ao estudo da língua portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro : Presença, 1986.
------. História da língua portuguesa. 2. ed. aum. Rio de janeiro : Livros de Portugal, 1970.
SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala (Função e linguagem da televisão no Brasil). 5. ed. Petrópolis : Vozes, 1989.