ETIMOLOGIA CLÁSSICA E MODERNA

Amós Coêlho da Silva (UERJ/UGF)

Tendo em vista que a Grécia dominada superou o seu feroz vencedor e introduziu no agreste Lácio as artes, Graecia capta ferum victorem cepit et artes /Intulit agresti Latio(Horácio, Epist., Livro II,1,156), iniciaremos por esboçar o estudo gramatical entre os helenos. Francesco Della Corte admite como textos de primeira investigação filológica na Hélade Crátilo e Íon, de Platão e A Poética, de Aristóteles, i quali tuttavia più che di filologia si occuparono di etimologia l’uno e della condizione dei poeti, l’altro. Todavia, a iniciativa deu-se na era de Pisístrato, século VI a.C., qui primus Homeri libros confusos antea sic disposuisse dicitur ut nunc habemus, o qual, de modo pioneiro, afirma a tradição, organizou, assim até então, esparsos livros de Homero como o temos nos dias de hoje.(Cíc. De oratore, III, XXXIV) Se Eratóstenes aplicou a si mesmo o epíteto de filólogo na Grécia, em Roma o philologus foi Ateius Praetextatus (séc. I. a.C.).

Os resultados práticos e as teorias gramaticais, atrelados principalmente à filosofia, foram transportados para Roma e daí para o Ocidente. Crates de Malos, séc. II a. C., durante um contato diplomático com o poder público romano, estendeu sua estada em Roma e passou o tempo livre realizando comunicações sobre temas filológicos. Como fosse ligado ao estoicismo, partindo dos fundamentos platônicos, ensinou princípios da linguagem como ‘phýsis’, natural. Pertencem aos estóicos abordagens como ocorrências onomatopaicas e o simbolismo sonoro; muito desse estudo passou a uma etimologia fantasiosa; no entanto, o que séculos mais tarde Ferdinand de Saussure tomaria como uma de suas dicotomias, signifiant et signifié (SAUSSURE, Capítulo I), os estóicos formalizaram como oposição entre forma e sentido. Estudaram, com especial atenção, e em separado, a prosódia, a etimologia e as relações entre as palavras e o que elas significam. Quando os estóicos de Pérgamo, no século IV a. C., adotaram a anomalia como princípio lingüístico, partiram do ponto de vista que o surgimento da língua era natural, e não convencional, como era o pensamento dos filólogos de Alexandria. Para os alexandrinos, de influência aristotélica, uma segunda escola gramatical, a língua é, por convenção de agrupamentos humanos, analogia, regularidade, proporção, enfim ratio, razão.

Mas como Cícero, que deu nome a uma era, se posicionou diante disso? Procurou de pronto no dicionário latino nomes que correspondessem aos gregos, rejeitando termos como ‘etymología’ e ‘sýmbolon’ e adotando em seu lugar nota - sinal, marca e notatio - ação de marcar um sinal; observação, exame - sendo que substituiu este último pelo neologismo ueriloquium, dizer a verdade, fundamentado na explicação popular sobre a palavra (uerbum), daí uerbum boare, clamar a verdade e correspondente ao grego ‘étymon légein’, dizer a verdade. Podemos observar pelo comentário de Quintiliano (século I d.C.) que a fixação do termo etimologia seria inevitável: ‘Etymología’ quae uerborum originem inquirit, a Cicerone dicta est notatio, quia nomen eius apud Aristotelem inuenitur ‘sýmbolon’, quod est nota. Nam uerbum ex uerbo ductum, id est ueriloquium, ipse Cicero, qui finxit, reformidat. Sunt qui, uim potius intuiti, originationem uocent.(1,6,28), Etimologia, que investiga a origem das palavras, foi denominada por Cícero de notação, porque o nome dela encontra-se em Aristóteles como símbolo, como marca ou sinal. A esse respeito, retirando uma palavra de outra, isto é, formando “ueriloquium”, a qual (=a expressão etimologia) o próprio Cícero receia. Existem os que, antes por força de observação, a denominam “originationem”.

A proposta platônica no Crátilo fora um exame etimológico, no sentido pontual: ‘étymos’ = verdadeiro; ‘-logos’ = palavra, discurso; sufixo ‘-ia’, direcionando o escopo de sua pesquisa para a filosofia. Como ar em grego tem a forma ‘aer’, foi relacionada a sua etimologia a levantar (‘aírei’), por causa da forma, pois o ar levanta coisas do chão; o nome ‘héros’, herói, ligando-se a ‘éros’, amor, pois seria filho do amor - desprezando as respectivas vogais ‘e’ longas nas primitivas, das quais não poderiam derivar as breves ‘e’ nas segundas.

Os avanços da investigação clássica se realizaram pela sucessão cronológica: Platão, os estóicos de Pérgamo e Aristóteles, os pesquisadores de Alexandria. A doutrina, encadeada desde Platão aos estóicos, ainda que nos pareça caricatural à luz da ciência filológica moderna, em Nigídio Fígulo (final do século II a.C.), (apud Aulo Gélio, II d.C.), foi bastante seguida e fundamenta com explicação onomatopaica. A palavra era tomada como mimese do objeto denotado através da articulação vocal sonora. De modo que, em “uos” o ar vai para frente, porque é pronome de segunda pessoa e o seu significado com quem se fala: portanto, de acordo com a expiração do ar.

Também Varrão, Marcus Terentius Varro (116 - 27 a.C.), evitou empregar ‘etymología’; em seu lugar, usou a perífrase origo uerborum ou uocabulorum, origem das palavras. No livro V, De Lingua Latina, Varrão anuncia que vai expor a ciência que os gregos chamam de etimológica, quam Graeci uocant ‘etymologikén’ (com letras gregas). Há preocupação epistemológica em Varrão: ...praesertim cum dicat ‘etymologiké’ non omnium uerborum posse dici causam..., particularmente visto que se denomine um etimólogo, não poderia ser explicada a razão de todas as palavras...(L. Latina, VII,4) Foi aluno de Aelius Stilo (final do séc. II a.C.), que teve o mérito de interpretar o antigo Canto dos Sálios e ser especialista em literatura latina, mas, no domínio da etimologia, encontra a negação de Varrão. É que o seu argumento é estóico, mas se constitui em uma abordagem falha: analisa a razão da origem da palavra pela herança estóica ‘katà antíphrasin’, traduzida por Francesco Della Corte como per immagine contraria, assim o comentarista italiano explica a abordagem etimológica de miles: militem Aelius a mollitia ‘katà antíphrasin’ dictum putat, eo quod nihil molle sed potius asperum quid gerat, Élio julga o termo miles(soldado) proveniente por antífrase de mollitia (brandura), o que não é mole, mas que, de preferência, gera o áspero.(p.107) A restrição de Varrão é quanto à sua predileção pela etimologia e contrario, por antífrase; daí dizer que caelum (céu) provém de celatum (oculto, escondido), porque o céu é apertum (descoberto). Mas também condenou a descrição etimológica de lepus(lebre) provém de leuipes, como comenta Jean Collart, Varron Grammairien Latin, p.257. Aliás, a fama de etimologias fantasiosas de Élio fez rir Quintiliano (I,6,34): uolpes, quod uolat pedibus, volpes (raposa) porque voa pelos pés, ou seja, volpes seria a reunião vol + pés. Isso chegou até nós pelo De Lingua Latina, V, 101, de Varrão. Desse modo, um etimologista verdadeiro, no conceito de Varrão, confessaria a impossibilidade de ir além de certo ponto por falta de fontes fidedignas. Não é o caso de equus (cavalo), que apresenta as cognatas equites(cavaleiros, membros dessa ordem), eques (cavaleiro,homem a cavalo), equitatus (ação de andar a cavalo)(LL., VII, 4) E este certo ponto ele define como uerba primigenia, literalmente palavra primitiva. Primigenia dicuntur uerba ut lego, scribo, sto, sedeo et cetera, quae non sunt ab alio quo uerbo, sed suas habent radices, As palavras primitivas são lego (reunir), scribo (escrever), sto (estar em pé), sedeo (estar sentado) etc., que não são provenientes de outra palavra, pois têm suas próprias raízes. Embora a lista seja composta de verbos, a indicação foi casual, como comprovam múltiplos exemplos, colhidos na maioria do Livro V: barbatus vem de barba(129), capital de caput (130), Roma de Romulus (33 e 144), curare de cura (VI,46) e outros. Como reconhecer uma palavra primitiva? Como vimos, Varrão se restringiu a nos dizer: quae non sunt ab alio quo uerbo. De modo geral a busca etimológica não se apresenta como verdade absoluta. Daí, Varrão estipular a seguinte gradação etimológica, no De Lingua Latina, V ao VII: 1 - em primeiro grau, está o estabelecimento de uerba primigenia, porque estas são aperta, evidentes, embora se encontrem algumas obscuras: quae ideo sunt obscuriora, quod neque omnis impositio uerborum extat, quod uetustas quasdam deleuit, ne quae extat sine mendo omnis imposita..., algumas palavras são mais obscuras pela seguinte razão: porque nem toda imposição de palavras se manifesta, já que o lapso de tempo apagou algumas e nem toda (palavra) imposta se apresenta sem erro... As uerba primigenia são ancestrais de famílias. Não há em Varrão rigorosa distinção entre nomen, uerbum e uocabulum. Ele estabeleceu oposição entre origo uerborum, origem das palavras, e origo similitudinem, princípio de flexões, que ocorre no Livro X, 11 e 13.. Ainda há radices uerborum, que são os ramos de uma societas uerborum, família de palavras, cf. V, 13. 2 - em segundo grau, no Livro VI, l, ao inverso, nos diz ele: In hoc dicam de uocabulis temporum, neste (livro), investigarei as palavras que denotam tempo. São obscuras, quae obruta uetustate ut potero eruere conabor, tentarei, como puder escavar, as que estão enterradas pela idade. Neste grau, o gramático se torna um interpres poetarum, um intérprete dos poetas, formará, portanto, ao lado dos filólogos alexandrinos: Aristófanes de Bizâncio e seus discípulos. 3 - no Livro VII, Varrão ultrapassa o segundo grau, inspirando-se nos filósofos estóicos, a fim de analisar o vocabulário poético, com os seus nomes raros e arcaicos.

Há nessa escala acima uma gradação de dificuldades, até que o pesquisador se encontre pronto para atingir o quarto grau, o qual se define como um santuário secreto, adytum. Jean Collart interpreta que seja um grau pitagórico. Só é alcançado pelo supremo sacerdote, initia regis. Ele compara este saber com o do médico: quo si non perueniam ad scientiam, at opinionem aucupabor, quod etiam in salute nostra nonnunquam facit cum aegrotamus medicus,se a esse não chegarmos ao lado de uma simples informação, ao menos espreitaremos a opinião, como o faz o médico a respeito de nossa saúde, quando adoecemos algumas vezes. (V,8)

O indo-europeu, tronco lingüístico com ancestral comum há 3.000 anos a.C., foi localizado, ao que tudo indica, ao norte do Mar Negro, entre as cordilheiras Cárpatos e o Cáucaso. Forma uma unidade lingüística e religiosa, mas sem se ter constituído um império. Sua expansão se dá sobre a Índia e o Irã, bem como sobre o leste e centro da Europa, donde a dupla denominação. Os celtas tornaram-se na Europa o grupo ítalo-celta, fragmentado em itálico (latim, osco[falado ao sul do Lácio, documentado por inscrições em Cápua, a tábua de Bântia e o famoso “cipo de Abela”{a nossa palavra avelã < do adjetivo pátrio abellana < Abela, cidade de nuces abellanae, cf. Gladstone, IFP} e úmbrio: falado ao nordeste do Lácio, documentado em inscrições em bronze, encontrado num subterrâneo próximo a um teatro romano, na cidade de Gubbio) e em celta (o gaulês das Gálias e da Espanha e Ásia Menor (reino dos gálatas e o britônico, dominador da Grã-Bretanha). O latim continuou nas línguas neolatinas ou novilatinas. A descoberta do sânscrito, denominação de um ramo indo-europeu na Índia, a língua sagrada dos hindus - como o latim eclesiástico - no começo do século XIX, confirmou o conceito de parentesco lingüístico, quando foi relacionado ao latim e ao grego. A gramática de Panini (séc. IV a.C.) utilizou o texto sânscrito em suas abordagens. A partir dos estudos do indo-europeu, com o estabelecimento do método histórico-comparativo, tornou-se propício o advento da lingüística, e, em conseqüência, a etimologia assumiu uma averiguação de base científica. Um dos aspectos importantes é a possibilidade de se estabelecer uma correspondência entre as línguas irmãs e a matriz.

Alguns exemplos resumidos se seguirão aqui. Em indo-europeu, tem-se *kerd-, coração; em grego, kh'r e kardiva que correspondem apofonicamente ao latim cor, cordis, daí uma família etimológica portuguesa concórdia, discórdia, misericórdia...do latim e cardíaco, cardiopatia...do grego. O k indo-europeu corresponde ao h inglês: *kerd- > heart; está no alemão herz. O francês manteve o elemento latino:coeur, écoeurer (enjoar); cordial; recors (beleguim, agente da polícia); miséricorde; accorder...Do latim corrente o francês formou courage (< coraticum), assimilado por nós na forma coragem. O inglês ampliou o seu vocabulário com accord; courage... do francês. Há continuidade deste elemento em italiano (core, cordiale, concordia, ricordare) e espanhol (corazon,cordial, recordar, concordia). A raiz *kap-, cabeça, se ampliou através da base grega kephalé e latina caput. Em francês, evoluíram as formas chief; chapitre, achever, capituler, récapituler, capitaine, précipice, précipiter...Estas mesmas formas estão em português, ora por empréstimos ao francês, ora provenientes do latim tardio. Acabar, correspondente à evolução francesa achever, do latim *accapare, é forma do romance ibero (em espanhol: acabar). Embora o espanhol tenha aproveitado o tema amplamente, nos interessa o vocábulo caudillo, caudilho por empréstimo em português, provém de capitellu (cabecinha, chefe); em inglês, head e no alemão haupt, conforme o nosso quadro. Santo Isidoro, bispo de Sevilha no século VII, Etymologiae XIX, 31, 3, enriquece nosso estudo com: “Capitulum” é porque em geral dizem capitulare. Do mesmo modo cappa, ou porque tenha letras geminadas (ou vogal longa em cA) como a letra kappa, ou porque é enfeite da cabeça. O elemento *bha-, falar, pelo grego nos chega phemi, como eufemismo; trata-se de formo apofônica de fama do latim. São dessa família: 1- for,fari -falar; facundia, eloqüente; fabula - narrativa; affabilis - a quem se pode falar facilmente; ineaffabilis - o que não pode dizer. O último é de cunho romântico, pois o poeta romântico contemplava o mistério do mundo. Há ainda infans, que não fala, ou seja, infantil, infante em português; gerundivo fandus, freqüente nas formas compostas infandus, nefandus, (abominável). O épico Vergílio no II, 3: Infandum, regina, jubes renovare dolorem, Não possível exprimir, rainha, pedes renovar a minha dor. 2 - fatus,-a,-um: que falou: praefatio - o que se fala antes; fatum- destino; Fata - deusa do destino; fatalis - fatal, profético; fatidicus - que diz o futuro (fatum + dicus). 3 - proveniente de *fat- (nome de agente) < fari, forma o verbo fateri, fassus - confessar; profitEri . Vale um confronto com a evolução francesa: faconde - facúndia; fable, fabuleux; affable, infeffable - inefável; enfant, infantile, infanticide; préface; fée (fada), féerie (magia), féerique (mágico, corresponde ao empréstimo erudito féerico); fatal; fatidique; mauvais (lat. pop. *malifatius - que sorte ruim); diffamer, diffamation; professer, professuer, profission. O inglês tomou de empréstimo muitas palavras francesas. O italiano e o espanhol apresentam continuidade latina: a)italiano: favola, favolare, favoloso, infanteria (o português tomou de empréstimo infantaria; o inglês, infantry), fantaccino (soldado de infantaria). b)espanhol: habla - linguagem, hablar; hado(destino; hada - fada... Assim, fado é predição, oráculo. No sentido cristão, Santo Agostinho, Cidade de Deus: o nome “fati” fado nos faz fugir com horror, sobretudo por causa do vocábulo que ninguém se acostomou a entender o sentido verdadeiro.

Muito do pensamento de Varrão - apesar de seu total desconhecimento do indo-europeu, por isso mesmo é notável - se justapõe ao de Antenor Nascentes, totalmente fundamentado nos avanços modernos da lingüística: a pesquisa etimológica não é uma aplicação passiva das leis da linguagem... Uma parte muito grande ainda é deixada à imaginação lingüística, ao faro do sábio.(p. XIV)... A fundamentação científica desta pesquisa lingüística se estriba no método histórico-comparativo, o qual propiciou o estudo dos vocábulos na língua mãe e nas línguas irmãs, como já se disse acima, através do exame das transformações de forma - mas não restrito a leis fonéticas, se bem que também observadas certas condições de evolução fonológica - termo usado por se encontrar consagrado, mas aqui está no sentido de mutação, e não naquele sentido puramente positivista. O filólogo Antenor Nascentes nos legou uma obra científica, com clara intenção expositiva e sem economia de esforços quanto às fontes de consulta. Nas etimologias controvertidas alista os étimos propostos sem tendenciosidade. Não há neste dicionário etimológico quaisquer pressupostos extralingüísticos; portanto, não admitindo nas entrelinhas interpolação de historiadores ou sociólogos, o que está de acordo com o mais recente conceito de estudo etimológico, como orienta Émile Benveniste com o exemplo de feudum, termo germânico. Estabelece-se a sua significação: área semântica ligada a criação de animais e evita-se a inclusão da digressão histórica. O termo grego hegéomai e seu derivado hegemón são, para pesquisa lingüístico-etimológica, objeto de averiguação de como se constituiu a noção de hegemonia, ou seja, a relação de autoridade em hegemón e o verbo hegéomai, pensar, julgar. O historiador que verifique, dada a natureza do seu mister, a sua equivalência com imperium romano Tomaremos apenas o exemplo do elemento latino *peku como descrição na pesquisa científica moderna, como é a de Émile Benveniste, que afirma no Sumário do Capítulo 4, volume I: Para todos os comparatistas... o estudo de *peku com o sentido de riqueza é secundário ou extensão semântica. Com efeito, basta ler Varrão (L.L.) para saber o que se entendia por ‘pecunia’ em sua época. O gramático romano alistou outros termos ao lado deste: dos (dote); mercês (salário); multa (177, multa); sacramentum (180, depósito sagrado); tributum (181, tributo); sponsio (VI, 70,depósito garantindo uma promessa de casamento) (... )Isso significa que pecu e pecunia tem o sentido de “fortuna móvel”. À mesma conclusão nos levará a leitura de peculium, cujo traço de “posse pessoal” está em peculo(r), daí, peculatus, “apropriação (fraudulenta) do dinheiro público”.

A filosofia escolástica criou os termos denotação e conotação na sua teoria da linguagem, mas ainda integrando as abordagens gramaticais nas teorias filosóficas e em princípios religiosos. Modernamente, entende-se por denotação, conforme o seu sentido latino “denotatione(m)”, indicação, a referência mental ao mundo biossocial e, como seu sentido é extensivo, isto é, trata-se de uma representação do mundo exterior e interior, pressupõe a polissemia (poli=vários; sem-=sentido(s)+ -ia). Assim, na formação das palavras, a contribuição da metáfora (meta=além de, mudança; fora= levar: relação por analogia, comparação e similitude) e da metonímia (meta=além de, mudança; ónoma, nome: relação por contigüidade) é definitiva. O termo língua, mão, cabeça e outros compõem metonímias que enriquecem o nosso dicionário. As metáforas resultantes de linha, ponto e outras aumentam e muito o nosso vocabulário. Às vezes, uma metonímia se consolida numa metáfora, como cabeça de alfinete, cuja denominação de catacrese, mais rigorosamente, é classificação da retórica. Os estudiosos de retórica afirmam que o nosso pensamento é metafórico, desde Aristóteles:

A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. Neste ponto distingue-se de todos os outros seres, por sua aptidão muito desenvolvida para a imitação. Pela imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam prazer. (ARISTÓTELES, p. 266)

Na antropologia e filosofia já se aborda a questão da construção do saber a partir da metáfora. Por isso, um falante nativo aprende que o arco-íris tem “n” cores, mas poderá achar difícil o discernimento delas, como é o caso de se descrever em português as nossas sete cores, ou as do nativo inglês com seis ou, quem sabe, talvez as do nativo bassa da África com duas. Para a psicanálise, o inconsciente está estruturado como linguagem. Para Freud, o discurso consciente é cheio de lacunas ou lapsos e isso é observável, fundamentalmente, no sonho. Recentes estudos lingüísticos e retóricos observam que os mecanismos de formação de uma metáfora suprimem segmentos semânticos e favorecem a permanência de outros. Isso se comprova quando descobrimos algumas palavras na sua origem, como cratera (=buraco), que etimologicamente em grego significa vaso grande - do qual só houve permanência da boca do vaso, deteriorando os outros segmentos semânticos. Em alarme (ou mais rigorosamente alarma, gritaria, aviso de perigo) provém da expressão italiana alle arme, para as armas - restando apenas o traço do alarido. O velho hábito do véu branco é uma associação ou analogia entre o véu da noiva e a cor branca da nuvem, em latim nubes,-is, donde, em latim, o verbo casar-se (falando da mulher) nubo, -is, -ere, nupsi, nuptum deriva do substantivo latino. Candidus significa branco e, como o seu derivado candidatus, o candidato se vestia de branco para expressar a sua pureza, o termo se condensou, como os já citados, pelo deslocamento através dos tempos. Com estes poucos exemplos já podemos afirmar que é uma tendência nossa armazenar um inventário de vocabulário, cuja base é metafórica. A metáfora é, pois, uma comparação e, a rigor, sem o termo comparativo. Em “cabelos de neve” eliminamos o termo de comparação “tão ... quanto”. Há, portanto, um desvio de significação, se atentarmos para o plano imediato da expressão (=o que tem a ver cabelo com neve?); isso se passa, pois, no plano sintagmático e trata-se, de fato, de uma impertinência ao código do discurso. Se analisarmos quanto ao código da língua, no plano paradigmático, esse desvio, agora minimizado (=ou não percebido), é uma metáfora. Essa linguagem é denotação.

Conotação é quando usamos a linguagem para manifestar nossos sentimentos ou emoções e nossa vontade. Situa-se a conotação na área da estilística. Há presença de linguagem conotativa, além da poesia, em provérbios, publicidades e propagandas, explorando a energia da sua expressividade. A conotação é decorrente de múltiplos fatores, como na fonologia, aliteração é a colocação de fonemas repetidos (distantes ou próximos) e simetricamente dispostos como é o caso de /b/, /z/, /j/ e /s/ em “Auriverde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança (Castro Alves), dentre outros recursos como a cacofonia, onomatopéia etc. Conforme a tradição retórica: na sintaxe é silepse, anacoluto etc.; como nas figuras de pensamento: hipérbole, eufemismo, personificação etc.; nos tropos, ou figuras de palavras é o símile ou comparação: “(Iracema) tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.” (Iracema, de José de Alencar, c.II, p. 14, S.Paulo,: Melhoramentos) - a denominação de comparação se distingue de metáfora apenas no rigor da Retórica, uma vez que a metáfora também é uma comparação. A diferença é feita por causa da presença da palavra gramatical que estabelece a comparação: mais...que. Outras palavras que criam comparação são: assim, assim como, tanto...quanto; como; menos...que(=do que) etc. Se tentarmos separar as figuras de linguagem por ponto de vista gramatical, ou seja, observar se elas são de ordem sintáticas ou semânticas, nos encontraremos em sérias dificuldades. O melhor é unir critérios gramaticais. Basta verificar a situação gramatical do símile, que é um tropo, mas a sua formação é sintática. Há nos leitores, às vezes, dificuldade de identificar a personagem dos escritores como metáfora. Por exemplo, como primeiramente depreender o significado de Simão Bacamarte em “O Alienista”, de Machado de Assis? Em seguida o que dizer do seu sentido?

Poetas, como Vergílio (século I a.C.), tiraram energia da etimologia; assim, o nome César, a partir da obra poética vergiliana, adquiriu a reputação de imperador e, por isso, os sérvios e búlgaros se intitularam czar, de César. Entre os alemães, a forma é Kai’ser. Luís Vaz de Camões, ao dedicar Os Lusíadas a D. Sebastião (1554-1578), colaborou com o sebastianismo - crença viva, ainda hoje, na volta de D.Sebastião da guerra na África. Sebastião provém do grego e este adjetivo sebastós significa venerável, augusto. Augustus, em latim, era um adjetivo também, mas o Senado romano o acolheu e o aprovou como título de Otaviano (63 a.C. a 14 d.C.) para fundar a pax romana de Augusto César. Em José de Alencar, Iracema admite uma longa leitura etimológica, a começar pelo tíitulo Iracema (ira, mel, cema, lábios). A profecia ocorre pelo Nome: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco).(Mt 1,23)

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