O CHAMADO DIALETO CAIPIRA
NO CONTEXTO LINGÜÍSTICO NACIONAL

Ruy Magalhães de Araújo (UERJ)

Dentro do contexto lingüístico nacional, o que não se pode negar é que a marca irrefutável do caráter polimórfico ou multiforme do idioma.

Isto se manifesta através dos seus aspectos fonéticos, morfológicos, sintáticos e lexicais.

Nesta apresentação, daremos ênfase às características fonéticas do Português do Brasil, com vistas ao chamado dialeto caipira.

Para os estudos dos fatos fonéticos, consideraremos dois grupos, como antes também já o fizera o Professor Celso Ferreira da Cunha:

a) Fatos que apresentam conservação;

b) Fatos que apresentam inovação.

Os primeiros referem-se àqueles que «apresentam a conservação de pronúncias atualmente de nula ou escassa vitalidade na península» os segundos dizem respeito aos que «à falta de sua documentação nos falares portugueses de qualquer época, devem ser considerados inovações americanas» (Ibidem, p. 204.)

Partindo desses dois parâmetros, passemos a considerar:

i - Exemplos de conservação

1) fechamento do [e] e [o] ao que tudo indica os antigos e e o pretônicos, não originados de crase, pronunciados em Portugal até o século XVIII, e ainda existentes nas regiões centro e sul do Brasil:

[pe´ gar], [kor´ tar];

2) abertura do a pretônico, não proveniente de crase:

[ma´ deyra], [ma´ deyra];

3) maior abertura do a final átono:

[´ tira] e não [´ tira²a²], como na variante européia;

4) alternância polifônica das pretônicas e/i e o/u, que nos séculos XVI e XVII já se conhecia:

[ê´ trar] / [î´ trar]; [kos´ tumi] / [kus´ tumi]; [me´ ninu] / [mi´ ninu];

5) realização [e], ao preceder consoante palatal de vogal tônica que, na região de Lisboa, no século XIX, evoluiu para a:

[´ fesu], [is´ pezu], [´ tenu];

6) realizações [ey] e [êy] dos ditongos pronunciados [ay] e [ay] na região de Lisboa e em outras áreas de Portugal:

[bêy] / [bay];

7) realização sibilante do s e do z pósvocálicos, neutralizando-se em [s] em final de palavra ou diante de consoante surda; e em [z] precedendo consoante sonora:

[a´ tras], [´ lista], [´ fas ka´ lor], [ma´ razmu], [´ maz ´lîgwas]. tal fato ocorre na maior parte do Brasil.

8) notório nasalamento de vogais ou ditongos que precedem imediatamente sílaba iniciada pelas consoantes m, n e nh, com o conseqüente fechamento das vogais a, e e o: [cãma], [fãina], [fêno], [sõnho]. esse fenômeno é muito comum à maioria dos falares brasileiros e aceito, inclusive, pela norma culta. era a pronúncia dominante nos séculos XVI e XVII nas províncias do norte de Portugal.

9) desaparecimento de articulação do s que precede o c em palavras como descer e nascer , fato que hoje se realiza em Portugal como [s]:

[de´ ser], [na´ ser] e não [des´ ser], [nas´ ser].

Os fatos que se irão seguir possivelmente também representam, segundo o professor Celso Cunha, «a conservação, no Brasil, de estágios anteriores do idioma.». (Ibidem, p. 205, 206.) Vejamo-los:

«a) a realização [i] do -e gráfico final [´tardi], geral no centro e norte do país e que, segundo os testemunhos de Luís Caetano de Lima e Luís António Verney, era ainda a pronúncia vigente em Portugal na primeira metade do século XVIII;

b) a realização africada [ts] do ch gráfico,em regiões mal delimitadas de são Paulo, Paraná e mato grosso, pronúncia que era a mais geral no século XVI e a que ainda prevalece na maioria dos dialetos setentrionais portugueses e na totalidade dos dialetos galegos: [tsavi], [a´ tsar];

c) a realização da africada paralela [dz], atestada no falar caipira e, também, em crioulos e falares fronteiriços portugueses, que, para Révah, representa «un archaísme remarquable», mas de vitalidade restrita a certas regiões de Portugal quinhentista;

d) as pronúncias populares regionais ũa e lũa, que eram as da própria língua culta nos séculos XVI e XVII, documentadas que estão nas obras de Camões e Gregório de Matos.

e) uma certa fricatização, com aparência de ditongação, notada por Oscar Nobiling na pronúncia de nossas nasais e por Gonçalves Viana na emissão das mesmas vogais em falares arcaizantes do norte de Portugal;

f) a pronúncia oclusiva do b, do d e do g intervocálicos, que foi substituída em quase toda Portugal pela realização fricativa, tendo-se conservado apenas na região que vai de Portalegre a Mértola e numa parte do Algarve.» (Ibidem, p. 206)

ii - Exemplos de inovação

1) a pronúncia palatal chiante do -s pós-vocálico, que é uma das caraterísticas do linguajar carioca, e que também se comprova em certos pontos do litoral brasileiro, como a cidade paulista de santos:

[uš bõs], [uš ga´ tus]. Entretanto, antes de palavra começada por vogal ou -h mudo, zeta-se, ocorrendo a ligação: [muita zavis] /muias aves/;

2) neutralização do timbre fechado de e e o pretônicos, sejam provenientes de simples vogal latina, sejam de uma crase ocorrida dentro da língua portuguesa, perfeitamente distinguível em Portugal:

[pare´ ser], [iske´ ser], [mo´ rar] [ko´ rar];

3) neutralização do timbre aberto da vogal a, notada principalmente entre a 1ª pessoa do plural do presente e a do pretérito perfeito do indicativo de verbos da 1ª conjugação:

[a´ manus], [a´ mamus];

4) surgimento de um iode (у) antes de -s implosivo, mormente quando se palatiza em [s], havendo possibilidade de, por exemplo, de fazerem-se rimas do tipo: vez com seis, atrás com vais, atroz com sóis, nus com azuis, etc.

5) epêntese de i e de e, desfazendo-se certos grupos consonantais:

adivodado por advogado (e também adevogado), peneu por pneu;

6) vocalização do l implosivo, fato que é comuníssimo em todo o Brasil, com execeção do extremo sul:

[karna´ vaw], [ã´ new]; [kã´ niw], [´ towdu], [sow].

7) palatização e passagem à africada dos grupos ti e di:

[´ otsmu], [´ odzu];

8) abertura das vogais pretônicas, no nordeste e em áreas da região norte, de palavras que não sejam diminutivos nem advérbios terminados em mente:

[pe´gar], [ko´ rer], [mo´ vimẽtu]. Sobre o assunto, é útil transcrevermos as palavras do Professor Celso Cunha: (...) fenômeno cuja origem, depois de tantas e tão variadas explicações, que vão desde a ação de substrato indígena até a influência da pronúncia erasmiana do latim, continua no grau zero da inves­tigação realmente científica, mas cuja funcionalidade parece estar condicio­nada, em muitos casos, à harmonização vocálica. (Ib. p. 209,210.)

9) O ieísmo representa a passagem da palatal [l] a [y], fenômeno que alguns estudiosos afirmam ser um fato geral na linguagem popular brasileira, o que não é consistente, todavia, em razão dos ensinamentos fornecidos atualmente por alguns mapas lingüísticos:

[´ fiyu], [or´ vayu], [´ karvayu];

O ieísmo é, de um modo geral, fato românico conhecidíssimo. no caso brasileiro, porém, existem forte razões para que o consideremos um caso interno de desfonolização popular.

10) ensurdecimento das consoantes finais -r, -l, -s: fazê, generá, as casa;

11) assimilação do d ao n no grupo nd:

andano por andando;

12) passagem do o tônico a u, fenômeno muito comum nas regiões ribeirinhas do Pará e Amazonas:

[ku´ ku] , [kanu´ a] , [pru´ a] ;

13) despalatização do l em áreas da Bahia e do nordeste:

[mu´ lé]; [ta´ lé], [ku´ lé];

14) iotização do r (e do l tornaodo r) pós-vocálico, com ocorrência em determinadas áreas do nordeste e de Goiás:

coigo de corgo por córrego; aima de arma por alma;

15) pronúncia do r retroflexo do dialeto caipira em São Paulo, sul de minas e em outras regiões do Brasil;

16) passagem [z] a [y] em povoações do litoral paranaense:

[i´ greya] por igreja;

17) substituição do v por uma aspiração, em regiões nordestinas;

[a´ hia] por havia; [´ hãmus] por vamos;

18) passagem também a uma aspiração do [z] e do [z] antes de vogal palatal, atestada em linguagens rústicas de povoações cearenses:

[´ hêti] por gente; [fa´ hêda] por fazenda;

19) redução de inho , sufixo, [ĩ], de muito uso no interior do brasil:

[kã´ mĩ] por caminho; [ta´ dĩ] por (coi)tadinho, com aférese;

20) monotongação dos ditongos [ay] em [a] antes de [s], e [ey] em [e] antes de [s], [z] e [r]. trata-se de fato ainda discutível como inovação, posto que tal fenômeno já ocorria no português do século XVI, haja vista os registros documentais de baxa e pexe em Os Lusíadas:

[bašu] por baixo; [peši] por peixe; [kežu] por queijo; [pe´ dreru] por pedreiro; [janeru] por janeiro. o mesmo se verifica com o ditongo [ow] em [o], comumente usado no Brasil, e em Portugal desde o quinhentismo: [loku] por louco;

21) realização de [e] e [o] (e e o gráficos) no início, no meio e no final de palavras, peculiar ao Rio Grande do Sul e algumas áreas do Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul, explicável por alguns como influência espanhola (inovação) e por outros, -- Révah, por exemplo, -- como manutenção de um estado antigo do português (conservação):

[a´ ceite], [a´ migo], [a´ deãte], [avãte] [akuzo], [de nosa parte];

22) mudança de l em r no Dialeto Caipira e outros falares brasileiros:

[cra´ ru], [fra´ mêgu], [î´ frasãu]. tal fenômeno, a despeito de já se ter incorporado à linguagem popular brasileira, segundo alguns autores constitui resquício da evolução normal dos grupos de l do latim vulgar para o português: brando<blandu; pranto<plantu; craro (arc.)<claru; fror ou frol (arc.)<flore;

23) desnasalização de formas como:

[´õmi], home por homem; [´virzi], virge por virgem.

Sabe-se que a forma ome empregava-se na língua arcaica literária; também muitas outras palavras do latim com a terminação -ine sofreram a perda de nasalidadde, ao evoluírem diacronicamente:

lumine>lume; nomine> nome; vermine>verme;

24) também ocorre desnasalizzação das formas da 3ª pessoa do plurlal dos pretéritos perfeitos e mais-que-perfeitos do indicativo:

amaro por amaram; dissero por disseram; partiro por partiram; cantaro por cantaram.

Historicamente, tal fato pode representar as antigas formas: amarõ, disserõ, partirõ, cantarõ da norma culta portuguesa e que ainda se conservam em algumas localidades do norte de portugal. note-se que na fala dos antigos escravos negros e entre os falantes do dialeto caipira registram-se: amarum, disserum, partirum, cantarum;

25) surgimento de ditongos nasais /ein/ (em) e /õu/ (om) em palavras como: viazein por viagem; virzein por virgem; bõu por bom, sõu por som. Também aparecem as formas: u, tãu sãu. Todos esses registros pertencem ao dialeto caipira;

26) aférese em palavras como: por está; por estou; brigado por obrigado; péra por espera.

O metaplasmo por subtração verifica-se também em sintagmas inteiros: num dianta ocê rancá as pranta do chão por não adianta você arrancar as plantas do chão.

Amadeu Amaral, grande estudioso da fala caipira, escreveu a notável obra: O Dialeto Caipira, da qual condensamos aqui alguns fatos:

a) abrandamento: guspe = cuspo = musga = música. é de notar que nos esdrúxulos cócega, náfego e látego se dá o contrário:

cóciga (e coçca), náfigo e látigo.

b) assimilação -- progressiva: Carro = Carlos; regressiva: birro = bilro; açcançá = alcançar; digêro = ligeiro (g palatal explosivo = dg).

c) aférese: (a)parece, (i)magina, (ar)rependeu, (ar)ranca; (a)lambique, (al)gibêra.

d) síncope: pês(se)co = pêssego, mus(i)ga = música, isp(i)rito, ca(s)tiçar, jeró(ni)mo, ridíc(ul)o.

e) apócope: ligite(mo).

f) prótese: alembrá = lembrar, avoá = voar, arripiti = repetir.

g) epêntese: rec-u-luta, Ing-a-laterra, g-a-rampo.

h) epítese: paletor.

i) metátese: perciso, pertende, purcissão, partelêra, agardecê, aquerditá(r).

i) hipértese: agordão (algodão), cardaço, chacoalhá(r), largato.

devem mencionar-se ainda as formas proclíticas:

de senhor -- nhô, seô, seu, siô, sô;

de senhora -- nhá, seá, sea, sia, sa;

de minha -- mea, e mha;

de sua: -- sa;

de não -- num.

A diferença fundamental entre os idiomas falados no Brasil e em Portugal reside na pronúncia ou a dessemelhança existente no plano prosódico ou supra-segmental.

O assunto é vasto, abarcando longas considerações e já foi objeto de estudos e pesquisas de eméritos foneticistas, como Gonçalves Viana, havendo, entretanto, muita coisa a ser feita.

Em verdade, a fala portuguesa caracteriza-se por uma dicção rápida, áspera, enérgica. A fala brasileira possui uma dicção branda, vagarosa, dolente, lenta, arrastada, demorada, com o alongamento das vogais pretônicas.

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