O PORTUGUÊS DO BRASIL NO PERÍODO COLONIAL

Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick (USP)

Já há algum tempo, vimos examinando as características formadoras do português do Brasil (PB), do ponto de vista lexical e semântico, em função de nossos estudos dirigidos, essencialmente, à Onomástica, em seus dois ramos teóricos, a Toponímia e a Antroponímia, cujo eixo central é o nome próprio.

Na Onomástica, o nome próprio não se esgota em si, ou no ato da nomeação dos lugares e das pessoas. Como signo lingüístico, o nome próprio, em nosso campo de trabalho, atinge outras dimensões culturais, voltadas aos aspectos etno e sociolingüísticos. Com isso, entramos também no campo da dialetologia, das variações de uso da língua dominante em determinados períodos de sua historiografia interna e externa, e na fixação da vertente brasileira do português europeu-(PE).

Esta vertente nacionalista da língua transplantada não se formou pacificamente como decorrência de um deslocamento físico do grupo. Ao contrário, deixou em seu caminho os rastros de uma civilização e de uma cultura que não conseguiu superar o confronto com os recém-vindos, sucumbindo ao peso de sua organização e de sua estrutura mais unitária. Silva Neto (1963: 13.Introdução) toca nesse ponto ao se referir à “vitória” do português “sobre línguas exóticas” - como define nossas línguas indígenas - e sua progressiva implantação “no uso de grandes massas aloglotas”.

Essa sua organização interna permitiu ao português, como código, uniformizar as diferenças que as origens variadas do homem lusitano, em seu país, marcavam as formas de expressão, tudo se fundindo “num denominador comum, de notável unidade” (id.: 15). É o que o autor chama de koiné costeiro dos primeiros tempos, ancorado nos esteios de língua literária, em contraposição ao agrafismo dos autóctones. Estabelece, assim, logo no início de suas considerações sobre o PB duas dinstinções que irão percorrer toda sua obra: a- os usos distintivos do PB, do ponto de vista diafásico (uso literário, culto; uso corrente; familiar, popular, gíria; e uso regional: regionalismos e brasileirismos), em oposição ao uso padrão do português europeu (PE); b- a oposição lingüística funcional do PE - língua culta, de maior prestígio e demanda social - em relação ao PB, falado pela população nativa, negros e mestiços, definido pelo autor como uma espécie de crioulo ou semi-crioulo.

O PE, ao entrar em contato, no país, com tantas coisas novas, como diz Silva Neto, conservou os princípios fundamentais da língua estabelecida na origem, desde a formação do galaico-português, que continua sua trajetória nos textos escritos que aqui continuavam a ser produzidos, e no ensino oficial, nas escolas de “ler e contar”, organizadas pelos inacianos. O PE, porém, na América, inovou-se na mobilidade lexical, à medida que a conquista da terra dependia também da fixação da língua transplantada, nos objetos de troca, nos valores espirituais, nas situações dialógicas quotidianas. Estabeleceram-se, assim, através da linguagem, contatos efetivos entre os habitantes e os outros, fossem portugueses, estes, principalmente, ou franceses, espanhóis ou holandeses. Instalava-se, assim, paulatinamente, o sistema bilingüe na colônia, embora cada um dos grupos em presença continuasse monolingüe em suas relações internas. Na prática, no início, tratava-se de um bilingüismo assimétrico de uns e não de todos. As raízes psicológicas de cada grupo, índios e não-índios, forçando a manutenção de suas crenças e mitos, certamente dificultavam a assimilação espontânea de cada uma das linguagens, não permitindo ainda que se falasse em um bilingüismo simétrico, o que é natural.

Do lado português, mais que reações noológicas, havia o interesse prático, forçando o aprendizado da língua da terra, a primeira, cujo resultado foi uma forma de expressão adaptada à maneira de falar de cada um dos aprendizes. Nem o tupi puro, nem o português puro, mas um e outro com alterações em alguns dos planos estruturais das linguagens, o fonético, o sintático, o lexical. Veja-se, a exemplo, a afirmação de D. Jeronymo Contador D’Argote (“Dos dialetos da língua portuguesa”, 1725, ap. Vasconcellos, 3ª ed., 1987, folha de rosto): “O modo com que se falla a lingoa portuguesa nas terras, v.g. da Beira é diverso do com que se falla a mesma em Lisboa, porque em uma parte se usa de umas palavras e pronúncia, e em outra parte se usa de outras”.

O pensamento do autor sintetiza, claramente, o que se procurou evidenciar: a diversidade ocorrida no material lingüístico de um sistema não acontece apenas por fatores externos ou pela ação de aloglotas, mas internamente, do ponto de vista de tendências já manifestas intra-códigos (derivas linguísticas), como evolução do próprio sistema. No PB, devem ser sempre avaliadas e consideradas as interferências dos grupos em presença como elemento desencadeador de mudanças sensíveis nas línguas.

Leite de Vasconcellos, nos estudos filológicos do PE (ib: 27 e seguintes), definiu os dialetos portugueses como “diferenciadores locais” da língua, e os co-dialetos como “idiomas particulares que, não sendo rigorosamente português, estão, entretanto, em íntima relação com essa língua”. Distingue, no primeiro bloco, três categorias: dialetos continentais, insulares e os de ultramar, dentre estes, o que chamou de “dialeto brasileiro”, colocando, também, no quadro, os crioulos do indo-português e das possessões de África. A respeito dos dialetos de ultramar, categoriza-os como “une évolution du portugais de la même époque, cependant dans des millieux différents de ceux dont je viens de parler et qui ont agi sur notre langue d’une manière particulière”(ib. 30). Essas diferenças, porém, não chegam a tornar incompreensíveis as línguas envolvidas. As variações estudadas nas unidades lexicais do PB foram de ordem fonológica, morfológica, sintática, lexical e semântica. Neste último campo, de nosso interesse, Vasconcellos refere-se às palavras indígenas e africanas (ib:134), invocando, em abono, Sílvio Romero e José Veríssimo, entre outros. Os exemplos do Tupi que arrola, porém, referem-se, apenas, às diferenças de realização de nomes próprios portugueses como Francisco (Panacicu), Lourenço (Rorê) e Rodrigo, que os índios não conheciam. Na prática, nada mais eram que formas sem significação, uma vez que não traduziam o universo referencial nativo, cujos antropônimos revelavam, nos elementos constitutivos, os traços da ancestralidade étnica. Eram únicos e singulares para refletir as características que o grupo considerava desejável para seus meninos, futuros guerreiros.

Diante dessas línguas étnicas,. Vasconcellos alerta que nem sempre o imigrante se saía bem, fosse português ou espanhol, expressando-se mal nelas, como ocorreu com a situação concreta da Argentina que noticiou. Mesmo a opção pelo monolingüísmo não sai ilesa do contato, alguns elementos do código vizinho permanecem com maior ou menor vitalidade no outro sistema. Ainda que isto aconteça, nem sempre se pode falar em pidgin ou crioulização, baseados nos substratos de origem, que Silva Neto define como “deturpação e simplificação extrema da língua base” (Introdução, 1963:140).

Não apenas com as línguas indígenas brasileiras ocorreu esse processo de interculturação e trocas, mas também com as línguas africanas, aqui faladas tanto na zona urbana como na zona rural. Nesses dois códigos minoritários, a paulatina absorção ou diluição das estruturas no superestrato do português, a chamada aculturação ou deculturação traduz a inversão dos valores etnolingüísticos e culturais, hoje em fase de revitalização. Os descendentes indígenas estão sendo reconhecidos pelas etnias de origem, acrescidas ao prenome brasileiro, para apagar de vez a imagem do índio genérico, sem filiação a grupos. O negro brasileiro, que não é mais africano de origem pela mestiçagem cada vez mais flagrante, deseja ser conhecido, atualmente, por uma nova designação, os afro-descendentes. Como o índio de Colombo e dos tempos coloniais, é também uma expressão genérica que, para surtir os efeitos desejados, deveria ser substituída por outra, mais direta, os afro-brasileiros.

De qualquer modo, a própria dialetologia luso-portuguesa estabeleceu uma dinstinção léxico-cultural em função do desempenho lingüístico dos africanos: os boçais e os ladinos , os primeiros não falavam o português, apesar da língua estar presente nas costas da África, no século XVI; aprendiam com os segundos, que conheciam a língua simplificada, deturpada ou crioulizada, como diz Silva Neto. Isto também acontecia em outras colônias de ultramar, com franceses, holandeses e ingleses, gerando crioulos dessas origens (Silva Neto, ib: 141).

Se, nos crioulos, podia-se ver, de um modo geral, o lastro da variação lingüística, nos falares rurais, uma de suas caraterísticas era o conservadorismo da primeira camada, no nosso caso, a portuguesa, pelo menos em relação à geração mais antiga. Nesse meio, surgiu a sub-cultura caipira, resultante de antigos aldeamentos; o mestiço mameluco aí se infiltrou, mais que o mulato, afeito às plantações de café, preferencialmente.

O que se verifica nessas colônias de ultramar, de mão dupla, em que vários grupos de etnias diferentes utilizavam-se de dialetos não comuns entre si, é o papel unificador do português, que aí se tornou língua geral ou de comunicação. O seu aprendizado era aspiração de muitos, para ascenção social em termos de comércio, pelo menos daqueles em idade produtiva.

Silva Neto (ib: 73), com base nesses antecedentes históricos externos e na documentação historiográfica, estabeleceu três fases distintas para o estudo do PB:

a) 1532 a 1654, que se pode chamar de reconhecimento da terra, implantação dos governos gerais e do português como meio de comunicação ou língua superposta;

b) 1654 a 1808, fase imigratória por excelência;

c) 1808 em diante, deslocamento da corte portuguesa para o Brasil, que acarretou mudanças políticas sensíveis na organização geral da colônia e das cidades tornadas imperiai, depois republicanas.

Neste trabalho, não apenas a fase 1 como a fase 2 da língua têm interesses referenciais porque, em ambas, ocorreu o registro da questão da identidade étnica brasileira, representada pelos dois adstratos sócio-culturais (português + línguas indígenas brasileiras), geradores dos fenômenos chamados línguas gerais.

A situação etnolingüística da colônia dos séculos XVI ao XVIII; as línguas gerais brasileiras e a documentação

A situação do Brasil, durante os dois primeiros séculos coloniais, apresentava-se, na prática, como uma mistura de nações e etnias e, conseqüentemente, de línguas. Muito embora os portugueses considerassem apenas a língua dominante na costa como o idioma da terra, que teriam de aprender para garantir os frutos da conquista, um grande contingente de falantes de outros idiomas nativos se alinhava do leste para o interior. Estabeleciam, geograficamente, uma outra realidade cultural desprezada pelos missionários, mas que interferia no quotidiano de todos, índios e não-índios, incluindo negros e mestiços. O aprendizado do que veio a se chamar “língua geral” era o aprendizado do tupi antigo, repartido, lingüisticamente, em vários sub-grupos locais, que definiam a fala típica litorânea.

Nos contatos iniciais com esses grupos, não se pode falar ainda, como se disse, em situação bilingüe ou plurilingüe considerando-se os povos não-tupis do interior. Mais aconselhável, como diz Herman Paul (1966: 409), para definir essa situação, é o uso do conceito de cruzamento de línguas que, em sentido restrito, “é primeiro a influência duma língua sobre outra que não tem nada que ver com ela ou, se lhe é afim, na origem (que não era o caso do português e das línguas indígenas em presença), se diferencia tão fortemente dela que a primeira tem de ser aprendida separadamente”.

O bilingüísmo se instalou depois, a partir do aprendizado progressivo dos idiomas, o interesse maior, pela necessidade, sendo o do português. Ressalva o autor: “o que se adota da língua estrangeira tem de ser compreendido, mesmo que não o seja exatamente” (ib : 410).

É importante convir, ainda, que, na colônia, no confronto das nações variadas, lutando pela sobrevivência entre si e contra os de fora, o português teve maior êxito, cultural e lingüisticamente: “se uma das nações tiver uma supremacia decisiva sobre a outra, quer pelo volume de sua população, quer pelo poder político e econômico ou pela superioridade espiritual, então o emprego de sua língua estender-se-á cada vez mais à custa da outra; do bilingüismo regressaremos à unidade lingüística” (Paul: 410).

Nos cruzamentos ou interferências de um código em outro, a troca vocabular entre falantes de línguas diferentes ocorre para definir “conceitos para os quais faltam-lhe uma designação na língua materna”(Ex.: “missa”, introduzida pelos padres no século XVI, na catequese); do mesmo modo, os portugueses adotaram as palavras indígenas que definiam objetos desconhecidos (ex. igarapé, ubá, enduape, arasoya), ambos os grupos, porém, procuraram adaptar ao seu código, em certos casos, objetos e conceitos que desconheciam, utilizando seu próprio modelo vocabular (ex. itá, “pedra/metal”; itaetê, “aço”; itajubá, “ouro, moeda, dinheiro”; itatinga, “prata”), numa das primeiras formações neológicas ocorridas no mundo novo. O português aprendeu a usar, paralelamente aos seus paradigmas tradicionais, que não substituiu pelos novos, termos como ytu (“salto”), paraná (“rio grande semelhante ao mar”), iaci (“lua”), (a) pe (“caminho”). Aprendeu também a utilizar designativos de objetos geográficos como se fossem os próprios topônimos, criando, assim, uma outra categoria de nome próprio, os topoi (como ybytyruna, “morro escuro”, var. ibituruna, Ibituruna, morro MG), rio Paraná (“rio rio”), ybytyra (ibitira, “serra”), itaim (“pedrinha”, bairro em São Paulo), itaí (“rio da pedra”, município SP).

O sistema das trocas lingüísticas, nos primeiros tempos, excedeu a oposição monolingüísmo/ bilingüísmo, pois compreende em si o processo interculturativo, comum em toda a América. Como exemplo, fora das fronteiras brasileiras, cite-se a situação plurilingüe em Sierra Nevada de Santa Marta, “donde se habla desde tiempos imemoriales cuatro lenguas de origen chibcha, más dos lenguas sagradas. Donde desde la llegada de los españoles se vienen, dando procesos de colonización que han intentado, por una parte, la imposición del español y, por otra, la anulación de las lenguas indígenas” (Amaya, 1995: 294).

A imposição da língua acarreta, em decorrência, a imposição dos traços culturais do grupo ou nação dominante à nação ou grupo minoritário. Esta perda gradativa dos valores sociais comuns define o grau maior ou menor de ser (ou não) “civilizado” e o abandono dos costumes ou práticas nativas. Esse conceito perpassa os tempos, o que se nota examinando-se um texto de Barqueiro Paraíso (Revista de Antropologia, 1987/88/89: 94-95), relatando experiências posteriores de política indigenista brasileira do século XIX; ou seja, aos índios já “civilizados” seria assegurada e garantida a manutenção de direitos relativamente à tutela e à emancipação civil. Em outros documentos citados pela autora, aparece a expressão em uso: “200 índios civilizados que se ocupavam da pesca e corte de madeira”, na Vila de Olivença, BA (ib: 95). “Índios civilizados” também foram identificados como “os mais ajustados aos padrões nacionais”(ib: 94). Quando isso ocorre, nada ou quase nada resta da língua: “da sua língua primitiva, não encontramos mais vestígios algum entre eles; falam um português deturpado. Parecem-se, esses índios (Tupiniquim) de todos os que se teve a oportunidade de observar no Brasil, os mais assimilados aos europeus” (Spix e Martius, 1976: 159; ap. Paraíso, ib: 87). O bilingüismo adquirido e os empréstimos lexicais que acabam forçando a perda de línguas, desencadeiam o processo de pidgin na comunidade, como ocorreu no nosso exemplo de Sierra Nevada: “mediante una política de imposición del español, el poder colonial manipuló la aculturación, intentando anular la lengua del colonizado (...) ya que, para ese entonces, una parte de la realidad estaba compuesta de objetos importados y de instituciones proprias del colonizador” (Amaya, 1995: 301). O pidgin, como o crioulo, que dele decorre, pode ser interpretado como “typically spoken not written and are often viewed with desdain by both their users and by society at large - in part because they do not yet have a respected body of written literature” (Nichols, 1996: 197). Haveria, nesse estágio da linguagem, a base matriz geradora dos componentes fonéticos, sintáticos e lexicais utilizados em estado deficiente e incorreto. Segundo Couto (1997:99), o PB poderia ter sido resultante de um crioulo em fase de descrioulização, “o que não conflita com a afirmação de Silva Neto: “a linguagem dos negros crioulos e principalmente dos africanos estava muito longe do português dos brancos, mazombos ou reinóis, e até mesmo dos mestiços” (ib: 108-109).

Por um caminho inverso, do conseqüente ao antecedente, chegamos aos conceitos mais difundidos sobre a problemática discutida, ou seja, os de língua geral e língua franca. De uma certa forma, porém, todos, estes e aqueles outros (pidgin e crioulos), são aprtes de um mesmo estoque conceitual, o das transferências e interferências lingüísticas, estudadas por Granda (1995:148).

Há bastante material escrito sobre a historiografia da língua geral indígena brasileira, criação ou decorrência da própria gramática de Anchieta (1595) que sintetizou os princípios do tupi antigo em uma Arte, a “Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, pelos grupos do tronco Tupi aí estabelecidos. A distribuição desses grupos tupis estendia-se do Maranhão até o sul, com a separação em São Vicente (Cananéa), onde os povos se repartiam até aí, em Tupi, e de Cananéa para o sul, constituindo o sub-ramo dos Guarani, reunidos na grande família Tupi-Guarani. Os primeiros contatos dos europeus com a língua da terra aconteceu com os representantes desse povo. Era cômodo aos portugueses aprender a sua língua pois, em qualquer ponto do litoral onde estivessem, entenderiam a fala dos habitantes se comunicando.

Os jesuítas tinham pontos divergentes de comunicação, dentre as camadas sociais portugueses da colônia: historicamente, os padres, com o aprendizado do Tupi, utilizariam o dialeto para a catequese, o enfoque da linguagem sendo, portanto, o discurso religioso, reduzido de acordo com a pedagogia dominante, entre o emprego da arte, música, canto, poesia. Visavam a adesão, primeiro das crianças índias e, depois, dos pais e dos mais velhos das aldeias, aproveitando a musicalidade e o ritmo natural dos indígenas como ponto de atração para seus projetos, num verdadeiro jogo de sedução que foi favorável à Igreja, por um bo período, até a Coroa intervir nos métodos por eles empregados, decretando sua expulsão da colônia. Para os colonos, a utilidade do Tupi tinha fins diferentes, voltada para o servilismo do homem e exploração da terra. O interesse econômico facultaria a entrada, na língua receptora, de um vocabulário que desse conta de tais necessidades e propiciasse o conhecimento físico do terreno e suas potencialidades produtivas. Assim aconteceu com as técnicas de agricultura, plantações, extração de minérios, navegação. A língua impulsionaria, facilitando, o exercício dos diferentes papéis sociais, sem barreiras na comunicação. Veja-se o que diz Couto, em passagem semelhante: “Como qualquer língua de contato, ela apresentava tanta variação quanto eram seus usuários. Se ele tinha o espanhol por língua materna, a massa de vocábulos e de estruturas espanholas era visível (...). Ou seja, havia uma grande variação individual para não dizer regional. (ib:99).

Entra-se, assim, no conceito de língua franca, trazido dos entrepostos comerciais de Ásia, África , do Mediterrâneo.

Edelweiss (1969:92-95) tem opiniões divergentes das de Couto (ib: 92-95) em alguns pontos, e de Rodrigues (ap.: Couto, ib: 93-95), em que aquele autor se baseou. Não é objetivo deste trabalho, dadas as suas limitações e finalidades, estender a análise do assunto a toda a obra de Edelweiss, principalmente porque já a estamos analisando dentro do Projeto ATESP. A perspectiva do autor volta-se mais às estruturas lingüísticas do Tupi enquanto língua autônoma, de seus dialetos ou variações regionais bem como dos registros historiográficos existentes sobre a língua. A começar da divergência no emprego do termo definidor do grupo cuja linguagem serviu de base para a formalização da língua geral seiscentista, se Tupi ou Tupinambá.

A opção pela primeira forma - Tupi - foi assim justificada: “(mostrar) o perigo que traz em seu bojo a substituição do histórico e consagrado genérico tupi por um gentílico secularmente restrito a três núcleos geográficos relativamente bem estudados (MA, BA e RJ) e, portanto, impróprio a tardias generalizações, principalmente em lingüística, onde, mesmo no sentido restrito, tupinambá já pode ser inexato, quando citado sem a marcação da respectiva área” (ib: 71). Define, a seguir, o que entende por Tupi (a) e por Língua Geral (b): “a - acervo de formas léxicas, preceitos gramaticais e textos que os jesuítas deixaram consignados em seus compêndios e produções até o fim do século XVIII” (ib:72); “(...) maneira de falar generalizada entre diversas tribos da costa”; b- “a língua brasílica (grifamos) não era, portanto, o dialeto específico de uma tribo, mas uma uniformização léxica regional de vários (dialetos)”; “no seu conjunto não correspondia exatamente a nenhum dialeto, a sua boa compreensão também não oferecia dificuldades a qualquer tribo” (ib: 72-73). Seria preciso, entretanto, à luz de novos entendimentos - e a toponímia aí poderia auxiliar, por meio de sua metodologia - um reestudo desse ponto de vista a respeito do assunto. Mesmo porque, para Edelweiss, acompanhando Anchieta e contestando Couto Magalhães (1876), “tupis”, “como grupo tribal, eram chamados tão só os tupiniquins de São Vicente” (ib: 198). Daí, talvez a origem da “língua geral paulista”, a seguir referida.

A língua geral da costa, no sentido de “mais usada”, como indicou Anchieta em sua Arte de Gramática, comportou um outro determinante, redutor deste conceito amplo. A partir do século XVIII (1759), com o Diretório do Marquês de Pombal, proibindo a difusão do ensino do Tupi nas províncias e tendo os jesuítas, pela segunda vez, sido expulsos do território brasileiro, houve a concentração dessa linguagem nos vales ribeirinhos do Amazonas, criando-se aí o fato da “língua geral amazônica”. A história nacional da colonização explica o porquê dessa ocorrência, que remonta à própria ocupação mais tardia das capitanias do norte, do estabelecimento das missões, e o papel preponderante do Pe. Vieira na catequese e dos seus “instrumentos” sobre a educação indígena. Dentro desse contexto de difusão de uma língua comum aos grupos costeiros, Rodrigues fala em “língua geral paulista” como oposição ou complemento àquela do norte, caracterizada por ser a linguagem dos bandeirantes e dos mamelucos, em uso nas monções de Cuiabá (séc. XVII e XVIII), na exploração das minas do planalto central. No trecho citado por Couto (ib: 93), extraído das Línguas brasileiras (1986) do autor, este concorda com Edelweiss mesmo sem o citar, dizendo ser a base lingüística do sistema a língua dos Tupi de São Vicente, “a qual diferia um pouco da língua dos Tupinambá”. Edelweiss, a respeito, no capítulo III do texto que estamos utilizando (ib: 61) (em nota explicativa nº 20, de rodapé), esclarece: “designamos por língua tupi exclusivamente o dialeto unificado pelos jesuítas em seus compêndios”.O Atlas Toponímico de São Paulo (em fase conclusiva) poderá ser um coadjutor no entendimento da questão, motivo por que não nos deteremos no problema.

A dita Língua Geral Amazônica, hoje, seria fruto do nheengatu - sentido mais redutor ainda que “língua geral brasílica”- cujas bases divulgadas estão em Couto de Magalhães (1876) e Pedro Luís Sympson (1877). Hartt (1870), citado por Edelweiss para justificar as diferenças entre a primitiva língua geral brasílica e aquela do final do século XIX e inícios do século XX, entende que “a língua geral do Amazonas não é o Tupi dos antigos jesuítas”; “as orações, livros, etc, dos jesuítas não são entendidos pelos índios amazônicos de hoje” (ib: 190). O que seria natural. É importante fixar aqui que o nheengatu, que começa a aparecer na literatura só depois de 1850 não era nem é língua étnica, de nenhum grupo, mas o resultado de uma fixação de matrizes lexicais e sintáticas do tupi com o português evoluindo ao longo de dois séculos de contatos. O termo existia na língua em oposição ao nheengaíba (= “língua ruim”), o falar tirado dos povos não-tupis. Do mesmo modo, o guarani era chamado, no sul, de avanheeng(a) (= “língua do índio”).

O que fica claro também, das variadas leituras sobre o tema, é o outro dado diferenciador dentro da mesma temática de Língua Geral Amazônica, isto é, o termo correlato nheengatu expressa uma oposição ao Tupi do século XVI, no sentido de ser considerado uma língua moderna em uso regional (Amazônia), utilizado em diversas situações de comunicação. Hoje, porém, sofre a concorrência do Tukano do Alto Rio Negro - se é que se pode chamar assim o fato de uma língua exercer um papel centralizador e interativo entre povos de outras etnias da área como os Aruak, Maku, Pano, Mura, Katukina, por exemplo.

Na relação de etnias e línguas existentes hoje no Brasil, apresentada por Rodrigues (ib: 67), referente à família Aruak, incluídas na Língua Geral Amazônica, para o autor, surgem duas versões em nheengatu para um mesmo povo, caracterizando a interferência lexical do português no outro código: ipeka (“pato”) - tapúya ou pato-tapúya; isso demonstra que aos Baniwa do rio Içana (afluente do rio Negro) não é estranha a outra referência ou a ação do modelo português sobre o dialeto nativo. Não se trata de uma simples substituição de nomes, mas de uma troca de significado pelo elo semântico equivalente no outro código.

Para caracterizar a evolução do tupi antigo, passando pelos estágios de língua brasílica ou língua geral da costa e, depois, nheengatu, usamos os exemplos comparativos apresentados por Edelweiss. As unidades lexicais que se incorporaram ao PB pelas interferências e cruzamentos de adstratos lingüísticos, estão sendo analisadas com base nas indicações propostas pelo autor e por outros estudiosos, e na documentação coligida no Projeto ATESP. Os dicionários e vocabulários utilizados na pesquisa lexical são os que constam, tradicionalmente, na literatura indigenista dos primeiros séculos, a partir do Vocabulário na língua brasileira (1621). Os vocábulos estudados, constrastivamente, mostram variantes diversas, decorrentes da própria dinâmica comunicativa de índios e não índios. Ex: prato, nhaē, nhaē-beba, pratu; barriga; tygé, marika; mãe: sy, maya, maytínga.

Outros grupos não tupis (Karib, Arawak, Bororo, p. ex.) também incorporaram vocábulos ao PB, principalmente nos campos zôo e fitonínicos mas não se expandiram fora de sua área situacional nem constituíram, como aqueles, “línguas gerais”.

Quanto às línguas gerais africanas, Renato Mendonça (1936) agrupou-as em dois blocos tradicionais, o quimbundu, ou língua dos povos bantu (Sudão/Congo, falado nos estados de Pernambuco, Alagoas. Minas, Rio e São Paulo) e o Yorubá ou nagô da Nigéria (falado na Bahia). Bonvini (Bol. ABRALIN, s/d), mais recentemente, adequou essa distribuição a outros critérios, reportando-se à chamada família Kwa, ou Kwa Ocidental, propriamente dito (povos bantú ou gege) e Kwa oriental (yorubá, povos nagô-Ketu). Os termos mais usados no país, de acordo com o ATESP, são quilombo, marimbondo, caxambu, cafundó; mais ao norte, cacimba, mulungu, nzambi / zambi, zumbi (Dick, 1990: 137-154). Mas, de um modo geral, as ocorrências lexicais atingem outros campos semânticos, da alimentação, música, instrumentos musicais, religião, seus santos e encantados. No ATESP, porem a freqüência lexical é pequena, não ultrapassando 1% do total dos municípios, sendo dois os que tem origem africana, Caconde e Cubatão, este um hibridísmo.

Conclusão

Procuramos deixar claro, nesta Comunicação, que a base cronológica proposta por Silva Neto ou sua periorização etnohistórica foi de grande valia metodológica para situarmos, ainda que em traços mais genéricos, a problemática do português colonial, sua formação e variação lingüística. A escolha do léxico como vertente de análise justifica-se, também, pela nossa própria trajetória acadêmica, voltada à recolha dos designativos brasílicos, tornados termos de uma outra linguagem de especialização,a Onosnmástica. As línguas gerais aqui instaladas, seja por fato cultural do missionário e do colono europeu ou dos próprios falantes, sempre que mencionadas, provocam reiteradas discussões e contravérsias quanto ao seu próprio conceito. O que demonstra a atualidade do tema e a complexidade dos elementos etnolingüísticos geradores. Sem dúvida ainda é um tema em aberto. A onomástica brasileira, de que trouxemos alguns dados para reflexão, tem contribuído com seus topônimos, nos projetos aqui anunciados, senão para esclarecer, pelo menos para ilustrar e exemplificar questões correlatas. O ATESP tem sido de especial ajuda para equacionar os resultados pretendidos.

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