O VERBO HAVER E A EVOLUÇÃO
DO CONCEITO DE IMPESSOALIDADE

Cirineu Cecote Stein

1. INTRODUÇÃO

A normatização de uma língua sempre se coloca como uma tentativa de padronização do que vem a ser considerado o uso de prestígio, uso que, por sua natureza prestigiosa, deverá ser acatado por todos aqueles que queiram se expressar devidamente, quer no âmbito oral quer no âmbito escrito. Todas as relações conceituais (e pré-conceituais) estabelecidas, em harmonia com os mecanismos discriminatórios da sociedade, se imporão de forma incisiva, atribuindo aos que a elas não se adaptarem rótulos pejorativos diversos, dentre os quais o mais brando, possivelmente, seja o de iletrado.

Embora a chamada gramática normativa de uma língua seja, por excelência, a que representa a força centrípeta do idioma, procurando estabelecer ordem naquilo que alguns poderiam considerar como um verdadeiro caos, não se pode, de forma alguma, desconsiderar o fato de que a língua é uma entidade em constante mutação. O povo, seu falante, é o responsável direto por exercer o que, em oposição à força centrípeta da gramática, se conhece como a força centrífuga da língua; e, do uso que aquele faz do idioma, de forma verdadeira e efetiva, nas cozinhas das casas e nos corredores das escolas e academias, surge o verdadeiro padrão de uso, ululante em uma sociedade que está em constante modificação.

A motivação deste trabalho foi uma curiosidade que, à primeira vista, poderia parecer, para alguns, uma simples discussão de estudantes em um nível primário: por que razão o verbo haver, tomado em seu sentido existencial, como atualmente se lhe atribui, é considerado impessoal. Fazer esse questionamento foi decorrência da observação de que inúmeros falantes, mesmo aqueles considerados de alta escolaridade, utilizam uma flexão de número plural nas ocorrências desse verbo em que, tecnicamente, deveria ela estar ausente, como forma de prestígio. Exemplos como haveriam outras oportunidades ou haverão novas chances são bastante freqüentes no falar e no escrever da sociedade brasileira contemporânea, até mesmo, como já sugeri acima, entre falantes considerados de elevada escolarização, e, para uma constatação desse tipo de ocorrência, não é necessário nenhum levantamento específico de dados: qualquer pessoa, com um mínimo de atenção, encontra, em seu cotidiano, tanto na fala oral quanto em textos escritos, exemplos desse tipo, que são, diga-se, imediatamente refutados, por meio de comentários por vezes jocosos.

A razão de estar insistindo nesse fato de falantes de elevada escolarização fazerem uso desse tipo de concordância é muito simples: se mesmo esses falantes especializados, vez por outra, num momento de descuido em seu autopoliciamento, se permitem usar o verbo haver, em seu sentido existencial, pluralizado, isso significa que impera no inconsciente lingüístico desses falantes a sensação da existência de um sujeito onde, tradicionalmente, convencionou-se dizer não existir um. Por conta disso, passei a questionar qual a razão de se ter instituído essa norma, uma vez que seria tão mais simples ceder ao uso que o povo - e alguns literatos extremamente conceituados também, diga-se - tem estabelecido como regular. Rigorosamente, para que alguma modificação quanto ao uso das regras de um idioma venha a ser aceita, integrando o que se convencionou chamar de padrão culto, é necessário que essa variação tenha já se tornado comum não apenas entre os falantes, no seu cotidiano, mas também entre os que estabelecem os modelos cultos da língua, como, principalmente, os escritores. O problema se coloca de forma mais incisiva se se perceber que, no caso do enfoque deste trabalho, o verbo haver em sua concepção existencial vem sendo, desde muito, utilizado em sua forma pluralizada pelos falantes, como atestam os inúmeros testemunhos dados pelos gramáticos consultados nesta pesquisa.

Embora este trabalho talvez não traga consigo a possibilidade de uma reformulação no padrão culto tocante às regras de concordância verbal, parece-me que as informações já obtidas podem contribuir sensivelmente para a conscientização, especialmente, dos professores de Língua Portuguesa que, não tendo contato com a evolução histórica desse conceito de impessoalidade, buscam, na maior parte das vezes, apenas impor uma série de regras a seus alunos, como algo estanque, fixo, imutável, chegando, infelizmente, em algumas situações, a ridicularizar os alunos que, atendendo a um impulso natural da concordância verbal, realizam a pluralização do verbo haver em situações proibidas pela norma culta.

A primeira parte deste trabalho, baseada em 28 Gramáticas, datadas do século XVI ao século XX, procura estabelecer, numa ordem cronológica, a evolução da conceituação dos chamados verbos impessoais, extensiva ao uso do verbo haver existencial.

Num segundo momento, procurarei estabelecer algumas reflexões acerca da natureza existencial do verbo haver, tomando por base, principalmente, o trabalho desenvolvido por FRANCHI et alli, Sobre a gramática das orações impessoais com ter/haver.

2. O CONCEITO DE IMPESSOALIDADE VERBAL E SUA EVOLUÇÃO

A noção de impessoalidade verbal na atualidade parece colocar-se de forma bastante consolidada, sendo que os gramáticos, de uma forma geral, não discordam entre si quanto ao que se deva considerar um verbo impessoal. Existe como que uma unanimidade em dizer que, não tendo sujeito, os verbos impessoais são invariavelmente usados na 3a pessoa do singular. (CUNHA e CINTRA, 1997:432), e são citados como impessoais os verbos que indicam fenômenos da natureza; o verbo haver na acepção de “existir”; o verbo fazer indicando o decorrer do tempo ou acompanhado de objeto direto, quando indica fenômenos devidos a fatos astronômicos (LIMA, 1992:401) e alguns outros verbos que indicam necessidade, conveniência ou sensações, quando regidos de preposição em frases do tipo: Basta de provocações! (CUNHA e CINTRA, 1997:432).

Paralelamente à caracterização dos verbos impessoais, alguns gramáticos, como CUNHA e CINTRA, normatizam os chamados verbos unipessoais, aqueles que, pelo sentido, só admitem um sujeito da 3a pessoa do singular ou do plural (1997:433), como em Zumbem à porta insetos variegados.

No entanto, apesar de haver uma aparente certeza quanto à impessoalidade desses verbos, é praxe esses mesmos gramáticos observarem que, em sentido figurado, esses verbos indicativos de fenômenos naturais podem se flexionar, como em Os oficiais anoiteceram e não amanheceram na propriedade (CUNHA e CINTRA, 1997:433). Esse “uso figurado” já me parece indício de uma estrutura de sujeito subjacente à essência desses verbos, mesmo nas situações em que são considerados como construídos sem sujeito. E, diga-se, essa idéia não foi estranha aos gramáticos do passado.

Em SOUSA (1865:41), por exemplo, lê-se o seguinte:

D’accordo com as prescrições do bom senso está a opinião corrente dos grammaticos, entre os quaes, para não enfadar, apenas citarei a J. Soares Barbosa, que na Gramm., pag. 242, diz: “...Os verdadeiros verbos empeçais são aquelles que se não usam nunca senão na terceira pessoa do singular, como amanhece, anoitece, chove, neva, orvalha, troveja, trovoa, venta, etc. Os sujeitos d’estes verbos, que podem ser Deus, o ceo, a nuvem, etc., pela maior parte se subintendem; ás vezes porem se expressam, como: Se amanhece o sol, a todos aquenta; se chove o ceo, a todos molha.” E Moraes e Silva (Gramm. liv. 2o, cap. I, § 1, n. 3) diz: “Não ha sentença sem nome sujeito e sem verbo, expressos ou occultos, diversos ou cognatos.” Ora ninguém dirá que chove, neva, troveja, etc., não exprimam alguma sentença: por conseguinte, fôrça é reconhecer-lhes algum nome subjeito, que, se não está claro, está certamente subintendido.

A perceber a definição citada por SOUSA acima, seriam considerados impessoais unicamente os verbos que se utilizam exclusivamente na 3a pessoa do singular, o que não significa dizer que não possuam um sujeito; pelo contrário, possuem um sujeito, e a impessoalidade é tomada em seu sentido gramatical: não se utilizam outras pessoas do discurso que não a terceira. O conceito de impessoalidade atual pressupõe a inexistência de uma entidade que pratique a ação verbal, ou seja, o verbo é impessoal porque nenhum ser poderia executar aquela ação. Assim, em uma frase como Chove!, na conceituação atual, o sujeito é inexistente, sendo, então, o verbo impessoal; na conceituação de SOUSA, o sujeito seria nuvem ou céu, e o verbo, impessoal, por não se poder conjugar em outra pessoa.

Essa noção de impessoalidade como decorrência da ausência de um sujeito que possa praticar a ação já se mostrava em RIBEIRO (1885:75): Impessoal - quando em accepção propria não póde ter por sujeito um nome de pessôa, ex.: “trovejar - acontecer”.; e em MACIEL (1887:229):

Na maior parte dos casos os verbos impessoaes não apresentam subjeito, porque indicam phenomenos que se passam no seio da atmosphera ou da natureza astronomica, ex.: anoitecer, amanhecer, alvorecer - trovejar, chover, nevar, etc.

O verbo impessoal essencial caracterisa-se, pois, pela noção de um facto astronomico ou meteorologico e o fundamento da classificação dos verbos impessoaes baseia-se na não existencia do subjeito.

A definição de verbo unipessoal de CUNHA e CINTRA partilha quase que em sua totalidade a de TAYLOR (1871:18), que diz que verbo unipessoal é o que só tem as 3as pessoas do singular de cada tempo, ou seja, não se inclui aí a terceira pessoa do plural.

Transpondo-nos novamente para o século XX, observamos em BUENO (1973:176) um comentário que, à luz dessas inconstâncias de definição, não parece sugerir algo definitivo, a não ser quanto à caracterização de ausência de um sujeito para os verbos impessoais, compartilhada pelos demais gramáticos coetâneos:

Os verbos empeçais são considerados verbos sem sujeito e aparecem em frases como estas: houve combates encarniçados - faz frio em S. Paulo - anoitece tarde no verão - trovejou a noite toda - etc. - Alguns autores dão aos impessoais a denominação de unipessoais, porque possuem apenas uma pessoa, a terceira do singular ou do plural.

É interessante registrar ainda RIBEIRO (1885:290), que atribui uma outra possibilidade para um verbo ser considerado impessoal: “Emprega-se também impessoalmente qualquer verbo na terceira pessôa do plural, ex.: Em Paris dar-lhe-ão cabo da pelle - Mataram o Presidente.

3. A IMPESSOALIDADE DO VERBO HAVER

Percorrendo uma linha cronológica que remonta a 1540, com a Grammatica da lïngua portuguesa, de João de Barros, a dificuldade de estabelecimento de uma normatização para o uso do verbo haver em sentido existencial é paralela à própria definição do que viria a ser um verbo impessoal. A menção ao uso do verbo haver, feita por João de Barros (1540:328-9) se omite quanto a esse uso existencial, ao tratar dos verbos impessoais.

Embora nesta pesquisa tenha ocorrido uma lacuna temporal de 291 anos, uma vez que, após a Grammatica de João de Barros, a mais antiga gramática brasileira por mim encontrada foi a de Francisco Solano Constancio, que data de 1831, creio que o uso considerado culto para o verbo haver em seu sentido existencial preconizava sempre sua forma singular. Aliás, é importante dizer que não havia unanimidade quanto à possibilidade de esse verbo apresentar sentido existencial.

CONSTANCIO (1831:94), em relação à enunciação feita pelos verbos impessoais, diz:

Examinando os verbos que nas diversas linguas correspondem a esse latino e aos nossos ser ou estar, existir e até haver no impessoal, acharemos que em muitos enuncião, não a ideia abstracta da existencia, mas sim huma das acções ou funcções que caracterisão a vida, que a mantem, (...).

O que sugere que o verbo haver apresentaria um uso impessoal. No entanto, SILVA (1824:54-5, nota g) é extremamente incisivo ao afirmar que

Haver sempre é activo, e nunca significou existir, como dizem Argote, e outros. Tanto é incorreto dizer = Ha homens = por existe homens; como supor, que na significação de ter é idiotismo Portuguez concordar com sujeitos do plural. Ha homens é uma sentença elliptica, cõ sujeito do singular; i.é, o mundo, a especie humana tem homens: “nesta terra ha boas frutas;” i.é, a especie das frutas [ha] tem, contèm: “Em mim ha dois eus;” i.é. o meu individuo, sujeito suposto contèm dois eus (...) “Hão na Logica outros termos” é erro, porque o sujeito proprio d’esta sentença é: Linguagem Filosofica, ou Scientifica ha ou tem na Logica outros termos.

Essa postura de SILVA é repudiada, por outro lado, 63 anos mais tarde, por MACIEL (1887:230-31), testemunho das inúmeras controvérsias geradas na época por esses pensamentos:

O verbo haver, derivado de habere, tem suscitado grandes debates grammaticaes, quando apresenta-se nas construcções seguintes: - Ha homens - Ha professores - Havia deputados, etc.

É certo que o verbo habere é pessoal, porque em accepção própria póde ter um subjeito representado por nome de pessoa; porém nas linguas romanas o verbo latino habere tomou nova direcção syntactica, segundo as novas tendencias geniaes, desenvolvidas nos novos idiomas latinos.

O facto é que o verbo haver assumiu o caracter de impessoal e não póde ter subjeito claro, ex.: Ha homens - Houve combates.

Induzidos por falsas observações dos factos da vida das linguas romanas, os grammaticos que não conhecem latim sustentam erradamente que o verbo haver é em taes casos synonymo perfeito de ter, porquanto ignoram como procedia o latim na expressão das phrases correspondentes ás nossas, construidas com o verbo haver.

Neste ponto as neo-latinas levam vantagem á lingua do Latio, que construia taes phrases, implicando sempre noção de existencia, tanto que o verbo esse fazia as vezes do nosso verbo haver - Erant omnino duo itinera - Havia apenas dous caminhos.

Neste exemplo - duo itinera, é o subjeito porque erant, tem a significação de existiam; porém em portuguez passa-se tudo differentemente. Pelo facto do verbo haver implicar a noção significativa de ter e possuir, os grammaticos procuraram para o verbo haver um subjeito accommodado á proposição: subjeito este representado por substantivo.

Não seja este o ponto principal da questão, porque o maior absurdo é sustentar-se que o verbo haver tem a significação de existir, ficando no singular com o sujeito no plural por idiotismo.

Esses comentários sustentam o pensamento atual de um sentido existencial para o verbo haver, sem, contudo, sustentarem o seu uso no singular. Um questionamento que levanto é baseado exatamente na semelhança semântica entre haver e existir - sendo semanticamente idênticos, e sendo existir pessoal, por que razão haver não o seria? A única razão para isso só pode ser mesmo da natureza do uso comum, como MACIEL, na citação acima, sugeriu: trata-se de um caráter assumido pelo verbo em nossa língua, devendo, então ser respeitado (caráter, sem dúvida, volto a afirmar, questionável):

Outra falta não menos toleravel é a pluralidade do verbo haver em todos os tempos, excepto no presente do indicativo, ex.: haviam, houveram, hajam homens, em logar de havia, houve, haja homens.

Esta insurreição syntatica manifesta-se até entre pessoas illustradas que, por incuria ou mal direcção, desconhecem a lingua vernacula. (MACIEL, 1887:238)

Novamente no século XX, GOMES (1920:423) retoma a idéia de que o verbo haver, derivado do latim habere, por abrandamento do b em v e quéda da vogal atona final, significa unica e exclusivamente ter e nunca existir, como dizem muitos. E oferece a seguinte explicação etimológica (1920:424-5):

É verdade que, empregado impessoalmente, parece haver significar existir; mas contra isso protesta a etymologia e os que daquelle modo pensam, soccorrem-se do francez em expressões como estas - il y a, il y eut, etc.

Entretanto, a expressão franceza não lhes dá razão, porque em il y a a traducção literal é - elle ha (tem) ahi.

Dizem tambem que, si em portuguez apparece o verbo sem sujeito, é isso um idiotismo ou particularidade da lingua; mas não ha necessidade de recorrer a idiotismo, desde que se explique o verbo haver por ter, dando-se-lhe por sujeito - elle.

Das Gramáticas pesquisadas, é a partir de 1945 (JUCÁ, Filho) que se apresenta uma opinião constante acerca do uso do verbo haver existencial, nos modelos conhecidos atualmente. No entanto, a única constatação razoável a que posso chegar é que está muito distante ainda a certeza a respeito do funcionamento desse verbo. Aliás, chamou-me consideravelmente a atenção um comentário em nota do mesmo JUCÁ (p. 111), após ter apresentado a análise de pessoas que assim não pensam em Há pessoas que assim não pensam como objeto direto e em existem pessoas que assim não pensam como sujeito:

Esta análise é consagrada. Porém a convicção pessoal do autor desta gramática é a de que tal construção é literária. No número 22 da Revista Filológica, numa colaboração com o Sr. Conde de Pinheiro Domingues e o Dr. Artur Tôrres, conseguimos arrolar várias centenas de exemplos clássicos de frases do tipo “houveram festas”.

Pelo menos, não me sinto sozinho em minhas suposições, e me permito, para finalizar esse rol de citações, uma mais, de Phillipe Pinto MARQUES (1875:123), que, se não é a que talvez compartilhe, causa, ao menos, alguma graça:

Segundo a opinião de muitos grammaticos o verbo haver com a significação de existir, por um idiotismo da lingua portugueza, tem muitas vezes no singular sujeito no plural, como: Ha homens extraordinarios. Ha tempos calamitosos. Dizem porem outros grammaticos que em taes expressões ha Ellipse e que se deve subentender um sujeito, ficando neste caso o verbo haver, segundo uns, com a significação activa de ter, e segundo outros, com a significação intransitiva de existir, exemplo: “Ha (existe) uma classe de homens extraordinarios,” ou então, o mundo ha (tem) homens extraordinarios. Ha (existe) periodo de tempos calamitosos, ou então, o mundo ha (tem) tempos calamitosos.

A vista de tantas opiniões cada um adopte a de que mais gostar.

4. CONSIDERAÇÕES SOBRE A IMPESSOALIDADE VERBAL

Os autores consultados preocuparam-se com uma caracterização de impessoalidade calcada em tradições da língua, recorrendo, principalmente, ao comportamento do verbo habere, em latim. Esse comportamento foi estendido - ou pretendeu-se estendê-lo - ao Português, estabelecendo-se, por tradição, o verbo haver, em seu sentido existencial, como impessoal, devendo, portanto, manter-se sempre na terceira pessoa do singular.

FRANCHI et alli (1998) desenvolveram um estudo sobre a natureza das chamadas sentenças existenciais, chegando à conclusão de que essas construções, no Português do Brasil, integrariam uma classe maior, não sendo apenas uma subclasse das sentenças construídas com verbos ergativos e sujeito posposto (p. 105). As observações estabelecidas por esses autores se deram no âmbito de toda a impessoalidade verbal e, dessas, procurarei discutir aquelas que, efetivamente, se relacionam com o verbo haver.

Um primeiro questionamento diz respeito ao estabelecimento de quais seriam, efetivamente, as propriedades lexicais de um verbo em construções impessoais e, ainda, como os constituintes e o verbo se relacionam gramaticalmente. Considerar um verbo como impessoal, em uma sentença, praticamente implicaria postular, no Português do Brasil, a existência de um “sujeito” nulo, que funcionaria como um mero expletivo.

Esse tipo de consideração seria bastante razoável se, de fato, muitas pessoas, em seu falar cotidiano, não flexionassem o verbo haver quando em sentido existencial (doravante utilizarei, para indicar essa acepção, apenas haver). Ao estabelecerem essa flexão, indicam, claramente, terem percebido o SN-plural, que acompanha a forma de haver, como sendo seu sujeito. Por sinonímia, da mesma forma que se diz Existiam pessoas, dever-se-ia também dizer Haviam pessoas.

FRANCHI et alli (p. 109) sugerem uma especialização de haver em núcleo funcional das orações existenciais:

Ao contrário haver, na medida em que se emprega em extensões predicativas mais abstratas (expressando outras qualificações), é um item lexical de maior generalidade e simplicidade semântica. Nas construções impessoais existenciais, em concorrência com o verbo ser, que subsiste ainda, embora raramente, nos textos quinhentistas e, depois, predominantemente, haver se especializa como núcleo funcional das orações existenciais, deixando de empregar-se em outros sentidos.

Esse estabelecimento de haver como núcleo funcional das orações existenciais é que seria responsável, junto ao falante, por sugerir-lhe uma sinonímia com o verbo existir, estendendo-se a partir deste a concordância com o termo plural que o acompanha nessas frases existenciais. FRANCHI et alli (p. 115) apontam uma outra situação que, no entanto, contradiz esse sentir de haver pluralizado da parte do falante, corroborando sua hipótese de haver como verbo funcional (p. 110). Em exemplo colhido junto ao Projeto NURC, lê-se: “Se eles não quisessem que levantassem tanto os preços, eles não precisavam. Existe muitos outros meios de transporte que não são explorados” . (PoA - 283)

Nesse exemplo, não se estabeleceu a concordância de existir com muitos outros meios de transporte, o que sugeriria, de fato, a percepção também do verbo existir como operador funcional. No entanto, os próprios autores reportaram: nem sempre apresentam concordância verbal, embora raramente no corpus do Nurc (grifo meu). Parece-me, assim, que, para os falantes do Português do Brasil (tomando em consideração a percepção do falar cotidiano atual e o testemunho dos vários gramáticos consultados para a elaboração deste trabalho), ainda prevalece a noção de o termo pluralizado que acompanha haver ser o seu sujeito.

FRANCHI et alli (p. 123) levantam a hipótese de que as construções existenciais, no Português do Brasil, deveriam ser analisadas como estruturas específicas, sem parentesco sintático com as CE’s com o verbo existir. Isso pressuporia que o SN-argumento nas construções existenciais seria um objeto direto do verbo existencial de que recebe o Caso acusativo, numa clara herança das construções latinas já indicadas por alguns gramáticos reportados anteriormente. Os próprios autores afirmam que não se trata de uma hipótese tranqüila, como indicado por Pontes (1984) (1998:124), que sugere que o SN nas CE’s é “sujeito” posposto, como no caso das orações com existir.

A hipótese de FRANCHI et alli parece bastante razoável em situações de construções existenciais que não digam respeito a haver. Preferem manter a hipótese do SN-argumento como um complemento que recebe do verbo seu Caso acusativo (1998:128). No entanto, sou levado pelo sentir dos falantes comuns (e, às vezes, bastante letrados) do Português do Brasil que, ao estabelecerem, quase que rigorosamente, a concordância de haver com o SN-argumento pluralizado que o acompanha, estabelecem também esse SN-argumento como sujeito. Parece-me bastante razoável dar ouvido, neste caso, à voz do povo.

5. CONCLUSÃO

Historicamente, é possível perceber a grande controvérsia existente quanto à natureza impessoal de alguns verbos e, em especial, do verbo haver. Mesmo apoiados em uma tradição sintática originada no latim, ou recorrendo a uma visão completamente sincrônica da língua, parece-me que um ponto fundamental deve ser levado em consideração: a posição “sujeito” é uma posição preenchida.

Tomando por ponto de apoio uma frase como Chove!, e contrastando-a com o francês (Il pleut!), com o inglês (It rains!) ou com o alemão (Es regnet!), percebe-se que a posição “sujeito” foi preenchida por um pronome, com o qual concorda o verbo. Embora não apresente valor semântico ativo, esse pronome se faz presente, o que indica que, no português, também ocorre o mesmo, embora em forma latente. Quanto ao verbo haver em sentido existencial, que, no português, tradicionalmente se coloca como impessoal, concorda, no inglês, com o SN-plural, em frases como There are fruits.

Uma vez que já se registrou no português, há séculos, o uso popular e letrado do verbo haver existencial em concordância com um SN-plural, é mais do que razoável admitir que o português, enquanto língua, aceita em sua estrutura esse uso como pessoal. Há o argumento de muitos no sentido de que os falantes estabelecem essa concordância no plural apenas em tempos verbais que não sejam o presente do indicativo. Pois desejo registrar que, no início do primeiro semestre letivo de 2001, ouvi, em uma sala de aula do 3o ano do nível médio, um aluno dizer: Mas nem hão outras dúvidas. Inclusive interrompi meus comentários para dizer que aquela era a primeira vez em que ouvia uma pessoa dizer tal coisa.

Vejo como razoável, ao menos, a possibilidade de os professores de português, conscientes dessa problemática, tratarem, em sala de aula, o assunto com uma certa maleabilidade, não assumindo posturas que coloquem seus alunos em situação vexatória, como freqüentemente ocorre, quando incorrem nesse que se considera um erro gramatical.

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