A EDIÇÃO DE TEXTOS MODERNOS
ALGUMAS DIFICULDADES DE LEITURA
EM MANUSCRITOS DO SÉCULO XVIII.

Gilberto Nazareno Telles Sobral (UFBA)

 

1. INTRODUÇÃO

Através da edição de um manuscrito, é possível ter uma visão de uma sociedade, bem como características de uma época.

O estabelecimento de textos autênticos floresce quando um povo tem a necessidade de preservar, contra os estragos causados pelo tempo, assim como pela interpolação de emendas ou erros na transmissão dos textos, documentos que fazem parte da sua história.

Os documentos antigos são de grande importância para a História de um povo, pois não somente o historiador se beneficia, mas também os lingüistas, filólogos, antropólogos, sociólogos e todos os interessados na preservação e divulgação desse patrimônio linguístico-histórico-cultural.

No Brasil, tem-se verificado uma certa preocupação com a preservação desses documentos. Fato que tem desencadeado uma busca aos arquivos que guardam esse material.

Um dos grandes problemas enfrentados no Brasil, especialmente no tocante aos acervos cartoriais e religiosos, é o da questão da responsabilidade das pessoas encarregadas dos mesmos. Alguns julgam-se seus proprietários, quando, de acordo com a legislação vigente, são apenas seus guardiães; outros, devido à falta de conhecimentos arquivísticos mais primários, optam pelo o abandono e pela incineração.

Muitos documentos estão danificados em decorrência do tempo, da ação de insetos e da carência de uma política voltada à preservação dos arquivos .

Quanto à edição de textos modernos, muitos são os problemas encontrados do século XVI ao século XX e diretamente ligados à época em que foram escritos.

Diante dessas dificuldades de leitura, o que se deseja é que os editores tenham um conhecimento prévio do documento a ser editado e ofereça a todos um texto fidedigno, livre de intervenções, pois toda edição crítica deve ser considerada como uma tentativa provisória de estabelecimento de um texto, em que novas tentativas devem ser feitas em busca de um texto que se pretende autêntico.

 

1.1 - Diferenças paleográficas e gráficas entre a cursiva dos séculos XIX e XVIII da moderna

Diferenças paleográficas

a letra e, quando conjunção ou no início das palavras, apresenta à sua direita um apóstrofo parecendo um sinal diacrítico;

o h tem aspecto de E maiúsculo (e);

o r apresenta uma única curva e, quando junto do p, é comum emendar-se por cima;

a letra s, quando dobrada, a primeira delas é longa e a segunda é curta

o s ou ss entre dois pontos é um sinal especial equivalente a scilicet, derivado das notas tironianas e substitui a expressão a saber;

quase não existe distinção entre o traçado do s e do z;

as letras u e v são confundidas, devido a seu traçado;

os sinais diacríticos são usados de formas diversas: ora o circunflexo indica sílaba tônica, ora crase. Também o acento agudo é usado como crase. O til, com forma de apóstrofo, é usado para suprimir as letras m ou n nas vogais nasais.

A pontuação resume-se à vírgula, ponto e vírgula e ponto, às vezes transformados em traços oblíquos, geralmente são períodos longos.

 

Diferenças gráficas

Verifica-se o uso mais generalizado de letras dobradas. Assim, além do r e do s, dobrava-se o f, o l, o n e o t;

Há uma inversão de valores, em relação às formas atuais, nas regras ortográficas que definem as terminações ão e am. As terminações em ães e ões escreviam-se sem til e com n. Nas palavras terminadas em is, colocava-se a terminação es, bem como em eu, usava-se eo e em ua, era comum colocar-se oa;

Usava-se o c com cedilha, mesmo antes de e e i, e até antes do h. Também encontram-se muitos casos de c que deveriam estar cedilhados, pelo uso de então, e são escritos sem cedilha, num evidente lapso do escrivão;

O e, quando verbo ser, vem precedido de h, enquanto o verbo haver, geralmente vem sem ele;

As sílabas como par, per, por, ter, entre outras, são usadas com as duas últimas trocadas.

1.2 - Descrição do manuscrito

O manuscrito faz parte do Acervo de Manuscritos Baianos da Universidade Federal da Bahia, sob a guarda do Departamento de Fundamento para o Estudo das Letras, tomo nº 2047. É um documento do século XVIII, composto de dois fólios de números 35 e 36, recto e verso, em que Manoel Fernandez da Cunha, testamenteiro de Quitéria de Santo Antonio, contraria o embargante José Ramos de Santa Anna .

O documento é escrito em papel de grande porosidade, cuja tinta, amarronada devido ao tempo, passa para o outro lado do papel . Mede 310 milímetros de altura e 208 milímetros de largura. Quanto ao estado de conservação, encontra-se corroído nas margens, principalmente na superior, bem como internamente, causando algumas dificuldades de leitura.

Escrito em uma coluna, em letra cursiva inclinada para a direita, a mancha escrita tem a seguinte dimensão: o fólio 35 mede 284 mm de altura e 158 mm de largura, no recto, e 297 mm de altura e 152 mm de largura, no verso; o fólio 36 mede 287 mm de altura e 158 mm de largura, no recto, e 273 mm de altura e 168 milímetros de largura, no verso.

Na margem direita do fólio 35 r, a mancha escrita apresenta um lançamento posterior em letra menor que difere de todo o documento, ocupando as linhas 14 e 15, além de um espaço entre as linhas 15 e 16 da mancha escrita, o qual , provavelmente, faz referência a uma palavra que se encontra sublinhada na linha 14 do referido fólio.

O fólio 35 tem 24 linhas no recto e no verso; o fólio 36 recto tem 24 linhas e 20 linhas no verso. O documento apresenta 120 abreviaturas.

1.3 - Critérios adotados na transcrição

O manuscrito foi reproduzido fielmente (grafia, pontuação, acentuação, etc).

O número do fólio foi indicado, à margem direita.

O texto foi numerado, indicando-se a numeração de cinco em cinco, a partir da primeira linha do fólio.

Foram mantidas as formas grafadas unidas ou separadas.

As abreviaturas foram desdobradas com o auxílio de parênteses.

Foram utilizados colchetes para as interpolações.

As rasuras ilegíveis do texto foram indicadas com o auxílio de colchetes e de reticências.

Os sinais indicadores de nasalização foram representados pelo til.

Quando a leitura paleográfica foi duvidosa, colocou-se uma interrogação entre colchete depois da mesma [?]

 

2. TRANSCRIÇÃO DO MANUSCRITO

35r

 

 

 

 

 

5

 

 

 

 

10

 

 

 

 

15

 

 

 

 

20

 

 

 

[...]

Contrariando os Emb(ar)gos f(olha) 40 dis

o Emb(ar)g(a)do Manoel F(e)r(nande)z da Cunha, co

mo Testamenteiro de Quiteria de

Santo Antonio, contra o Emb(ar)g(ant)e J(os)e

Ramos de Santa Anna p(o)r esta ep(e)la

forma melhor de Direito

E S(e) N(ecessário)

1

P(rovará) q(u)e posto o Emb(ar)g(ant)e fosse cazado com Joaq(ui)na

de Santa Catharino, filha natural da Tes-

tadora do Emb(ar)g(a)do e de Luis da Rocha Pita

com tudo nunca ao m(es)mo Emb(ar)g(ant)e, e sua m(ulh)er per

tencerão as cazas contenciozas, ou parte

delas, como acriamente alega em seus

Embargos, pois

2

P(or) q(u)e sendo essas cazas do dominio ep[o]

 sessorio do P(adr)e Ignacio Per(eir)a Rib(ei)ro, este em o

dezoito de Junho de 1758 fez delas venda

a Fran(cis)co da Rocha Pita, Tio do d(it)o Luis da Ro-

cha , a q(ue)m o d(it)o comprador no testam(en)to com q(u)e

faleceu instituio p(o)r seu universal herdeiro

P

Isto he gr(aç)a avista do Escrito 42.

35v

 

 

 

 

5

 

 

 

 

10

 

 

 

 

15

 

 

 

 

20

3

P(or) q(u)e acceitando om(es)mo Luis da Rocha a her(an)ca,

e entrando naposse dos bens dela, entre es-

tes se comprehendeo a referida morada de

cazas, das quais como seu Ligitimo S(e)n(ho)r e pos-

suidor fez cessão, etraspasso â Testadora [d]o

Emb(ar)g(a)do em 1 de Jan(ei)ro de 1782, como se mostra

do pertense posto a opê do escripto de vis[t]a

, q(u)e tudo reconhecido Judicialm(en)te se offerece em

prova detodo o exposto.

4

P(or) q(u)e desde o d(it)o dia 1de Jan(ei)ro de 1782 the

30 de Agosto de 1810 , em q(u)e decorrerás 28 a(nno)s,

dia do falecim(en)to da Testadora do Emb(ar)g(a)do, se con

servou ela na mançã epacifica posse da d(it)a

morada de cazas a vista e face de todos sem

amenor contradição, ja rezedindo nelas,

ja pagando p(o)r si os foros, e ja alugando-as

[e]percebendo os seus alugueres, sem q(u)e o d(it)o

Luis da Rocha, o Emb(ar)g(ant)e, ou sua m(ulh)er se metes

sem em couza alguma a [e]sse respeito

5

P(orque) eainda q(u)e appareça o escripto f(olha) 42, emq(u)e

o indicado Luis da Rocha declare q(u)e revali

36r

 

 

 

 

5

 

 

 

 

10

 

 

 

 

15

 

 

 

 

20

revalidava a ditação q(u)e havia feito ao Emb(ar)g(ant)e

ou sua m(ulh)er das cazas contenciozas com tudo

esse escripto he fabulozo, p(o)r q(uan)to alem denão

ter havido anteriorm(en)te similhante do ação,

como se deixa ver do docum(en)to junto, tão bem

he sem duvida, q(u)e esse chamado Doador do

Emb(ar)g(ant)e, ou sua m(ulh)er ja não podia doâr aquilo

q(u)e não era seu, sim, p(o)r q(u)e se em 1 de Jan(ei)ro

de 1782 lhe cedeo, e traspassou napessoa da

Testadora do Emb(ar)g(a)do aquela morada de cazas,

sem alguma outra condição, como em tres

de Jan(ei)ro de 1797, depois depassados 15 an(o)s

passou a ratificar p(e)lo escripto f(olha) 42 huma

do ação q(u)e nunca houve?

6

P(orque) e huma ves q(u)e o Emb(ar)g(ant)e ou sua m(ulh)er não

tinhão o menor dominio, nem possessorio nas

ditas cazas, pouco importa q(u)e ad(it)a sua m(ulh)er fale

cesse com herdeiros, ou sem elles [p(ar)a a Testado]

ra do Emb(ar)g(a)do poder ser, ou não su[a] herd(ei)ra

p(o)r q(uan)to so o podia ser daquela parte dos bens

da d(it)a sua filha , enão daquelles q(u)e nunca forão

desta, bem como a relata morada de cazas

P

36v

 

 

 

 

5

 

 

 

 

 

 

10

 

 

 

 

 

15

 

 

 

 

20

P(orque) e emvista do exposto q(uan)do houvesse rezão

na avaliação da d(it)a morada de cazas, em na-

da vinha a ser prejudicial ao Emb(ar)g(ant)e, sim

ao herd(ei)ro da Testadora instituido no t(es)t(amen)to f(olha)3,

como parte Ligitima.

 

Tudo omais offensivo dos Em[b](ar)g(ad)os

se contraria p(or) negação, com o pro-

testo de convencer afinal

 

P(or) q(u)e nestes termos enos de Direito , os Em-

b(ar)gos f(olha) 40 se devem julgar não provados, con-

tinuando-se nos termos dos autos, onde

he in competente a oppozição do Emb(ar)g(ant)e,

p(ar)a efeito de se concluir a conta da t(es)t(amen)t(ei)ra con-

denado o Emb(ar)g(ant)e nas custas.

 

F (azenda) P(ública) E(scrivão) C(hancelaria)

 

P(ara) R(equerimento) e C(oncessão)[?] de Just(iça) [...]

[...] dos os protestos nesce

sarios, cartas de inquirição,        Mor(eir)a da [...]

ejuram(en)to do Emb(ar)g(ant)e em separado.

Vai junto hum documento

 

3. RELAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DAS ABREVIATURAS

LETRA SOBREPOSTA

FÓLIO

A(nno)s

35v l.13; 36r l. 12.

Anteriorm(em)te

36r l. 4.

D(it)a

35v l. 15; 36r l. 4 e 18 e 22; 36v l. 2.

D(it)o

35r l. 21 e 22; 35v l. 12 e 19.

Docum(em)to

36r l. 5.

Bem(ar)g(a)do

35r l.3 e 12; 35v l. 7 e 14; 36r l. 10 e 20.

Bem(ar)g(ad)os

36v l. 6

Bem(ar)g(ant)e

35r l. 5,10 e 13; 35v l. 20; 36r l. 1,7 e 16; 36v l. 3,12, 14 e 19.

Bem(ar)gos

35r l.2; 36v l.10

Falecim(em)to

35v l.14.

F(e)r(nande)z

35r l.3.

Fran(cis)co

35r l.21.

Gr(aç)a

35r l.14.

Her(na)ça

35v l.1.

Herd(ei)ra

36r l.20.

Herd(ei)ro

36v l.4.

Jan(ei)ro

35v l.7 e 12; 36r l. 8 e 12; 36v l. 4.

Joaq(ui)na

35r l. 10.

J(os)e

35r l.5.

Judicialm(em)te

35v l.9.

Juram(em)to

36v l.19.

M(es)mo

35r l.13; 35v l.1.

Mor(eir)a

36v l. 18.

M(ulh)er

35r l.13; 35v l.20; 36r l.2,7,16 e 18.

P(adr)e

35r l.19.

P(ar)a

36r l.19; 36v l.7, 13.

P(e)la

35r l.6.

P(e)lo

36r l.13.

P(o)r

35r l. 5 e 23; 35v l.18; 36r l. 3, 8, 13 e 21

Per(eir)a

35r l. 6 e 19.

Q(uan)do

36v l.1.

Q(uan)to

36r l.3 e 21.

Q(u)e

35r l.10,17,22;35v l.1,9,12,13,19,23(2v) e24; 36rl.1,6,8(2v),14,16,18 e 22; 36v l.9.

Q(ue)m

35r l.22.

Rib(ei)ro

35r l.19.

S(e)n(ho)r

35v l.5 e 14.

T(es)t(amen)t(ei)ra

36v l.13.

Testam(en)to

35r l.22; 36v l.4

 

SUSPENSÃO

FÓLIO

C(hancelaria)

36v l.15

C(oncessão)

36v l.16

E(scrivão)

36v l. 15.

F(azenda)

36v l. 15

F(olha)

35r l.1; 35v l.22; 36r l.13; 36v l. 4 e 10.

Just(iça)

36v l. 16.

N(ecessário)

35r l.8

P(ara)

36v l.16

P(ública)

36v l. 15

P(or)

35r l. 17; 35v l. 11 e 22; 36r l.16; 36 v. 1 e 9.

P(orque)

35v l.23; 36r l.1

P(rovará)

35r l.10.

R(equerimento)

36v l. 16

S(e)

35r l.8

4. Pequeno Glossário

ACRIAMENTE adv. ‘acerbamente’. “... como acriamente alega em seus Embargos,...” (Fólio 35r, l.13)

CONTENCIOZAS adj. ‘litigiosas’ / ‘onde se demanda direito’.

“... nunca ao m(es)mo Emb(ar)g(ant)e, e sua m(ulh)er per / tencerão as cazas contenciozas, ou parte delas,...” (Fólio 35r, l.13)

TRASPASSO s.m. ‘ação de dar’ / ‘passar a outrem’ . “... das quais como seu Ligitimo S(e)n(ho)r e pos-/suidor fez cessão etraspasso â Testadora...” (Fólio 36r, l. 5)

 

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A Escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife : EDUFPE / Fundação Joaquim Nabuco/ Massangana, 1994.

BERWANGER, Ana Regina, LEAL, João Eurípedes Franklin. Noções de paleografia e de diplomática. 2 ed. Santa Maria : EDUFSM, 1995.

FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas - manuscritos dos Séculos XVI ao XIX. 2ª ed. São Paulo : UNESP / Secretaria de Estado da Cultura / Arquivo do Estado de São Paulo, 1991.

SOARES, Celso. Prática de redação e estilo forenses. 2ª ed. Rio de Janeiro : Destaque, 1995.

TELLES, Célia Marques. Notas de sala de aula. ILUFBA, 2000.II

SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario de lingua portuguesa. 2ª ed. 1932.