CONFRONTO ENTRE TEXTOS DO SÉC. XVIII E XIX
MOTIVADO PELAS MUDANÇAS LINGÜÍSTICAS
APRESENTADAS POR F. TARALLO

Antonia da Silva Santos (UFBA)

 

Introdução

A leitura do texto “Diagnosticando uma gramática brasileira: o português d’aquém e d’além-mar ao final do séc. XIX (1993), de Fernando Tarallo, permitiu-nos traçar um rumo para “escavar o túnel do tempo” e assim, nesta busca, encontramos manuscritos dos séc. XVIII e XIX, referentes às Religiosas do Convento N. Sra. da Conceição da Lapa - Bahia e, especialmente, documentos escritos e/ou assinados pela Madre Joana Angélica de Jesus.

Neste trabalho, apresenta-se a descrição de um manuscrito que está inserido no corpus da pesquisa intitulada “Mudanças Lingüísticas nos séculos XVIII e XIX em confronto com as normas vigentes do séc. XX”.

 

Alguns esclarecimentos

Castro (1991: 176) afirma que para o lingüista usufruir das vantagens do texto não literário, que lhe permitam saber como certas pessoas identificadas escreviam em determinado ponto do tempo e do espaço, precisa se inteirar, antes, das circunstâncias em que o texto foi escrito. Daí, ter sido realizada uma “escavação” para reviver a época em que viveu a Me. Joana Angélica de Jesus.

Cabe lembrar que os manuscritos do Convento N. Sra. da Conceição da Lapa - BA são inéditos no que se refere à sua edição. Há uma larga publicação sobre a Madre Joana Angélica, como figura de destaque na História da Independência do Brasil, devido ao seu assassinato ocorrido em 19.02.1822, provocado por movimentos políticos da época. A sua morte concedeu-lhe o papel de mártir da Independência do Brasil. Aliados aos fatores históricos, no momento, fatores religiosos são enfatizados em função do interesse na abertura oficial do processo canônico da beatificação da referida madre.

A ascensão de uma figura feminina nos séc. XVIII e XIX e o exercício de uma função como a de escrivã do Convento, no período de 1797 a 1801, foram fatos motivadores para uma pesquisa a respeito da educação das mulheres na época.

Vale lembrar, a fundação do primeiro mosteiro de mulheres no Brasil: o Convento de Santa Clara do Desterro, na Bahia, em 1677. Somente no séc. XVII, com as transformações sociais e econômicas resultantes do desenvolvimento da indústria açucareira, emergiu a necessidade de mosteiros, os quais eram financiados pelos senhores de engenho. Mesmo quando a Colônia portuguesa apresentava melhores condições econômicas, com a exploração das minas de ouro no séc. XVIII, as ordens do Reino continuaram restritivas, em relação à fundação de conventos para mulheres. O Convento N. Sra. da Conceição da Lapa - BA foi fundado em 25 de outubro de 1733, em virtude de licença régia e concessões pontifícias de 01 de abril de 1731 a 18 de abril de 1734, por D. João de Miranda Ribeiro, Manuel Antunes de Lima e outros que lhe custearam as despesas. Estão registrados como as primeiras religiosas daquele Convento, os nomes das filhas do benemérito fundador D. João Miranda Ribeiro.

Segundo Nascimento (1994: 25), a correspondência da mulher, na época, é muito pragmática, tratando especialmente de negócios e de empréstimos a juros, o que faziam discreta e particularmente através de procuradores. Daí, constar do corpus da pesquisa “Mudanças Lingüísticas nos séculos XVIII e XIX em confronto com as normas vigentes do séc. XX”, Termos de Profissão, Termos de Falecimento, Termos de Entrada no Noviciado, Procurações, Sentenças e documentos referentes aos fatos internos do próprio Convento, que eram registrados pela Escrivã da Comunidade. No caso específico da Me. Joana Angélica, há documentos assinados enquanto exercia a função de escrivã - nos anos de 1797 a 1801 e como abadessa, função exercida em dois períodos: 1814 a 1817 e em 1820, quando foi reeleita, não chegando, porém, a completar o segundo triênio, já que foi assassinada em 19.02.1822.

 

Uma etapa da pesquisa

a educação das mulheres nos séc. XVIII e XIX

A presente pesquisa encontra-se em fase inicial, em planejamento para uma edição diplomático-interpretativa de textos dos séc. XVIII e XIX. Pretende-se fazer uma edição “o mais conservador possível”, acreditando que os textos atingirão grande número de indivíduos, não só porque a sua linguagem não apresenta maiores dificuldades de leitura (os originais apresentam um bom estado de conservação), como pelo seu conteúdo, uma vez que englobará textos de uma figura importante da História do Brasil.

Pretende-se, pois, inicialmente, estudar como se procedia a educação feminina da época, a fim de detectar que influências sociais permitiam tal educação.

Na sociedade colonial, malgrado a negligência das autoridades e o desinteresse social, a alfabetização foi objeto distribuído de forma irregular pelos grupos sociais, concentrando-se entre os bem situados na ordem social e só crescendo a partir do séc. XVIII. Com a ausência de escolas públicas, a instrução escolar se agasalha no espaço privado e, repousando nos vínculos mais ou menos formais que ligavam um mestre a aprendizes, fossem eles de primeiras letras, ou de outros níveis, ou ainda de ofício, conforme a afirmação de Villalta (1997: 383)

Segundo Reis (2000: 25), os únicos espaços educacionais femininos eram praticamente os conventos e as casas de recolhimento. A ação da Igreja em relação à mulher, promoveu uma reorientação no que diz respeito à educação feminina.

Os conventos e as casas de recolhimento, tão utilizados pela elite baiana, como ponto de apoio indispensável no controle social das mulheres, além de instrução doméstica, eram os únicos espaços para educação feminina, a qual deveria incluir aulas de boas maneiras e etiqueta, virtudes tocantes ao sexo feminino, e também o aprendizado da doutrina, da leitura, da escrita, de instrumentos e de outros conhecimentos básicos.

As mulheres freiras, conforme afirma Nascimento (1994: 221), geralmente sabiam ler e escrever e possuíam livrinhos espirituais. Desse modo, fica patente que as freiras eram alfabetizadas, sendo, pois, na maioria, autógrafos, os documentos selecionados para esta pesquisa.

 

Descrição do manuscrito

O documento a ser transcrito é uma procuração ao Sr. Capitão João de Bastos. O original é assinado pela Rev. Me. Joana Angélica de Jesus - Abadessa, pela Escrivã e pela Discreta do Convento N. Sra. da Conceição da Lapa - BA. É datado de 02 de outubro de 1815, transcrito em letra cursiva, em papel almaço, cor esverdeado claro, poroso, tendo 280 x 160 mm da mancha escrita. O papel mede 305 x 205 mm, apresentando manchas e falhas provocadas pela ação do tempo e dos papirógrafos. Também tem (03) marcas na horizontal e (01) na vertical (dobras).

O texto contém 37 abreviaturas, distribuídas em 27 linhas.

Destaca-se na linha 3, a letra maiúscula P como a mais interessante.

Nota-se que as assinaturas contém o nome terminal de JESUS, escrito em letras maiúsculas.

Ainda há um selo feito artesanalmente, na margem esquerda.

 

Critérios adotados

A transcrição tentou ser o mais fiel possível, seguindo a escrita do texto original.

1. Foram desdobradas as abreviaturas

2. Foi conservada a grafia das consoantes dobradas (ll, tt)

3. No tocante à nasalidade, conservaram-se as várias maneiras de expressão

4. Atualizou-se a grafia da palavra cinqüenta

5. Foi acrescentada, de acordo com o sentido, entre colchetes, a preposição por na linha 14, em virtude de o texto não possibilitar a leitura no local

6. Conservou-se a pontuação do texto original.

 

Transcrição

A R(everen)da M(adr)e Abb(adess)a eEscrivã emais Religiozas da Gover

nancia do Convento da N(ossa) Senhora da Conceição daLapa de Sta Cidade

 

.

.

5

.

.

.

.

10

.

.

.

.

15

.

.

.

.

20

.

.

.

.

 

25

Por esta por huma denos fei-

ta, epor todas assignadas constituimos nosso bastante Procurador

 na Vila das Alagoas, e em todas as outras Villas da mesma Comarca,

Capitania de Pernambuco o S(enh)or Cap(ita)m João de Bastos, para q(ue) po

ssa receber do nosso antigo Procurador o S(enh)or Antônio Jozé de Caldas

todas as quantias, q(ue) o mesmo tiver arrecadado dos nossos devedores, prin

cipalmente o q(ue) nos resta oS(enh)or Ten(ent)e José de Barros Pimentel, ou seus

 herdeiros, por credito, ou Letra aceita e passada em 16 de Fev(erei)ro

de 1802.. a pagamentos de cento e cincoenta mil réiz, a vencer o pri-

meiro pagamento no mez de Fev(evei)ro de 1803, e do q(ue) tiver recebido do Senhor

Antonio Jozé de Caldas, ficarão metade pertencendo aomesmo Se

nhor Caldas segundo o ajuste feito [por] o nosso Procurador o Senhor Antonio

Soares Moreira, ficando logo suspensos todos os poderes concedidos

ao d(itt)o Senhor Antônio Jozé de Caldas, porq(ue) todos os ditos poderes cons-

tituimos napessoa doS(enh)or Cap(ita)m João de Bastos, q(ue) poderá receber

de todos os devedores todas as quantias, passar recibos quitacoens q(ue)

pedidas lheforem e bem affim tudo mais q(ue) nos ha permitido em-

 Direito, esso para nos reservamos toda nova citação B(ahi)a 2-

de Octubro de 1815. Eu Soror Luzia Maria das Chagas Escri-

vãa actual do Convento o escrivi e a assignei

 

Soror Joanna Angelica de JESUS - Aabb(adess)a

Soror Luzia Maria das Chagas - Escrivãa

 Sor(or) Anna Joaq(ui)na do M(enin)o D(eus) - Discr(e)ta

Soror Thomazia M(ari)a do Coração de Jez(us) - Discr(e)ta

Soror Maria Roza do Nascim(en)to - Disc(re)ta

 

Abreviaturas

R(everen)da - l. 01

M(adr)e - l. 01

Abb(adess)ª - l. 01, 23

N(ossa) - l. 02

S(enh)or - l. 06, 06, 09, 12, 13, 17

Cap(ita)m - l. 06, 17

Q(ue) - l. 06, 08, 09, 12, 17, 18, 19

Ten(ent)e - l. 09

Fev(erei)ro - l. 10, 12

Ant(oni)º - l. 13

Dit(t)os - l. 15 / d(itt)o - l. 16

B(ahi)ª - l. 20

Joaq(ui)na - l. 25

M(enin)º - l. 25

D(eus) - l. 25

Sor(or) - l. 25

Discr(e)ta - l. 25 / Disc(re)ta - l. 26, 27

M(ari)ª - l. 26

Jez(us) - l. 26

Nascim(en)to - l. 27

Porq(ue) - l. 16

 

Classificação

- Abreviaturas por suspensão

N(ossa) - l. 02

q(ue) - l. 06, 08, 09, 12, 17, 18, 19

D(eus) - l. 25

Jez(us) - l. 26

porq(ue) - l. 16

Sor(or) - l. 25

 

- Abreviaturas por contração (Não há)

 

- Abreviaturas com letras superpostas

R(everen)da - l. 01

M(adr)e - l. 01

Abb(adess)ª - l. 01, 23

S(enh)or - l. 06, 07, 09, 12, 13, 17

Cap(ita)m - l. 06, 17

Ten(ent)e - l. 09

Fev(erei)ro - l. 10, 12

Ant(oni)º - l. 13

Dit(t)os - l. 15 / d(itt)º l. 16

B(ahi)ª - l. 20

Joaq(ui)na - l. 25

M(enin)º - l. 25

Discr(e)ta - l. 25 / Disc(re)ta l. 26, 27

M(ari)ª - l. 26

Nascim(en)to - l. 27

 

Referências Bibliográficas

FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos dos séc. XVI a XIX. 2ª ed. aum. São Paulo : UNESP/Arquivo do Estado de São Paulo, 1991.

NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e Religião: as enclausuradas clarissa do Convento do Desterro da Bahia - 1977-1890. Bahia : Conselho Estadual de Cultura, 1994.

REIS, Adriana Dantas. Cora: lições de comportamento feminino na Bahia do séc. XIX. Salvador : FCJA; Centro de Estudos Baianos da UFBA, 2000.

SOUZA, Bernardino José de. Joana Angélica - A primeira heroína da Independência do Brasil. Imprensa Official do Estado, R. da Misericórdia. Monografia comemorativa ao 1º centenário da morte da Me. Joana Angélica de Jesus, 1922.

SOUZA, Bernardino José de. Heroínas Baianas. Empreza Graphica de “Revista dos Tribunais”. São Paulo : Livraria José Olympio Editora, 1936.

VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In NOVAIS, Fernando A. e SOUZA, Laura de Mello. História da vida privada no Brasil. São Paulo : Companhia das Letras - (História da vida privada no Brasil; 1); 1997, p. 332-385.