REVELAÇÕES DE UM DOCUMENTO DO SÉC. XVIII
Arlete Silva Santos (UFBA, FACIC e FIB)
De grande utilidade para as diversas áreas do conhecimento, a Edição Diplomática do Inventário dos bens de Antonio Gomes de Souza apresenta características peculiares da escrita do período compreendido entre 1730 a 1763 e revela também outros aspectos que merecem um estudo mais cuidadoso, como as marcas d'água e as abreviaturas presentes no manuscrito, além de ratificar aspectos da história do Brasil do período em questão.
INTRODUÇÃO
Optar-se por uma edição diplomática é acreditar que apesar de toda tecnologia e dos avanços da informática os mistérios da escrita e o que ela revela são importantes para a história da humanidade. A edição proposta contribuirá, certamente, como elemento esclarecedor, auxiliando os estudos nas mais diversas áreas do conhecimento humano.
Trazer o texto à superfície é, sem dúvida, uma das muitas razões porque a Filologia permanece viva entre as ciências. Partindo do texto percorre-se outros caminhos e a ele retorna-se tentando sempre a perfeição. Um trabalho que parece inútil, entretanto reveste-se de extrema singularidade uma vez que essa busca torna o trabalho filológico fascinante, porque é um processo, não um ato único, limitado por um momento, mas uma ação contínua. Tanto mais se conhece o texto, muito mais pode-se saber dele.
Como uma pérola presa na ostra, o texto espera que alguém o liberte para produzir lindas jóias. A edição diplomática funciona como uma das muitas possibilidades de a pérola apresentar-se livre da ostra. A ostra pode ser o manuscrito tal qual ele se apresenta, ao fazer-se uma edição dessa natureza a pérola, que é a escritura, começa a revelar-se.
O labor com o manuscrito assemelha-se ao que faz o paleontólogo. Um simples indício, leva-o cuidadosamente a fazer escavações para descobrir o que está sob a terra, e com paciência e muito cuidado traz à tona, parte da história da humanidade. Muitas vezes, leva anos, muitos anos para reconstruir um fóssil. É assim o trabalho com o manuscrito. Iniciado agora, outras "escavações" se farão para, quem sabe, daqui a alguns anos totalmente revelado, entreguemo-lo, aos estudiosos.
Esse trabalho é algo apaixonante, porque há um fascínio nas revelações paulatinas. O manuscrito não se mostra de uma vez. Ele deixa o investigador curioso, ansioso por saber quem ele é, do que ele trata. Pressa! Não existe essa palavra, quando o assunto é manuscrito. Revelar-se é um processo lento, porém agradável. Saber de tudo de uma vez tira o brilho, o prazer da investigação. Trabalhar com o manuscrito exige cumplicidade. É preciso estabelecer uma relação de forma tal que à medida que você dele se aproxima, ele vai respondendo às suas inquietações.
O estudo com o M2C1, TOM 0811 - 0842, CRO datado de 30 ... 173 - 02 . III . 1763 confirma fatos da história da Bahia, revela outros tantos e induz o pesquisador a encontrar respostas para a história do povo brasileiro. O documento revela também a condição social da época (fo 2r, 2v); revela ainda o que representavam os negros para as famílias (fo 3v, 4r).
Outros aspectos deste documento já foram mencionados no II Congresso Nacional de Linguística e Filologia, em 1998 (ver anais) e neste, chama-se atenção para as abreviaturas e marcas d'água.
As abreviaturas eram usadas para ganhar tempo na escrita, economizar custos, isto é , pouca despesa com o material usado na escrita, era usada também para reverenciar um nome que não podia ser pronunciado, no caso dos deuses. Era costume entre os hebreus, por exemplo, ocultar os nomes sagrados em sinal de respeito, em seu lugar utilizavam um tetragrama (quatro letras). Quando a Bíblia foi traduzida para o grego, adotou-se o sistema hebreu com o objetivo único de abreviar as palavras. Quando a Bíblia foi traduzida para o latim os romanos fizeram o mesmo, copiavam as abreviaturas. Algumas abreviaturas que parecem sem sentido, deve-se, provavelmente as cópias erradas, a exemplo de Cristo com P(XPO). O rô (letra grega) que os escibas não entendiam o traçado, copiavam como se fosse um P.
Sem dúvida, um dos principais problemas que o pesquisador enfrenta com o manuscrito consiste na presença de muitas abreviaturas e muitas vezes várias abreviaturas para uma mesma palavra. Desde o séc IV se tem notícia do uso de muitas abreviaturas: DS = Deus , IHS= Jhesus, XPS= Chistus, CLRS= clericus; a palavra Spiritus era abreviada SPS, SPVS, SPRTS, SPC ; Sanctus abreviava-se SCS, S. SC, SCTS,SNCS,SACS (STIENNON, op. cit. p. 124).
Independente do texto sacro ou do tipo do ms., são os seguintes os sistemas de abreviaturas:
Suspensão também conhecida como abreviatura por apócope apresenta apenas os elementos iniciais do vocábulo. Este sistema se desenvolveu muito a partir da escritura carolíngia na Europa (id. ibd. , p. 129-136).
Contração conhecida como abreviatura por síncope, forma-se mediante a supressão de elementos gráficos no meio do vocábulo.
Letras sobrepostas são abreviaturas com características particulares, de um modo geral não se escreve toda a palavra e coloca-se, acima da última letra onde se parou a escrita, uma letra ou uma sílaba não presente no ato da escrita.
Sinais abreviativos sinais especiais que representam as palavras, assemelhavam-se a letras com algumas peculiaridades: P=pre , P= per, ~e= Ex.
Sem conhecer as abreviaturas torna-se difícil a leitura paleográfica do texto. As abreviaturas desde a república romana causam inquietação, a ponto de já ter se proibido o seu emprego, nos sécs. XII e XIII. O hábito das abreviaturas continuou de tal forma que para as obras jurídicas publicavam-se textos especiais para as leituras das siglas.
A relação abaixo apresentada foi encontrada no ms. M2C1 que apresenta 278 abreviaturas, algumas por contração, outras , por suspensão e outras por letra sobreposta. Percebe-se que as abreviaturas com letra sobreposta foram as mais empregadas e pode-se constatar que há mais de uma abreviatura para a mesma palavra.
1. Por suspensão: an ________ an(o) asig___ asig(nam) p_________ p(ede) p _________ p(or) porq____ porq(ue) q _________ q(ue) s _________ s(ão) V_______ V(ossa) 2. Por contração: Almda_ Alm(ei)da Als______ Al(ve)s Alz’___ Al(vare)z fariha___ fari(n)há fevro__ fev(erei)ro dt_______ d(a)t(a) herdro_ herd(ei)ro inventr_invent(a)r(io) Mda____ M(an)da Mce_____ M(er)ce segdo__ seg(ui)do suppte_ supp(lican)te 3.Letra sobreposta: Andre__ Andr(ad)e Anto___ Ant(oni)o Arha____ Ar(an)ha Arra___ Arr(anh)a aviamtos_ Aviam(en)tos Bapta__ Bapt(ist)a Bermeo__Ber(tholo)meo capm___ cap(ita)m cayxo__ cayx(eir)o conno_ conn(selh)o daqle_____ daq(ue)le deligça__ delig(en)ça despo___ desp(ach)o dinhro___ dinh(ei)ro do__________ d(it)o Do_______ D(out)or dto_________ d(i)to ema______ e m(ei)a emgo___ emg(enh)o emo______ e m(ei)o |
falicimto_ falicim(en)to fariha_____ fari(n)ha fevro____ fev(erei)ro Frano_ Fran(cisc)o frega__ freg(uesi)a Frra___ F(e)rr(eir)a Frre______ Fr(ei)re fza____ f(a)z(end)a herdro__ herd(ei)ro Juramt__ Juram(en)t(o) Lxa____ L(i)s(bo)a Ma______ M(ari)a Mirda__ Mir(an)da mor___ m(orad)or mr______ m(ulhe)r mto______ m(ui)to necesratem_neces(a)r(i)am(en)te pa__________ p(ar)a pagmto__ pag(a)m(en)to parta_____ part(ilh)a parta_____ part(ilh)a parts______ part(e)s Pinhro___ Pinh(ei)ro Po________ P(edr)o po_________ p(raz)o pra_________ p(a)ra rdo____ r(everen)do requerimto_ requerim(en)to ribra______ rib(ei)ra sa_______ s(enhor)a sennça___ sen(te)nça sentç___ sent(en)ç(a) Sirqa____ Sirq(uei)ra Sra______ s(enho)ra supdo___ sup(lica)do supplte_ suppl(ican)te suppte__ supp(lican)te Va_________V(il)a Vaslos_ Vas(conce)los Verde___ Verd(ad)e 4. Letra sobreposta e contração: necesramte_neces(a)r(i)am(en)te |
MARCAS D'ÁGUA
Outro aspecto que mereceu destaque e chamou atenção no manuscrito estudado foram as marcas d'água, que têm ajudado a conhecer o ano, a fabricação do papel e até mesmo a autenticidade do documento.
Segundo estudiosos o papel teria sido inventado no ano de 105 de nossa era, pelo cortesão chinês Tsai Lun (KATZENSTE, 1986. p. 205) e os segredos de sua produção revelados, posteriormente, aos árabes por prisioneiros de guerras chineses. Os princípios de sua fabricação, hoje, em todo o Ocidente, são basicamente os mesmos empregados há 1.900 anos na China (KATZENSTEIN, 1986, p. 205).
De acordo com a história, o princípio de fabricação do papel já era conhecido muito antes de Tsai Lun, uma vez que foi encontrado papel num túmulo, no primeiro século da nossa era, porém acredita-se que Tsai Lun o aperfeiçoou e popularizou. Durante o século IX, a arte da fabricação do papel chegou ao Egito e no século X o papel era produzido no Iêmen e no Marrocos. Trezentos anos depois que o Ocidente aprendeu a arte de fabricação do papel em Samarcana (cidade asiática), os muçulmanos e os judeus introduziram-na na Europa. O papel teria sido introduzido na Itália pelos árabes ou pelos cruzados ou ainda, segundo alguns historiadores pelos judeus.
Todo o papel era de fabrico manual. Só nos meados do século XVIII apareceu o papel tecido ou velino cuja invenção se atribui a John Baskerville, minucioso impressor de Birmingham, Inglaterra. (MCMRUTRIE, 1965, p. 5-76).
O papel passou a apresentar uma marca, conhecida como marca d'água e muitas teorias foram levantadas para explicar o porquê da marca d' água. Pensou-se primeiramente que seriam marcas do fabricante, indicação de quando e onde o papel era fabricado. Essa interpretação nem sempre levava em conta a motivação do artesão, nem o impacto do misticismo e das crenças , antes e durante a idade média. Alguns achavam que a marca d' água pode ter sido símbolo de crenças religiosa de uma determinada irmandade.
Os desenhos usados para as marcas d'água são de grande variedade. Grande número de brasões foi usado como marca d' água, símbolos bíblicos ou outros símbolos, colocados, muitas vezes, nos papéis para atrair proteção e sorte. As marcas d' água têm ajudado a conhecer ao no e a fabricação do papel e até mesmo a autenticidade do documento. O estudo e a identificação dessas marcas é, hoje, um ramo importante da ciência da bibliologia, especialmente em relação as investigações sobre os mais antigos livros impressos.
Marca d'água se refere às diversas maneiras de se gravar estampas nos diversos papéis e suas técnicas. Aqueles que faziam as marcas d'água eram considerados, por muitos, como artistas. O termo marca d' água era usado também para indicar a impressão de linhas ou figuras sobre o papel. As marcas, segundo estudiosos, eram , muitas vezes, arbitrárias; representavam brasões de famílias ou arte de quem trabalhava com o papel, indicava a religião. A autêntica marca d' água tem origem na Itália em 1282. (Swets e Zeitlinger. 1950).
Os desenhos reproduzidos nas marcas d' água são de extraordinária variedade e contém emblemas, numerosos desenhos heráldicos (escudos , armas), partes do corpo humano, animais flores, objetos legendários, símbolos religiosos e de sociedades secretas, os planetas, nomes de pessoas, entre outros. Muitas são as marcas d'água presentes em documentos antigos que remontam ao século XVI. "The standard work by CMB contains reproductions of over 16.000 watermarks found in papers manufactured in Europe before l.600".
Sobre as marcas, os artistas ou a técnica de produção várias são, como se vê, as informações sobre o assunto. A posição das marcas d'água no papel tem diferentes considerações também. Sabe-se que nos séculos XIII e XIV s posição da marca d'água era arbitrária e variável, normalmente ocupava o centro do papel. As marcas receberam designações de Filigrane, Filigranage, Marque de on du papier, Marque d'eau, L'enseigne du fabricant (França), Wasserzeichen, Zeichen des papieres (Alemanha), Filigrana, Marca d'acqua (Itália).
Muitas das primeiras marcas persistem com mudanças de nomes. Letras maiúsculas são achadas em papéis grandes usados por muitos incunábulos alemães. A cruz, flores ou outro ornamento, coroa, são encontrados. Como no período mais antigo, tanto a cruz grega, quanto a cruz latina são encontradas numa variedade de formas, uma das mais recentes aparecia em um círculo oval sendo bastante usada para exportar para a Espanha, tanto neste período quanto no próximo.
Os estudiosos também mencionam a Bélgica, a Inglaterra, a Escandinávia, América , Portugal. Em Portugal também essa arte era bastante comum, porém, apesar disso, sua existência foi mantida em pequenas produções para utilização local, nos séculos XV, XVI e XVII em lugares como Leiria, Alcobaça, e Alenquer (perto de Lisboa). No século XVIII houve uma verdadeira reanimação em Louza, perto de Coimbra, que se tornou um centro importante com a existência de fábricas naquela localidade datada de aproximadamente 1716.
O manuscrito de notação M2C1,TOM 0811-0842 CRO de 30...1730 - 02.III.1763 corpus deste trabalho apresenta dez tipos de marca d'água em vinte e dois fólios. Foram também observados outros vinte e um documentos do século XVIII onde se destacam marcas d'água nos respectivos anos: 1761, 1762, 1778, 1779, 1794, 1731, 1793, 1743, 1758, 1768, 1771, 1766. Algumas apresentavam marcas semelhantes ao manuscrito M2C1, outras, bastantes diferentes e interessantes a exemplo de uma que se assemelha a um grande sol e outra em que se percebe claramente um touro.
As marcas d'água do M2C1
A seguir serão apresentadas as marcas d'água do M2C1, suas respectivas descrições e os fólios em que elas se encontram. Para melhor colocá-las em evidência, desde que o fac-símile do manuscrito não deixa perceber a sua presença, resolveu-se fotografá-las, revelando, desta maneira, a variedade de formas, a riqueza de detalhes e a beleza dessas marcas d'água.
Descreve-se a seguir como se encontra no fólio 29r. No parte superior encontra-se uma coroa; abaixo um bastão em cuja extremidade superior pode-se perceber uma forma como de um coração, sem reentrância, mas com uma pontinha acentuada acima e vai diminuindo a sua forma mais para o meio onde é ladeado por desenho que parecem foices grandes de pequenas e descendo um pouco pode-se ver uma espécie de broche com pérolas por fora e por dentro; sustentando tudo isto temos quatro grandes letras P,D, A e S (as letras com exceção do A encontram-se em posição contrária).
O fólio 30r apresenta uma marca cuja parte superior assemelha-se a uma coroa; segue-se uma espécie de cetro com a parte superior semelhante a um pião ladeado por linhas curvas; na parte inferior apresenta-se como uma folha rodeada de pequenos círculos; abaixo quatro letras: S, A, D, P (em sentido contrário).
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KATZENSTEIN, Úrsula. A origem do livro. Da idade da pedra ao advento da impressão tipográfica no Ocidente. São Paulo : Hucitec / INL, 1986.
MARTINS, Wilson. A palavra escrita. São Paulo : Anhembi Ltda. 1957.
MCMURTRIE, Douglas C. O livro. trad. de Maria Luísa S. Machado. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1965. p. 63-76.
SWETS e ZEITLINGER. Diccionary e encyclopedia of paper e papermaking. Amsterdan, 1950.