VARIEDADES SEMÂNTICAS DO LATIM VULGAR.

COMUNICAÇÃO

por

Ruy Magalhães de Araújo

Neste trabalho, apresentaremos, de forma sucinta, algumas palavras do latim vulgar que sofreram alteração de significado (ou não) em sua passagem para o Português e para as outras línguas românicas.

A formação do acervo vocabular do latim vulgar deveu-se, em grande parte, às leis reguladoras da semasiologia. Como exemplo, veja-se a palavra manducare, “mastigar”, ao lado de comedere, “comer”. O seu emprego semântico expressa a mesma idéia.

Considerável número de palavras desapareceu e surgiram muitas outras palavras novas provindas do grego, do celta, do germânico.

Novos verbos formaram-se de substantivos, adjetivos, particípios presente e passado, bem assim novos substantivos provieram de verbos.

Várias cláusulas verbais introduziram-se por meio das partículas quia, quod, quoniam, aut, ut.

Os desgastes fonológicos sofridos pelos vocábulos, devido ao acento de intensidade do latim peninsular, reduziram, por vezes, esses nomes a apenas ma sílaba, os quais foram reforçados com o uso de sufixos e prefixos de várias espécies: surgiram, assim, aumentativos, diminutivos, incoativos, usados tão somente com a função de dar corpo ao vocábulo original.

Vejamos, a seguir alguns exemplos com os respectivos comentários:

CRUS

Deu em português: coxa, e foi substituído por GAMBA; em francês: jambe; italiano: gamba. Existem, ainda, em português formas eruditas com o adjetivo crural, relativo ou pertencente à coxa: artéria crural, e o substantivo crurifrágio, do lat. crurifragiu, que designava antiga forma de suplício, com a quebradura das pernas.

IECUR FICATUM

Do grego hpar sukwton /hepar sicotón/, expressão que servia para designar o fígado de gansos e porcos, especialmente engordados com figos para se tornarem mais saborosos. Trata-se de uma iguaria muito apreciada na Antiguidade Clássica. IECUR designava fígado em latim, porém, de forma alguma, poderá provir dessa palavra.

Português: fígado; italiano: fegato; espanhol: hígado; francês: foie; romeno: ficát; catalão: fetg.

EQUUS/CABALLUS

No latim clássico, EQUUS, m. era o animal bem tratado, usado em Roma nas pistas de corrida, passeios, quase sempre a serviço dos patrícios. Em português: eqüino, adjetivo, pertencente ou relativo ao cavalo; cavalar. Também o substantivo, animal eqüino. Igualmente, os substantivos eqüinocultor, aquele que se dedica à eqüinocultura e eqüinocultura, criação de cavalos, em especial de raça; eqüírios, do latim equiria, s. neutro plural, corridas de cavalos; equitação, arte e exercício de cavalgar; equitador, aquele que conhece equitação; bom cavaleiro; éqüite, p. us., o mesmo que cavaleiro.

Para o feminino EQUA conservou-se integralmente a forma.

Português: égua; espanhol: yegua; Catalão: egua ou euga; Provençal antigo: egoa ou ega; sardo: ebba; romeno: iapă.

No latim vulgar, CABALLUS era o animal de carga, usado sempre no trabalho pesado, geralmente castrado. Em português:

Português: cavalo; espanhol: caballo; italiano: cavallo; francês: cheval; provençal: cavall; catalão: cavall; romeno: cal; sardo: cal.

É interessante notar-se que existia em latim a palavra JUMENTUM, besta de carga, e com que também se designiva a EQUA.

Português: jumento; francês: jument (antigo IVE)).

CAPUT/CAPITIA (provém do latim vulgar hispânico).

TESTAM

CAPUT. Port. capital, capitão, capítulo, cabo.

CAPITIA. Port. cabeça; esp. cabeza.

TESTAM. Port. testa; esp. text;. it. testone; fr. tête.

CASEUS/FORMATICUS

CASEUS. Port. queijo; esp. queso; sardo casu; rom. cas.

FORMATICUS. Fr. fromage; prov. fromatge; cat. formatge; it. formaggio (talvez empréstimo francês da época carolíngia).

APIS/APICULA

APIS. Por. apicultura, apiário, apicultor.

APICULA. Port. abelha; esp. abeja; fr. abeille. Em abelhinha, diacronicamente, existe duplo sentido.

IGNIS/FOCUS

IGNIS. Port. ígneo, ignição.

FOCUS. Port. fogo; esp. fuego; it. fuoco; fr. feu.

 

NULLAM REM/REM NATAM (= coisa nenhuma nascida).

Port. arc. re<rem.

Fr. Il n’y a pas rien. // Nulle parte; prov. ren.

It. tardio: Non te fatto nulla.

Port. atual: nada.

Esp. nada; cat. res (conservou o nominativo).

Segundo Sílvio Elia, Preparação à Lingüística Românica, Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979, p. 246, “(...) ocorriam também outras formações, como ne gente (de onde o it. niente e o fr. néant) e ne mica ‘nem uma migalha’, de onde o rom. nimic.

No ptg. arc. também existiu nemigalha. E igualmente forma do ptg. arc. o pron. adj. nulho, fem. nulha, fruqüentemente unido ao subst. homem (grafado ome), com o sentido de ‘ninguém’: nulho ome. Era igualmente bastante comum, mormente nos Cancioneiros, a expressão nulha rem, no sentido de ‘nada’. Possivelmente se trata de locução provinda do provençal.”.

BELLUS/FORMOSUS

BELLUS, na linguagem amorosa substituiu pulcher, que desapareceu inteiramente, surgindo outro: formosus, que só permaneceu vivo na Península Ibérica. Port. formoso; esp. hermoso.

OS/BUCCA

OS. Port. oral, oralidade.

BUCCA. Port., esp., cat;. prov. boca; fr. bouche

COMEDERE/MANDUCARE

COMEDERE.

COM (pref.)

ED (radical).

ERE (desinência verbal).

EDERE (comer) foi substituído por comedere e mais tarde por manducare (mastigar)

COMEDERE. Port. e esp. comer.

MANDUCARE. Fr. manger; cat. menjar; prov. manja; sardo: mandicare; rom. mênca; it. mangiare. Em port. e esp. existe manjar. Admite-se ser um galicismo.

AURICULA por AURIS

Port. orelha; esp. oreja; fr. oreille; it. orecchio.

PARABOLA < do gr. παραβολή /parabolé/ indica a comparação portuguesa parábola. Era a forma pela qual Jesus Cristo se expressava no Evangelho, isto é, através das palavras.

It. parola e parlare; fr. parole e parler derivados regularmente de parábola (contraída em paraula) e de paraulare. A palavra francesa parole é de formação erudita. Os termos em latim clássico que designavam palavra e falar, isto é, verbum e loqui, não sobreviveram, sendo empregados, contudo, apenas em sentido especial.

MAGIS/PLUS

Surgiram para substituir o comparativo formado por IOR.

MAGIS. O vocábulo permaneceu apenas na Península Ibérica.

Port. mais; esp. más.

PLUS ficou adstrito às Gálias e à Itália.

Fr. plus; it. più.

DOMUS/CASA

DOMUS foi substituído por CASA.

Port. casa; rom. căsa.

PLORARE/PLANGERE

PLORARE substituiu FLERE, chorar. Contudo, o significado de plorare era “chorar soltando gritos de dor e o seu sentido se aproximava antes de ‘lacrimare’ que de ‘flere’ (...)” (Sílvio Elia, op. cit., p. 246).

Port. chorar; esp. llorar; cat. plurá; prov. plourá; fr. pleurer.

Na România Ocidental , porém, teve mais êxito um outro verbo, plangere, cujo sentido em latim era o de ‘chorar golpeando o peito como demonstração de dor muito profunda’. Tinha, pois, valor afetivo. Plangere continuou nas línguas que mantiveram a 3ª conjugação: it. piangere, sd. pranghere, rom. plênge.” (Sílvio Elia, Op. cit., p. 246-247).

AGER/CAMPUS

CAMPUS substituiu AGER, passando a significar campina.

ROSTRUM, bico, focinho, passou a significar BOCA e FACE.

Rom. ant. rost, boca; port. rosto; esp. rostro; cat. rostre.

“COSTA , além de costela, é ladeira de colina, litoral, como revela o consenso das línguas românicas (rom. coastă, etc.);

PAPILIO (=borboleta) significa metaforicamente tenda, sentido documentado na época imperial e conservado em algumas línguas românicas;

*TIMO (= TEMO) já tem o significado de leme (port. timão, esp. timón, fr. timon, it. e log. timone);

VOTUM (= voto que se faz no casamento) passa a significar núpcias e daí festa (conf. port. bodas, como no resto da Ibéria; na Gália significa festa; no abruzzês devutarse significa ficar noivo);

VITIUM tem muito freqüentemente o sentido de costume, sem dúvida já no latim vulgar;

FOX (por faux) fica no singular com o sentido de foz e desfiladeiro (este nas línguas ocidentais);

TABULA (= prancha, tábua) aplica-se a mesa;

CEREBELLUM ( = mioleira de carneiro, de vitelo, etc) passa a sinônimo de cerebrum;

HOSTIS ( = inimigo) passa a ser exército (rom. oaste, it. oste, etc);

*AUCA (avica), diminutivo de avis, restringindo o sentido, designa o ganso;

VECTURA ( = o ato de viajar, a viagem) toma sentido concreto devehiculum (só documentado no Ocidente);

NITIDUS ( = brilhante) se emprega com a significação de pinguis;

IOCUS (gracejo) e IOCARE (gracejar) se usam por ludus e ludere;

FRUCTUS por pomum é só ocidental, mas certamente antigo;

TEMPUS por TEMPESTAS ‘estado metereológico da atmosfera’ (e.g. rom. timp; fr. temps; port. tempo, etc);

CAUSA toma o lugar de res no Ocidente (desde o latim vulgar).

De conformidade com a adaptação que fizemos do Professor Theodoro Henrique Maurer Jr., em seu livro Gramática do Latim Vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959, pp. 237-238.

Ainda o Prof. Sílvio Elia, op. cit., pp. 248 a 250, comenta os seguintes exemplos:

PLICARE/ADRIPARE

Em latim os vocábulos que traduziam a idéia de ‘chegar’ eram venire ou advenire. Venire restringiu o sentido de ‘vir’, antônimo de ‘ir’. A idéia de ‘chegar’ opõe-se a de ‘partir’.

O étimo ‘chegar’ é um latim plicare, cujo sentido próprio é ‘dobrar’ (cfr. o fr. plier).

A evolução de sentido teria ocorrido do emprego do verbo na linguagem náutica e estaria na expressão plicare vela, isto é, dobrar as velas da nau quanto a embarcação chega ao porto.

Na Peregtinatio Aetheriae, narrativa de viagem de uma monja presunivelmente espanhola, encontra-se plicare ou plecare, com o sentido de ‘chegar’ em mais de um passo como este: ‘et (ut) sic plecaremus nos ad montem Dei’.

Plecare é a base do ptg. chegar e do esp. llegar.

Plecare também deixou descendência em romeno no verbo a pleca, mas com sentido exatamente oposto ao que tem na Península Ibérica, pois, no Oriente significa ‘partir’. Aqui se vai buscar explicação à linguagem militar: plicare tentoria, isto é, dobrar as tendas do acampamento para pôr-se em marcha.

Outro substituto léxico de advenire foi adripare, termo também da linguagem marinheira, pois significa propriamente ‘aproximar-se do litoral’. É a significação que o termo tem em esp., de onde passou ao ptg. (arribar ao porto).

De adripare, através de arripare, chegou-se ao fr. arriver, e do fr. o vocábulo transitou para o it. arrivare e o cat. arribar.

LAT. CLÁSS. OBLIVISCI

A idéia de ‘esquecer’ era expressa em lat. pelo depoente oblivisci.

Esse depoente foi substituído na latinidade pelo verbo ativo oblitare, calcado sobre o tema do part. pass. oblitus.

De oblitare é que procedem o esp. olvidar, o cat. oblitar, o prov. oublidà (ant. oblidar), o fr. oublier. Oblitare estendeu-se até o Oriente (rom. uita), o que demonstra a sua antiguidade.

Na Lisitânia surgiu uma inovação *excadescere ou *excadiscere (Car. Michaelis), no Gloss. Canc. Aj.), cuja base é o verbo cadere (cadére, na Península Ibérica), ‘cair’, porque esquecer é como que caírem da memória as idéias pouco a pouco’ (L. de Vasc., Lições, (151). D. Carolina manda comparar com o al. es enfällt mir.

Consoante ficou demonstrado, a transmutação a semântica ocorrida com essas palavras configurou-se como fator importante para determinar as diferentes facetas que as caracterizaram ao longo de sua evolução diacrônica.

Tal assertiva ainda mais se consolida ao fazermos a comparação dessas mesmas palavras com as línguas românicas que as adotaram.

 

BIBLIOGRAFIA

AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Trad. de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1972.

BOLÉO, Manuel de Paiva. Introdução ao estudo da Filologia Portuguesa. Lisboa: Revista de Portugal, 1946.

BOURCIEZ, E. Éléments de Linguistique Romane. Paris: Klincksieck, 1956.

CARVALHO, J. G. Herculano de. Coisas e Palavras (alguns problemas etnográficos e lingüísticos relacionados com os primitivos sistemas de debulha na Península Ibérica). Coimbra: Separata de Biblos, vol. XXIX, 1953.

COSERIU, Eugênio. Estúdios de Lingüística Românica. Madrid: Gredos, 1977.

COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976.

ELIA, Sílvio Edmundo. Preparação à Lingüística Românica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979.

ERNOUT, Alfred. Les Éléments Dialectaux du Vocabulaire Latin. Paris: 1928.

JUCÁ (filho) Cândido. Gramática Histórica do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: EPASA, 1945.

LEITE DE VASCONCELOS, J. Lições de Filologia Portuguesa. Lisboa: 1926.

MEIER, Harri. Ensaios de Filologia Românica. Rio de Janeiro: Grifo, 1974.

MEILLET, A. & ERNOUT, A. Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine. 3ème. éd. 2 v. Paris: 1951.

MICHAËLIS DE VASCONCELOS, Carolina. Lições de Filologia Portuguesa. Revista de Portugal. Lisboa: 1946.

RIBEIRO, João. Estudos Filológicos. Rio de Janeiro: 1902.

SAID ALI, M. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1964.

SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de Linguistique Générale. Paris: 1949.

SILVA NETO, Serafim. Manual de Filologia Portuguesa. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1952.

- - - - . Fontes do Latim Vulgar. O Appendix Probi. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1956.

- - - - - . História do Latim Vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1957.

VIDOS, Benedek Elemér. Manual de Lingüística Românica. Trad. do Prof. Dr. José Pereira da Silva. Revisão técnica do Prof. Dr. Evanildo Bechara. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.

WILLIAMS, Edwin B. Do Latim ao Português. Trad. de Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1961.

Variedades Semânticas do latim vulgar.

 

 

COMUNICAÇÃO

por

Ruy Magalhães de Araújo

Neste trabalho, apresentaremos, de forma sucinta, algumas palavras do latim vulgar que sofreram alteração de significado (ou não) em sua passagem para o Português e para as outras línguas românicas.

A formação do acervo vocabular do latim vulgar deveu-se, em grande parte, às leis reguladoras da semasiologia. Como exemplo, veja-se a palavra manducare, “mastigar”, ao lado de comedere, “comer”. O seu emprego semântico expressa a mesma idéia.

Considerável número de palavras desapareceu e surgiram muitas outras palavras novas provindas do grego, do celta, do germânico.

Novos verbos formaram-se de substantivos, adjetivos, particípios presente e passado, bem assim novos substantivos provieram de verbos.

Várias cláusulas verbais introduziram-se por meio das partículas quia, quod, quoniam, aut, ut.

Os desgastes fonológicos sofridos pelos vocábulos, devido ao acento de intensidade do latim peninsular, reduziram, por vezes, esses nomes a apenas ma sílaba, os quais foram reforçados com o uso de sufixos e prefixos de várias espécies: surgiram, assim, aumentativos, diminutivos, incoativos, usados tão somente com a função de dar corpo ao vocábulo original.

Vejamos, a seguir alguns exemplos com os respectivos comentários:

CRUS

Deu em português: coxa, e foi substituído por GAMBA; em francês: jambe; italiano: gamba. Existem, ainda, em português formas eruditas com o adjetivo crural, relativo ou pertencente à coxa: artéria crural, e o substantivo crurifrágio, do lat. crurifragiu, que designava antiga forma de suplício, com a quebradura das pernas.

IECUR FICATUM

Do grego hpar sukwton /hepar sicotón/, expressão que servia para designar o fígado de gansos e porcos, especialmente engordados com figos para se tornarem mais saborosos. Trata-se de uma iguaria muito apreciada na Antiguidade Clássica. IECUR designava fígado em latim, porém, de forma alguma, poderá provir dessa palavra.

Português: fígado; italiano: fegato; espanhol: hígado; francês: foie; romeno: ficát; catalão: fetg.

EQUUS/CABALLUS

No latim clássico, EQUUS, m. era o animal bem tratado, usado em Roma nas pistas de corrida, passeios, quase sempre a serviço dos patrícios. Em português: eqüino, adjetivo, pertencente ou relativo ao cavalo; cavalar. Também o substantivo, animal eqüino. Igualmente, os substantivos eqüinocultor, aquele que se dedica à eqüinocultura e eqüinocultura, criação de cavalos, em especial de raça; eqüírios, do latim equiria, s. neutro plural, corridas de cavalos; equitação, arte e exercício de cavalgar; equitador, aquele que conhece equitação; bom cavaleiro; éqüite, p. us., o mesmo que cavaleiro.

Para o feminino EQUA conservou-se integralmente a forma.

Português: égua; espanhol: yegua; Catalão: egua ou euga; Provençal antigo: egoa ou ega; sardo: ebba; romeno: iapă.

No latim vulgar, CABALLUS era o animal de carga, usado sempre no trabalho pesado, geralmente castrado. Em português:

Português: cavalo; espanhol: caballo; italiano: cavallo; francês: cheval; provençal: cavall; catalão: cavall; romeno: cal; sardo: cal.

É interessante notar-se que existia em latim a palavra JUMENTUM, besta de carga, e com que também se designiva a EQUA.

Português: jumento; francês: jument (antigo IVE)).

CAPUT/CAPITIA (provém do latim vulgar hispânico).

TESTAM

CAPUT. Port. capital, capitão, capítulo, cabo.

CAPITIA. Port. cabeça; esp. cabeza.

TESTAM. Port. testa; esp. text;. it. testone; fr. tête.

CASEUS/FORMATICUS

CASEUS. Port. queijo; esp. queso; sardo casu; rom. cas.

FORMATICUS. Fr. fromage; prov. fromatge; cat. formatge; it. formaggio (talvez empréstimo francês da época carolíngia).

APIS/APICULA

APIS. Por. apicultura, apiário, apicultor.

APICULA. Port. abelha; esp. abeja; fr. abeille. Em abelhinha, diacronicamente, existe duplo sentido.

IGNIS/FOCUS

IGNIS. Port. ígneo, ignição.

FOCUS. Port. fogo; esp. fuego; it. fuoco; fr. feu.

 

NULLAM REM/REM NATAM (= coisa nenhuma nascida).

Port. arc. re<rem.

Fr. Il n’y a pas rien. // Nulle parte; prov. ren.

It. tardio: Non te fatto nulla.

Port. atual: nada.

Esp. nada; cat. res (conservou o nominativo).

Segundo Sílvio Elia, Preparação à Lingüística Românica, Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979, p. 246, “(...) ocorriam também outras formações, como ne gente (de onde o it. niente e o fr. néant) e ne mica ‘nem uma migalha’, de onde o rom. nimic.

No ptg. arc. também existiu nemigalha. E igualmente forma do ptg. arc. o pron. adj. nulho, fem. nulha, fruqüentemente unido ao subst. homem (grafado ome), com o sentido de ‘ninguém’: nulho ome. Era igualmente bastante comum, mormente nos Cancioneiros, a expressão nulha rem, no sentido de ‘nada’. Possivelmente se trata de locução provinda do provençal.”.

BELLUS/FORMOSUS

BELLUS, na linguagem amorosa substituiu pulcher, que desapareceu inteiramente, surgindo outro: formosus, que só permaneceu vivo na Península Ibérica. Port. formoso; esp. hermoso.

OS/BUCCA

OS. Port. oral, oralidade.

BUCCA. Port., esp., cat;. prov. boca; fr. bouche

COMEDERE/MANDUCARE

COMEDERE.

COM (pref.)

ED (radical).

ERE (desinência verbal).

EDERE (comer) foi substituído por comedere e mais tarde por manducare (mastigar)

COMEDERE. Port. e esp. comer.

MANDUCARE. Fr. manger; cat. menjar; prov. manja; sardo: mandicare; rom. mênca; it. mangiare. Em port. e esp. existe manjar. Admite-se ser um galicismo.

AURICULA por AURIS

Port. orelha; esp. oreja; fr. oreille; it. orecchio.

PARABOLA < do gr. παραβολή /parabolé/ indica a comparação portuguesa parábola. Era a forma pela qual Jesus Cristo se expressava no Evangelho, isto é, através das palavras.

It. parola e parlare; fr. parole e parler derivados regularmente de parábola (contraída em paraula) e de paraulare. A palavra francesa parole é de formação erudita. Os termos em latim clássico que designavam palavra e falar, isto é, verbum e loqui, não sobreviveram, sendo empregados, contudo, apenas em sentido especial.

MAGIS/PLUS

Surgiram para substituir o comparativo formado por IOR.

MAGIS. O vocábulo permaneceu apenas na Península Ibérica.

Port. mais; esp. más.

PLUS ficou adstrito às Gálias e à Itália.

Fr. plus; it. più.

DOMUS/CASA

DOMUS foi substituído por CASA.

Port. casa; rom. căsa.

PLORARE/PLANGERE

PLORARE substituiu FLERE, chorar. Contudo, o significado de plorare era “chorar soltando gritos de dor e o seu sentido se aproximava antes de ‘lacrimare’ que de ‘flere’ (...)” (Sílvio Elia, op. cit., p. 246).

Port. chorar; esp. llorar; cat. plurá; prov. plourá; fr. pleurer.

Na România Ocidental , porém, teve mais êxito um outro verbo, plangere, cujo sentido em latim era o de ‘chorar golpeando o peito como demonstração de dor muito profunda’. Tinha, pois, valor afetivo. Plangere continuou nas línguas que mantiveram a 3ª conjugação: it. piangere, sd. pranghere, rom. plênge.” (Sílvio Elia, Op. cit., p. 246-247).

AGER/CAMPUS

CAMPUS substituiu AGER, passando a significar campina.

ROSTRUM, bico, focinho, passou a significar BOCA e FACE.

Rom. ant. rost, boca; port. rosto; esp. rostro; cat. rostre.

“COSTA , além de costela, é ladeira de colina, litoral, como revela o consenso das línguas românicas (rom. coastă, etc.);

PAPILIO (=borboleta) significa metaforicamente tenda, sentido documentado na época imperial e conservado em algumas línguas românicas;

*TIMO (= TEMO) já tem o significado de leme (port. timão, esp. timón, fr. timon, it. e log. timone);

VOTUM (= voto que se faz no casamento) passa a significar núpcias e daí festa (conf. port. bodas, como no resto da Ibéria; na Gália significa festa; no abruzzês devutarse significa ficar noivo);

VITIUM tem muito freqüentemente o sentido de costume, sem dúvida já no latim vulgar;

FOX (por faux) fica no singular com o sentido de foz e desfiladeiro (este nas línguas ocidentais);

TABULA (= prancha, tábua) aplica-se a mesa;

CEREBELLUM ( = mioleira de carneiro, de vitelo, etc) passa a sinônimo de cerebrum;

HOSTIS ( = inimigo) passa a ser exército (rom. oaste, it. oste, etc);

*AUCA (avica), diminutivo de avis, restringindo o sentido, designa o ganso;

VECTURA ( = o ato de viajar, a viagem) toma sentido concreto devehiculum (só documentado no Ocidente);

NITIDUS ( = brilhante) se emprega com a significação de pinguis;

IOCUS (gracejo) e IOCARE (gracejar) se usam por ludus e ludere;

FRUCTUS por pomum é só ocidental, mas certamente antigo;

TEMPUS por TEMPESTAS ‘estado metereológico da atmosfera’ (e.g. rom. timp; fr. temps; port. tempo, etc);

CAUSA toma o lugar de res no Ocidente (desde o latim vulgar).

De conformidade com a adaptação que fizemos do Professor Theodoro Henrique Maurer Jr., em seu livro Gramática do Latim Vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959, pp. 237-238.

Ainda o Prof. Sílvio Elia, op. cit., pp. 248 a 250, comenta os seguintes exemplos:

PLICARE/ADRIPARE

Em latim os vocábulos que traduziam a idéia de ‘chegar’ eram venire ou advenire. Venire restringiu o sentido de ‘vir’, antônimo de ‘ir’. A idéia de ‘chegar’ opõe-se a de ‘partir’.

O étimo ‘chegar’ é um latim plicare, cujo sentido próprio é ‘dobrar’ (cfr. o fr. plier).

A evolução de sentido teria ocorrido do emprego do verbo na linguagem náutica e estaria na expressão plicare vela, isto é, dobrar as velas da nau quanto a embarcação chega ao porto.

Na Peregtinatio Aetheriae, narrativa de viagem de uma monja presunivelmente espanhola, encontra-se plicare ou plecare, com o sentido de ‘chegar’ em mais de um passo como este: ‘et (ut) sic plecaremus nos ad montem Dei’.

Plecare é a base do ptg. chegar e do esp. llegar.

Plecare também deixou descendência em romeno no verbo a pleca, mas com sentido exatamente oposto ao que tem na Península Ibérica, pois, no Oriente significa ‘partir’. Aqui se vai buscar explicação à linguagem militar: plicare tentoria, isto é, dobrar as tendas do acampamento para pôr-se em marcha.

Outro substituto léxico de advenire foi adripare, termo também da linguagem marinheira, pois significa propriamente ‘aproximar-se do litoral’. É a significação que o termo tem em esp., de onde passou ao ptg. (arribar ao porto).

De adripare, através de arripare, chegou-se ao fr. arriver, e do fr. o vocábulo transitou para o it. arrivare e o cat. arribar.

LAT. CLÁSS. OBLIVISCI

A idéia de ‘esquecer’ era expressa em lat. pelo depoente oblivisci.

Esse depoente foi substituído na latinidade pelo verbo ativo oblitare, calcado sobre o tema do part. pass. oblitus.

De oblitare é que procedem o esp. olvidar, o cat. oblitar, o prov. oublidà (ant. oblidar), o fr. oublier. Oblitare estendeu-se até o Oriente (rom. uita), o que demonstra a sua antiguidade.

Na Lisitânia surgiu uma inovação *excadescere ou *excadiscere (Car. Michaelis), no Gloss. Canc. Aj.), cuja base é o verbo cadere (cadére, na Península Ibérica), ‘cair’, porque esquecer é como que caírem da memória as idéias pouco a pouco’ (L. de Vasc., Lições, (151). D. Carolina manda comparar com o al. es enfällt mir.

Consoante ficou demonstrado, a transmutação a semântica ocorrida com essas palavras configurou-se como fator importante para determinar as diferentes facetas que as caracterizaram ao longo de sua evolução diacrônica.

Tal assertiva ainda mais se consolida ao fazermos a comparação dessas mesmas palavras com as línguas românicas que as adotaram.

 

BIBLIOGRAFIA

AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Trad. de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1972.

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BOURCIEZ, E. Éléments de Linguistique Romane. Paris: Klincksieck, 1956.

CARVALHO, J. G. Herculano de. Coisas e Palavras (alguns problemas etnográficos e lingüísticos relacionados com os primitivos sistemas de debulha na Península Ibérica). Coimbra: Separata de Biblos, vol. XXIX, 1953.

COSERIU, Eugênio. Estúdios de Lingüística Românica. Madrid: Gredos, 1977.

COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976.

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ERNOUT, Alfred. Les Éléments Dialectaux du Vocabulaire Latin. Paris: 1928.

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LEITE DE VASCONCELOS, J. Lições de Filologia Portuguesa. Lisboa: 1926.

MEIER, Harri. Ensaios de Filologia Românica. Rio de Janeiro: Grifo, 1974.

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RIBEIRO, João. Estudos Filológicos. Rio de Janeiro: 1902.

SAID ALI, M. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1964.

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