ALTERIDADE NA MÍDIA IMPRESSA
O DISCURSO IRÔNICO DE LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

Roberto Carlos da Silva Borges (UERJ)

 

Alteridade e Ironia

Desde 1999, o fenômeno da ironia tem se constituído como fruto de nosso interesse e como objeto de estudo e , a partir dessa data , uma pergunta nos incomoda:

Como se constitui a ironia como fenômeno de linguagem?

Na tentativa de encontrar alguma resposta, resolvemos eleger Luís Fernando Veríssimo, autor brasileiro contemporâneo, que produz romances, contos e crônicas e que tem como traço característico de seus textos a ironia e o humor.

O texto de Veríssimo, além de irônico, é curto, de fácil e rápida leitura, mas exige que seu leitor detenha um certo conhecimento de mundo para entendê-lo.

Resolvemos, então, nesse momento, trabalhar com a heterogeneidade mostrada que “incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação” (Maingueneau,1997:75), especificamente, trabalharemos com discurso relatado (direto) e polifonia. Para selecionar o corpus, decidimos optar por um texto em que aparece a personagem “Dora Avante” (“Dorinha”), uma “socialite socialista”, que é uma espécie de caricatura das “socialites” brasileiras e, conseqüentemente, clichê também de nossa elite.

 

A proposta

Nosso trabalho nasce do interesse despertado em nós todas as vezes que a personagem “Dorinha” surge na coluna de Veríssimo: as cartas/crônicas obedecem a um mesmo formato, iniciando-se, na grande maioria das vezes, pelo título “Outra carta de Dorinha”, que é seguido por um locutor que nos diz quase que invariavelmente: “Recebo outra carta de Dorinha. Dorinha como se sabe...” Jamais se pode prever o que este locutor relatará após este verbo. “Dorinha” surpreende sempre.

Quando surge a voz deste segundo locutor, nada nem ninguém é poupado. Essa voz irônica não poupa o Presidente da República, autoridade máxima em nosso país, nem nenhuma outra autoridade de qualquer escalão; sequer poupa suas próprias amigas, que compõem o grupo denominado “Socialites socialistas”.

“Dorinha” representa a classe opressora, economicamente abastada de nosso país e, como tal, ocupando esta posição discursiva, escreve em protesto, reclamando “seus direitos”.

Tentaremos, aqui, analisar algumas marcas discursivas para a construção do discurso irônico.

 

Um pouco de teoria

Se estamos certos de que “não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos” (Orlandi,2000:9), muito menos poderá haver em textos, como o do nosso “corpus”, que têm a ironia como marca.

A ironia configura-se como uma voz que expressa um ponto de vista insustentável. É uma voz diferente da do locutor, é a subversão entre o que é assumido e o que não é assumido por este. Ele assume as palavras, mas não o ponto de vista que elas representam. (Maingueneau, 1997:77)

Como foi apontado por Maingueneau (1997:99), a transcrição da ironia é muito difícil de ser realizada, pois não se pode recorrer à entonação ou à mímica para desvendá-la. Faz-se necessária, então, a utilização de caracteres gráficos, como as aspas, por exemplo, que são um sinal construído para ser decifrado por um destinatário. Quando não há esses índices, como é o caso dos textos analisados, os elementos contraditórios devem ser recuperados através do contexto.

A ironia é um fenômeno muito sutil e produto laborioso da inteligência. Ela pressupõe a existência de um destinatário hábil em desvendá-la e de um locutor que se permite fugir às normas de coerência impostas pela argumentação.

Caso o receptor da mensagem irônica não seja capaz de decodificá-la como tal, a mesma perde o sentido, como Brait (1996:44) mencionou, utilizando Freud:

A ironia só pode ser empregada quando a outra pessoa está preparada para escutar o oposto, de modo que não pode deixar de sentir uma inclinação a contradizer. Em conseqüência dessa condição a ironia se expõe facilmente ao risco de ser mal-entendida.

Na página 165 da mesma obra, Brait ainda cita Assoun, ratificando o que dissemos:

O percurso em direção à verdade é feito pela contramão, mas que o locutor conta com a sintonia do seu interlocutor. Ou seja: É de fato, no espírito do destinatário que a verdade irônica faz eclodir seu efeito, mas de maneira a estabelecer uma seqüência de três elementos: o eu consciente, o outro e o eu inconsciente. (Assoun, 1980:165)

Ao lermos os textos de Luís Fernando Veríssimo, em particular as “Cartas de Dorinha”, podemos comprovar a veracidade do que é apontado por Brait no fragmento acima. Um leitor comum, sem o conhecimento de mundo (principalmente no que tange à política e à sociedade) é incapaz de captar o traço irônico ali presente.

Propusemo-nos a analisar nosso texto sob a perspectiva da heterogeneidade mostrada, como já dissemos, enfocando a polifonia e o discurso direto.

Para Ducrot (Maingueneau, 1997:76), “há polifonia quando é possível distinguir em uma enunciação dois tipos de personagens, os enunciadores e os locutores”. O locutor “é “um ser que no enunciado é apresentado como seu responsável” (idem) e os enunciadores “são seres cujas vozes estão presentes na enunciação sem que lhes possa, entretanto, atribuir palavras precisas...” (op.cit.:77)

Podemos perceber, no texto analisado, claramente a presença de dois locutores explícitos. Temos uma dupla enunciação, que é marcada, principalmente, pela existência de aspas. O primeiro locutor anuncia-nos o recebimento de uma carta, como já foi dito anteriormente, faz a introdução e abre aspas. Ao proceder dessa forma, deixa clara a marca de alteridade. Depois disto, a voz não é mais sua, deixa de ser responsável pelos enunciados que se seguem. O pronome eu , as marcas de primeira pessoa, deixam de se referir a ele e passam a referir-se a um outro locutor. Isto ainda é reforçado no final do texto pela assinatura de “Dorinha”. Falando de assinatura Ducrot (1987:183) diz que

Em primeiro lugar, ela serve algumas vezes para indicar quem é o locutor, o ser designado pelo eu e a quem é imputada a responsabilidade do enunciado. (...) A segunda função , essencial, é a de assegurar a identidade entre o locutor indicado no texto e um indivíduo empírico, e a assinatura realiza tal função em virtude de uma forma social que exige que a assinatura seja “autêntica.

As duas assinaturas, a de Veríssimo na crônica jornalística e a de Dorinha na carta, são as provas da existência de dois locutores, de um eu e um outro eu.

Voltando às aspas, elas deixam claro que a polifonia se instaura e não só; além disso, o locutor em questão se recusa à responsabilidade pelo que entre elas será dito. Ele distancia-se, colocando as palavras do outro locutor fora de seu espaço (cf. Maingueneau,1997: 90).

A introdução da fala do segundo locutor se dá, em primeira instância, nos textos analisados, pelo relato em estilo indireto, no qual segundo Althier-Revuz (1998:139) , “... o enunciador relata um outro ato de enunciação e usando suas próprias palavras, pelas quais ele reformula as palavras de outra mensagem: o modo semiótico do discurso indireto é, de maneira homogênea, o modo padrão.” Em seguida, temos a transcrição da carta, que se dá pelo relato em estilo direto, no qual o enunciador “... faz menção às palavras da mensagem que relata (...) ele (o discurso) é autônimo na parte “citada”, isto é mostrada.” (idem).

Além disso, não se pode falar em Análise de discurso sem que se pense em ideologia. Os textos que nos propusemos a analisar são eivados de ideologia, principalmente porque um dos locutores faz parte da classe dominante em nosso país e ao falar desta posição traz o que, em princípio, representa o pensamento da mesma.

 

A carta de Dorinha

Antes de lermos o texto que segue, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que as cartas/crônicas não obedecem precisamente às normas de produção de textos, pelo menos no que diz respeito à divisão dos assuntos em parágrafos. São, muitas vezes, transcrições integrais da fala. Vemos que tanto quando a fala é a do primeiro locutor, que chamaremos L1, quanto nas descrições das cartas, onde aparece, nitidamente, a segunda voz, que chamaremos L2, assuntos os mais diversos possíveis se misturam, lembrando a oralidade, conferindo ao texto, algumas vezes, características de transcrição de fala.

 

Outra Carta da Dorinha

(O Globo, 12/08/2000)

Recebo outra carta da ravissante Dora Avante. Dorinha, cuja idade só Deus (que é como ela chama o Pitanguy) sabe, está vivendo um drama. Uma das suas melhores amigas, Cristina (Ki) Bobagem, foi vítima de um erro médico. Numa lipoaspiração, sugaram a Ki e deixaram a celulite, que agora insiste em freqüentar o grupo como se nada tivesse acontecido, constrangendo todo mundo. Como se não bastasse isto, Dorinha fraturou a mão ao bater na televisão para fazer o Suplicy falar mais rápido e por isso foi obrigada a ditar sua carta.

Caríssimo! Beijos estalados. Não repare a ortografia e a pontuação não Douglas ortografia não tem circunflexo quem está escrevendo é um surfista que eu recolhi na praia hoje porque não posso ver gato extraviado que trago para casa e dei almoço e agora está me olhando como se eu fosse a sobremesa e ponto Douglas por amor de Deus ponto! Isso. Agora nova linha.

Estou indignada. Sem trema Douglas. Como você sabe eu e meu marido na ocasião vírgula cujo nome já me vem vírgula Douglas é mais fácil usar o sinal em vez de escrever toda a palavra, assim, demos dinheiro para a campanha do Fernando Henrique depois que me convenceram que a vitória do Lula não significaria que os comunistas invadiriam nosso apartamento e me currariam o que me fez perder todo o entusiasmo pela esquerda. Como você sabe eu e a Tatiana (Tati) Bitati organizamos as Socialaites Socialistas que lutam pela implantação no Brasil do socialismo na sua fase mais avançada, que é a restauração do feudalismo tzarista, e achamos que o Fernando era quem melhor podia realizar nosso sonho. Eu devia ter desconfiado quando a pessoa que mandaram para recolher a nossa contribuição pára Douglas agora não apareceu de máscara e a tinta do recibo que ele nos deu desapareceu em 15 minutos pára Douglas que vai molhar o papel! Li que sobraram alguns milhões do dinheiro arrecadado para a reeleição mas meus telefonemas para o Eduardo Jorge, para perguntar se por acaso o nosso não está entre o que sobrou e quais são as chances de ele ser devolvido, caem numa gravação que diz "Nicolau, não me chama mais neste número!" Beijos da tua decepcionadíssima Dorinha. Agora sim Douglas larga o papel e a caneta e entra na banheira.

Nossa análise inicia-se pelo título: há a clara sugestão de que não é esta a primeira carta que o locutor-autor, L1, recebe. O diminutivo do nome da personagem pode ser a denotação da intimidade que existe entre eles.

“Dorinha” ocupa, nesta carta, uma dupla posição enunciativa: estabelece um diálogo com o Douglas - o surfista - e outro com o L1, que é o destinatário de sua carta. Esta dupla enunciação traz em si as marcas da oralidade: as perspectivas enunciativas, das quais L2 (o locutor Dorinha) fala, não são separadas por sinais de pontuação. Não há sinalização gráfica que diferencie ou distinga o dialogo de “Dorinha” com Douglas e o que ela dita para que ele copie.

Textos publicados anteriormente revelaram-nos que “Dorinha” é uma “socialite”. Hoje, em função da larga exposição na mídia de algumas personagens da nossa sociedade, a “socialite” se tornou um estereótipo, ou seja, são mulheres que requerem para si o “status” de pessoas muito elegantes e ainda que a “tal” elegância não advenha de uma família nobre ou de posses, a mesma foi adquirida pelo poder aquisitivo que fazem questão de ostentar.

Além disso, essas mulheres, ou melhor, “esse tipo de mulher” é apontado, muitas vezes, como a personificação da vaidade e, também, da própria futilidade.

“Dorinha” não deixa por menos. No primeiro parágrafo do texto, L1 já nos diz que só “Deus” - observe-se a utilização da maiúscula - sabe sua idade. E quem mais pode ser o deus de uma mulher que cultua a beleza e a vaidade, além do maior (ou mais famoso) cirurgião plástico de nosso país? A grande heresia se impõe: em um país que se diz cristão, onde há um imenso número de protestantes e católicos, em um jornal de grande circulação, um cronista cria um locutor que resolve relatar a carta de uma mulher que tem como deus um homem que construiu sua fama e que se tornou respeitado pela exaltação de um dos pecados capitais: a vaidade. A ironia, aí, já está configurada. O interessante é observar que a configuração da mesma se dá pelo relato em discurso indireto: “que é como ela chama o Pitanguy”. L1 esquiva-se, dessa maneira, da responsabilidade, deixando claro que as palavras não são dele. Mas não é só isso.

Neste mesmo parágrafo, L1 relata-nos uma história absurda, ocultando-se por trás da personagem “Dorinha”, pois se pressupõe que a história que segue lhe foi contada por ela: “Cristina (Ki) Bobagem” - não podemos deixar de observar o nome da personagem que se constrói e mais uma vez o caráter irônico que se impõe. Se não bastasse o sobrenome que fala por si, o primeiro nome, Cristina, ainda é transformado em “Ki”. - fora vítima de um erro médico. Nossa memória discursiva nos remete a fatos recentes: não há muito tempo que mulheres que se submeteram ao mesmo tratamento que “Ki Bobagem” sofreram por causa de erros médicos, algumas até chegaram à morte, como amplamente divulgou a imprensa. Mas a brincadeira, a ironia, o humor se institui quando L1 relata que “Ki” fora sugada e que o que sobrou foi a celulite. Não podemos desmenti-lo, pois ele está repassando-nos uma história que lhe foi contada. A responsabilidade da veracidade da mesma não pode ser atribuída a L1. Cabe-nos apenas, no mínimo, o riso irônico.

A celulite é o oposto da vaidade. Mulheres puseram em jogo suas vidas, sua saúde, seu bem-estar para livrarem-se delas e a celulite da “Ki” “insiste em freqüentar o grupo” de “socialites”. A celulite é personificada e tem muito mais importância, mais valor, talvez pelo incômodo de ser o oposto do que se busca, do que a vida da amiga. Isso não é dito, mas podemos apreendê-lo pelo não-dito.

Há, ainda, uma ironia dirigida ao senador Suplicy, pois “Dorinha” bate na televisão numa tentativa de fazer o mesmo falar mais rápido, mas a única conseqüência disto é a mão fraturada, o que a leva ter de ditar o seu texto.

No segundo parágrafo, abrem-se as aspas, marcas evidentes de alteridade, L1 distancia-se, assim, totalmente do que irá se seguir e reproduz literalmente a carta de “Dorinha”, L2.

Em função da fratura em sua mão, a carta de L2 é ditada a um surfista, cujo nome é Douglas. O rapaz não sabe escrever, não conhece regras de ortografia nem tampouco de acentuação ou de composição textual, o que é ressaltado a todo instante por L2, que deixa claro que seu único interesse por ele é físico, pois confessa que não pode ver “gato extraviado na praia” que traz para casa. Dois estereótipos estão desenhados: da mulher que tem a sexualidade assumida e liberada, e, por isso, é discriminada em nossa sociedade como lasciva, imoral ou, no mínimo, permissiva, e a do surfista ignorante, alienado.

Além de estar com um surfista em sua própria casa, “Dorinha” confessa que não lembra o nome de um de seus maridos. Fica claro ter tido mais de um pela utilização da expressão “na ocasião” na primeira linha do terceiro parágrafo. Histórica e sociologicamente, a fala de L2 em relação à sexualidade e à indiferença mostrada quanto ao nome do ex-marido pode facilmente ser legitimada, pois apesar da mulher ainda hoje ser vítima de muitos preconceitos, têm cabido, em nossa história, às mulheres de “status” social ou de alto poder aquisitivo - ou então de excessiva coragem - o papel de derrubar tabus, de enfrentar os preconceitos.

A partir do terceiro parágrafo, institui-se a crítica à política. Obviamente, isto é feito pelo viés da ironia, que como aponta Brait (1996:29) é “...o distanciamento entre o que é dito e o que o enunciador pretende que seja entendido; a expectativa da existência de um leitor capaz de captar a ambigüidade propositalmente contraditória desse discurso.”

Duas informações surgem em paralelo: a primeira é a de que a campanha de Fernando Henrique, presidente do Brasil, foi financiada pelas elites brasileiras que possuíam interesses pessoais em sua vitória. Há cogitações de que isso tenha sido fato. Houve até muita polêmica a esse respeito durante o último processo eletivo para a presidência de nosso país; e a segunda é a que remete-nos a um outro tempo histórico brasileiro: o da ditadura militar, em que se propagava que o comunismo era um sistema de vândalos, de bárbaros, de arruaceiros, pessoas que lutavam pela desordem e pelo caos. Esta interpretação do movimento comunista voltou ao imaginário popular quando houve a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva para a Presidência da República em nosso país. Muitas pessoas da classe média e algumas da classe alta temiam que essa vitória implicasse perda de bens e de prestígios. Temiam que pessoas “terrivelmente violentas” tomassem o poder e destruíssem “a paz de seus lares”. Dividissem seus cômodos com outros de menor poder aquisitivo.

Esse fato, lembra-nos de Chauí, citada em Brandão,1993:21: “A ideologia é um instrumento de dominação de classe porque a classe dominante faz com que suas idéias passem a ser idéias de todos.”

Foi exatamente isso o que aconteceu naquele momento. Até mesmo as pessoas que nunca tinham ouvido falar de comunismo passaram a achar que a candidatura de Lula significaria aquilo. A ideologia dos opressores foi “comprada” pela maior parte dos brasileiros.

Ironicamente, para “Dorinha”, Lula perde o seu voto justamente pelo fato de a mesma ter sido esclarecida a respeito de que as histórias que giravam a respeito daquela candidatura eram “folclóricas” e, conseqüentemente, ela perderia todas as chances de realizar uma de suas fantasias sexuais, que era a de ser violentada pelos comunistas. O interessante disso é observar que o voto de “Dorinha” estava totalmente ligado a seus interesses pessoais. Se nas classes menos privilegiadas da sociedade as pessoas podem trocar seus votos por alimentos, tijolos ou dentaduras, por que “Dorinha” não poderia trocar o seu pela realização de suas fantasias sexuais? A crítica presente é a de que em nosso país todos votam por interesses particulares. Só os interesses é que mudam.

Em seguida, o L2 explicita sua intimidade com o L1 através da expressão “Como você sabe...” e surge uma nova personagem : “Tatiana (Tati) Bitati”. “Tatibitate” é como vulgarmente são chamadas as pessoas que têm deficiência ou distúrbio mental. O nome em si já é uma grande ironia, principalmente se levarmos em consideração que ela e “Dorinha” fundaram o grupo que intitulam “Socialites Socialistas” , o que em si já é outra ironia. Não é possível conceber a imagem de uma “Socialite” que se submeta à ideologia socialista. As ditas “socialites socialistas” “lutam pela implantação no Brasil do socialismo na sua fase mais avançada, que é a restauração do feudalismo tzarista...”. Dificílima de entender, esta citação de “Dorinha”, mas buscamos em Maingueneau ,1997: 99 socorro para isto: “A ironia é um fenômeno sutil, passível de análises divergentes e cuja extensão é difícil de circunscrever, por menos que nos afastemos de exemplos simples.”

A ironia presente naquele fragmento só é recuperável se o leitor tiver noção do que é o socialismo e do que foi o regime feudalista e do que era a figura do tzar. Achar que o “Fernando” - Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil - era o que melhor podia realizar esse sonho é colocá-lo no mesmo patamar dos dirigentes da Rússia do final do século XIX e início do século XX, que governavam uma sociedade marcada pelo atraso econômico, cuja população era explorada pelos grandes latifundiários. A ironia se faz quando vemos nosso país ser fracionado e distribuído lentamente para as grandes nações do mundo. Somos um grande latifúndio e o “Fernando” o nosso tzar.

A ironia de Veríssimo é sarcástica e não nos dá tempo para respirar. Isto pode ser facilmente notado neste segundo parágrafo que nos traz uma série de informações diversas, que facilmente poderiam ser divididas em outros parágrafos, mas o locutor se esconde por detrás do “escriba” surfista, que não conhece as normas da escrita e, por isso, desrespeita-as com naturalidade.

“Dorinha” nos informa que a pessoa que mandaram para recolher a contribuição para a campanha presidencial (observe-se o verbo na terceira pessoa do plural - mandaram - índice de indeterminação do sujeito: para este tipo de ação não há sujeito que possa ser reconhecido, principalmente por partir do próprio governo), apareceu de máscara, o que denota a clandestinidade daquela atitude e que a tinta utilizada no recibo desapareceu.

A ironia de Veríssimo, através dessa carta, parece uma verdadeira metralhadora: atira para todos os lados. Como citou Maingueneau, 1997:99 “... é um gesto dirigido a um destinatário, não uma atividade lúdica, desinteressada.”

“Dorinha” diz que leu que sobraram alguns milhões do dinheiro arrecado para as eleições. Isto, indiretamente, é uma espécie de denúncia a respeito da fortuna que corre por trás destas campanhas. Ao obter esta informação, “Dorinha” liga para o Eduardo Jorge, secretário de campanha de Fernando Henrique Cardoso, para saber se há alguma chance do dinheiro dela ser devolvido. Eduardo Jorge também esteve envolvido em diversos escândalos e dentre eles o fato de ter se aproveitado do cargo que ocupava para facilitar a liberação de verbas para o juiz Nicolau. A denúncia mais uma vez está feita e a ironia constituída: ao telefonar para Eduardo Jorge, a ligação cai em uma gravação que diz: “Nicolau, não me chame mais neste número!”

 

CONCLUINDO

Ao criar o personagem “Dorinha”, Veríssimo pôde exercitar de maneira sublime a ironia, que é a marca de seu estilo, pois em primeiro lugar cria uma mulher que faz parte dos grandes escalões da sociedade brasileira, que têm poder aquisitivo e contato com os mandantes da nação.

A fala de “Dorinha” é, em princípio, relatada por ele em estilo indireto. Em sua enunciação, faz surgir um outro enunciador, diferente de si, o que o redime de toda a responsabilidade a respeito do que é dito. Os maiores absurdos, desde aí, podem ser expostos.

Em seguida, as aspas são abertas e o texto passa a ser relatado em estilo direto. Alteridade demarcada: não há mais o que temer. Tudo pode ser dito. A ironia se concretiza ora pelas críticas de “Dorinha”, ora pela explicitação de sua ignorância, que na maioria das vezes só pode ser percebida pelo leitor que tem conhecimento de fato a respeito dos assuntos que ela se propôs a discutir. Caso contrário, pode ser tomada até como fato político, histórico ou social, pois da posição de onde Veríssimo e Dorinha falam, a enunciação produzida pelos dois pode tornar-se um ato de verdade incontestável, pois trata-se de enunciações produzidas por um escritor de respeito em toda a nação e por uma “socialite”. Além disso, todo o discurso é reproduzido em um jornal de prestígio nacional, que é “O Globo”.

A Análise do Discurso desperta-nos, então, para as diversas vozes que podem compor e se mesclar em um texto e para as enunciações que a partir daí são criadas. Mostra-nos, também, como a Ironia é um processo discursivo que pode ser um grande instrumento de crítica política e social, mas que só se estabelece se puder contar com a cumplicidade do receptor .

 

BIBLIOGRAFIA

AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Campinas :Unicamp, 1998.

BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas : Unicamp, 1996.

BRANDÃO, H.H.N. Introdução à analise de discurso. Campinas : Unicamp,1991.

DUCROT, B. O dizer e o dito. Campinas : Pontes, 1996.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências da análise do discurso. Campinas : Pontes,1989.

ORLANDI, E. Análise do discurso. Campinas : Pontes, 1999.