A TRADUÇÃO LITERÁRIA:UM CAMPO INTERDISCIPLINAR
Alba Olmi (USCS/RS)
A tradução “feliz” é aquela que, embora mantendo inevitáveis diferenças com o original, preserva a energia do seu imaginário, ativando-a num contexto histórico específico, vencendo o tempo, a distância ideológica, epistêmica e cultural, produzindo aquela emoção que deriva do diálogo tornado possível entre indivíduos diversos, línguas, culturas, épocas e povos.
Na diversificação das abordagens tradutórias da obra literária, toma forma e ganha peso o enfoque orientado para o texto-alvo (TA), conforme Toury (1980, 1981, 1982, 1984) e Lefevere (1970, 1971, 1982, 1983, 1992, 1993), cuja justificativa assenta na teoria da recepção e coloca em relativo segundo plano o original, posto que a obra traduzida se situaria no contexto da língua e da cultura-alvo. As teorias tradicionais, que enfocam o texto-fonte (TF) como ponto de partida, pareceriam, portanto, inadequadas, para alguns teóricos, porque centradas no autor e na obra, levando em conta apenas o valor intrínseco da obra, em detrimento dos polissistemas literários e da importância da tradução no incremento e na renovação da literatura como um todo.
A qualidade de uma tradução
Defendemos que no campo da análise tradutória parece haver lugar para uma enfoque de cunho estilístico, centrado no TF que, embora não negue a validade das teorias que privilegiam o TA, demonstra ser capaz de dar conta de diversos aspectos envolvidos na tradução e de desmentir, pelo menos em parte, a crítica que se faz hoje a esse tipo de abordagem.
A estilística comparada, sustentada pela teoria e pela crítica da tradução, demonstrou-se um procedimento-instrumento adequado para a avaliação da tradução literária, proporcionando também o surgimento de propostas alternativas, com o intuito de desvendar alguns processos tradutórios e, dessa forma, sugerir caminhos para uma melhoria da tradução literária.
A literalidade, a fidelidade ao TF, consideradas por muitos teóricos as vilãs da história da tradução, em determinado tipo de texto, tendo em vista determinado objetivo, e seguindo determinada metodologia, podem revelar-se uma opção viável que deve ser considerada, e não descartada a priori.
A abordagem orientada para o TF
Tendo em vista que ainda não se “construiu” um modelo definitivo, e sobretudo operacional, para a tradução literária, a minha proposta é a de uma abordagem lingüisticamente orientada. Nesse enfoque, o TF, sua estrutura lingüístico-textual e seu potencial significativo em vários níveis, incluindo o nível do contexto situacional numa estrutura sistêmica, é considerado como o mais importante e, inclusive, fator constitutivo da tradução.
Embora essa abordagem tenha sido criticada por diversos teóricos, segundo observa House (1997:16-24), por considerarem que dessa forma se focaliza apenas um aspecto da tradução, ou seja, o aspecto semântico, não se pode negar que a abordagem lingüístico-textual é capaz de cobrir tanto o caráter semântico quanto o pragmático; tanto o sociocomunicativo como também o discursivo.
Por essa razão, ao analisar os aspectos estilísticos que envolvem a conotação - mas também a denotação - parece possível dar conta de aspectos estritamente relacionados ao estilo e, ao mesmo tempo, analisar aspectos sociolingüísticos com função pragmática que o texto literário pode deixar filtrar - sutil ou claramente - através das funções da linguagem predominantes no texto e pelas eventuais variantes de registro presentes na narrativa, dependendo do contexto e da situação narrativa, ou pela fala dos personagens, pelas intenções implícitas nas suas falas ou comportamentos.
Na teoria da tradução literária, e portanto na análise do texto literário, em sua descrição/avaliação, os pressupostos pragmáticos e sociolingüísticos parecem importantes, pois estabelecem a relação entre forma e função dentro de um contexto. Temos assim a dimensão semântica e pragmática imbricadas entre si, auxiliando na compreensão dos significados explícitos e dos implícitos do enunciado (Ducrot, 1977) e, conseqüentemente, na avaliação de sua equivalência tradutória.
A possibilidade de alcançar objetivos comunicativos pelos implícitos do enunciado parece constituir-se num dos universais da linguagem, sendo portanto passíveis de “tradução”, embora sua performance e interpretação estejam sujeitas a diversas condições, desde os universais até a cultura e à linguagem/língua específica. De modo que a qualidade da tradução de um ato de fala implícito estará ligada à natureza das condições que subjazem a seu desempenho e interpretação.
Blum-Kulka (1981: 89-95) apresenta uma proposta para o estudo da tradução, ao sugerir que a teoria dos atos de fala seja aplicada tanto à teoria como ao estudo da tradução, posto que o ato tradutório pode ser visto também como uma tentativa de alcançar um desempenho satisfatório dos atos de fala, para que haja equivalência de significado. Ampliando a teoria de Austin (1974) para o âmbito do texto, a autora enfatiza o fato de que qualquer elocução - seja oral ou escrita - desempenha três atos ao mesmo tempo: o ato locutório, o ilocutório e o perlocutório. Por isso, sustenta a autora, na tentativa de encontrar “igualdade de significado”, a tradução torna-se uma tentativa de “re-executar atos locutórios e ilocutórios que deverão ter (isso, de fato, embora desejável, ocorre muito raramente) a mesma força ou o mesmo efeito perlocutório que terão na língua-alvo sobre os destinatários, como ocorreu na língua-fonte.” A autora acrescenta que “Uma teoria adequada da tradução deveria tentar formular as condições que estipulam a realização bem-sucedida (ou não bem-sucedida) desses atos de fala na tradução” (id., ibid., p.89-90). A verdadeira equivalência se daria assim por meio da interpretação do tradutor que consegue extrair de cada realidade dada, de cada experiência, de cada leitura, algo mais, algo novo, que ainda precisa desenvolver-se e crescer. Essa seria a garantia de uma tradução “criativamente fiel”. Diante da amplitude do processo tradutório, que abrange todos os níveis discursivos, será preciso fazer uma breve retomada do conceito de equivalência funcional.
Equivalência funcional e tipologias textuais
O conceito de “equivalência” entre o texto traduzido e o original sempre foi e continua sendo o problema central da tradução tanto no campo teórico como na práxis. A questão cardinal, à qual se tentou e se continua tentando responder de forma definitiva, interessa e preocupa não somente os estudiosos da atualidade, mas procede já da velha distinção entre tradução literal e tradução livre. Ela procura desvendar a natureza da relação que se deve estabelecer entre o aspecto “produto” e o aspecto “processo” que lhe deu origem.
Para explicar qual dos dois aspectos supracitados é preciso enfrentar, as correspondências lingüísticas, limitadas à estrutura de superfície dos segmentos textuais da LF, demonstraram-se inadequadas e/ou limitadas. De fato, o conceito de equivalência não é de natureza estática e definitiva, mas relativo e dinâmico.
Ivir (1981:51-59) considera que, embora a correspondência formal e a equivalência em tradução pertençam a atividades diferenciadas, e a áreas e disciplinas lingüísticas diversas, elas se relacionam e são por isso necessárias tanto no âmbito tradutório como também na análise contrastiva. A argumentação de Ivir baseia-se no fato de que correspondência formal e equivalência tradutória representam muito mais do que mera terminologia, posto que discutir correspondência formal implica discutir unidades lingüísticas na tradução e o papel da lingüística na teoria da tradução, ao passo que, em se tratando de equivalência tradutória em relação à análise contrastiva, a discussão se desloca para o campo da análise contrastiva. Para o autor, o conceito de equivalência dependerá da orientação que se tenha da tradução. Se o enfoque for voltado à tradução como resultado ou produto, diante de dois textos, um dos quais é a tradução do outro, poder-se-ia concluir que a tradução, conforme Catford, citado por Ivir, é a mera "transferência de material textual de uma língua-fonte (LF) para o material equivalente na língua-alvo” (LA).
Nesse enfoque, argumenta Ivir, tanto a equivalência como a tradução assumem um caráter estático que leva a concluir que para cada unidade lingüística do TF (ou de um fragmento do TF) existe um equivalente no TA, e cabe ao tradutor encontrar essa unidade, donde decorre a necessidade de diferenciar tipologias textuais e suas características nas diferentes línguas (id., ibid., p.51-52).
Parece evidente que o enfoque de Catford não se coaduna com o de Ivir. Conforme este autor, para obter-se uma outra visão de equivalência é preciso atentar para seu caráter dinâmico, vendo a tradução como processo e não como resultado. Nesse caso a tradução se constituiria na substituição de mensagens de uma língua para outra, a fim de reproduzir no destinatário a forma de equivalência mais próxima da mensagem contida no TF, de acordo com a teoria de Nida e de Nida e Taber (1964, 1969). Nessa abordagem revela-se o aspecto comunicativo e dinâmico da tradução que envolve emissor e destinatário, adquirindo relevo as mensagens. O que permanece constante, portanto equivalente, não é o texto em questão, mas a mensagem (ou mensagens) e “é a essas mensagens que os participantes [do processo comunicativo] voltam a cada etapa do processo [...]” (1969: 52).
Ao levar em conta os aspectos comunicativos e os lingüísticos, e sendo estes últimos de natureza contrastiva, Ivir vê a equivalência como um produto derivado do “contraste entre as formas realizadas textualmente pelo TF e a LA e a realização comunicativa dos conteúdos extralingüísticos do original na LA” (id., ibid., p.59).
Num trabalho posterior, Ivir (1996:155) evidencia a relatividade inerente à relação de equivalência, afirmando que “a equivalência é relativa, não absoluta, ela emerge do contexto e da situação definidos pelo inter-jogo de todos os fatores descritos aqui, e não possui existência fora desse contexto; em particular, [ ...] não é definido a priori por um algoritmo que converte as unidades da LF em unidades da LA.” Ivir evidencia assim uma clara retomada de seus posicionamentos anteriores que estabelecem a equivalência em nível de mensagens e em nível de ato comunicativo, e não em nível de unidades lingüísticas.
Bell (1991:3-30), por sua vez, apresenta importantes pontos de contato com Koller (1995) e Etkind (1967), ao sustentar que textos em línguas diferentes podem receber um certo grau de equivalência no plano semântico, sintático, estilístico e pragmático, de acordo com o segmento textual que o tradutor pretende considerar (palavra, sintagma nominal ou verbal, frase, parágrafo, texto) e do tipo de texto que ele está traduzindo.
A relatividade do conceito de equivalência, no entanto, deve ser relacionada não só ao tipo de escolha/decisão individual de cada tradutor, mas também ao ambiente sociocultural no qual ele opera, posto que a língua é um fenômeno variável, que sofre as pressões da sociedade, por ser sistema arbitrário e também convencional, portanto sujeito a mudanças.
É nesse sentido que se pode (ou se deve) interpretar a “equivalência na diferença” postulada por Jakobson, para quem, assim como numa mesma língua a sinonímia não significa equivalência absoluta entre dois termos, também a equivalência tradutória não corresponde necessariamente a uma equivalência plena do conteúdo semântico, posto que códigos lingüísticos diferentes podem conceituar uma mesma realidade extra-lingüística de forma diferente. Jakobson (1959:232-239) fornece o exemplo da palavra “queijo” e do seu heterônimo russo syr (significando também queijo). Aparentemente sinônimos, os dois vocábulos não correspondem semanticamente, posto que syr é obtido pela coagulação do leite somente quando se usa um fermento especial, ao passo que o “queijo” é qualquer tipo de produto derivado do leite coagulado, com ou sem o acréscimo de coagulante. Parece evidente que, enquanto Jakobson aborda o problema da equivalência sob o ângulo estritamente lingüístico, a abordagem de E. Nida (1964) é de cunho essencialmente comunicativo. Em sua tradução da Bíblia, Nida opera uma distinção entre “equivalência formal” e “equivalência dinâmica”, esta alicerçada no princípio do “efeito equivalente” no leitor do TA. Uma posição criticada por House entre outros, como G. Toury, que não vê como esse efeito possa ser testado no enfoque denominado Response-Oriented, Behavioural Approaches to Evaluating Translations.
Apesar dos problemas que as orientações de Nida apresentam, é possível afirmar, argumenta Federica Scarpa, que elas representam um passo importante para o debate sobre a equivalência tradutória, pelo menos por dois motivos: “em primeiro lugar, a antiga dicotomia tradução literal versus tradução livre é substituída pela dicotomia fidelidade ao autor versus fidelidade ao destinatário; em segundo lugar, ao introduzir a variante dos efeitos sobre o destinatário, na equivalência dinâmica, Nida confere uma dimensão pragmática ao processo da tradução” (Scarpa, 1997:4). Em outras palavras, o tradutor se vê pressionado por uma escolha/decisão voltada à equivalência formal, em nível semântico-referencial, ou à equivalência funcional, em nível comunicativo e pragmático (ou em ambos os níveis). A diferença parece importante, porque no primeiro caso o contexto é excluído, enquanto no segundo caso o contexto é essencial: surge assim uma linha divisória entre língua como código e língua como sistema comunicativo.
Se levarmos em conta, junto ao conceito de equivalência, o de função (ou funcionalidade) e contexto, talvez seja necessário relembrar esses conceitos em vista da diferença de objetivos que caracterizou as duas grandes linhas na história da lingüística do século XX:
a) a linha formalista, cujo objetivo é o estudo da língua como forma, sistema, fora do seu contexto de uso, e
b) a linha funcional - representada pelo Círculo de Praga, e ainda por Firth, Halliday, entre outros - preocupada com a função sociocultural da língua enquanto instrumento que evoluiu para satisfazer as necessidades comunicativas concretas de seus usuários, que devem ser interpretadas em seu contexto extralingüístico (que inclui, portanto, uma situação).
Dessa dicotomia é que nasce uma realidade situacional e contextual cujo efeito condicionante sobre o significado é de importância cardinal no processo tradutório, e suas variáveis deverão ser consideradas pelo tradutor em suas escolhas: conteúdo, intenção, momento, nível, lugar e participantes do ato comunicativo. Teremos assim a equivalência como adequação à situação e ao contexto lingüístico e extra-lingüístico.
O conceito de equivalência funcional constituiu o princípio fundamental para a abordagem da tradução adotado por House (1997, op. cit.). A autora considera o texto traduzido equivalente ao original se este preencher a mesma função (ou funções), e uma tradução será adequada quando semântica e pragmaticamente equivalente a seu original, ou seja, quando apresentar a aderência mais próxima possível ao significado e à função do TF.
A transferência do valor comunicativo e situacional/contextual do TF para o TA ocorreria exclusivamente no tipo de tradução que a autora denomina covert, isto é, um texto não-marcado do ponto de vista pragmático, posto que receberá na cultura-alvo o mesmo status que teria se tivesse sido criado na LA. Na tradução manifesta, evidente, overt, pelo contrário, a equivalência funcional stricto sensu seria praticamente impossível, devido às diferenças socioculturais entre os destinatários das duas línguas, que, quando muito amplas, são difíceis de ser preenchidas, razão pela qual é preciso recorrer a adaptações de diversos níveis.
O modelo housiano, embasado na equivalência funcional, possui o mérito de ter indicado a direção que o debate sobre a equivalência tradutória tomou nesta década. A proeminência do objetivo da tradução, às vezes em detrimento da intenção comunicativa do TF, é retomada e ampliada por Hatim e Mason (1998), segundo os quais o nível de intervenção do tradutor depende em grande escala das exigências dos destinatários. O mérito desses autores é terem aliado à tradução as ramificações da Lingüística que sustentam a tradução, conferindo-lhe não apenas o status de trabalho técnico, mas também uma dimensão social e pragmática.
É uma orientação lingüística semelhante que encontramos em Bell (1991), Gutt (1991) e Baker (1992), os quais colocam a tradução na perspectiva de uma ampla concepção integrada de pesquisas lingüísticas recentes na sociolingüística, na teoria dos atos de fala, na análise do discurso e na pragmática. Esse enfoque, embora não trate explicitamente da avaliação da tradução, se torna potencialmente válido para essa finalidade, conforme argumenta House (1997, op. cit., p.19). De fato, a linha encabeçada por Hatim e Mason, Bell, Gutt e Baker extrai a essência de diversas e complexas áreas recentes da lingüística, ampliando o conceito tradicional de intertextualidade para a cadeia intertextual, isto é, para aquelas relações referenciais cuja coerência constrói o conhecimento para além do texto. O que Baker argumenta sobre o enfoque de Hatim e Mason é que a abordagem dos estudiosos da Universidade de Edimburgo, embora teoricamente válida, pode ser bastante difícil de aplicar, posto que a ênfase excessiva no texto e no contexto pode levar a ignorar o fato de que, embora um texto seja uma unidade semântica e não gramatical, os significados se realizam através do wordings, e sem uma teoria baseada no wordings, não há como tornar explícita a interpretação dos significados de um texto.
A distinção de House entre tradução encoberta (covert) e manifesta (overt) abre caminho para que Gutt (1991:54-57) estabeleça sua diferenciação entre “uso descritivo” e “uso interpretativo”. Para Gutt, no primeiro caso, a relação entre TA e TF é incidental e não tem grande importância para o sucesso da tradução (por exemplo no discurso publicitário e na tradução técnica), ao passo que no uso interpretativo do TF a semelhança entre TA e o original é extremamente importante, razão pela qual é necessário que o TA mantenha a equivalência com o conteúdo semântico e com o estilo do TF.
Tomando emprestada essa distinção entre semelhança interpretativa e descritiva da teoria psicológica da pertinência ou relevância, que visa a explicar a comunicação em termos de interação entre contexto, estímulo e interpretação, Scarpa (1997, op. cit., p.9) infere que Gutt considera a tradução como uma aplicação da teoria da pertinência. Dessa forma, fica evidente que para Gutt um TA deve possuir sua própria pertinência e não pode, pelo contrário, “ser pertinente apenas em virtude de sua semelhança interpretativa com o TF.”
A dissidência entre Gutt e House reside basicamente na abordagem da equivalência funcional: a permanência da mesma função na passagem de um texto a outro (TF para TA). Na opinião de Gutt, a manutenção da função não garante que a tradução seja equivalente em termos funcionais, porque, na passagem de uma língua a outra, as funções textuais são variáveis enquanto dependem do objetivo da comunicação.
A posição de Gutt, claramente propensa ao uso interpretativo como base da tradução, e fortemente impregnada pela teoria da relevância, é considerada por House demasiado genérica e muito estreita, pois essa tentativa, afirma House (1997, op.cit., p.20-21), incorpora a teoria da tradução à teoria cognitivo-comunicacional e, por outro lado, se alinha basicamente com a abordagem orientada para o destinatário.
Sejam quais forem as posições teóricas do momento, é evidente que os conceitos situacional e cultural parecem ter-se tornado centrais na discussão do processo tradutório, e é nesses conceitos que o debate sobre equivalência funcional está embasado. A discussão não pode, pois, prescindir de uma abordagem que leve em consideração os modelos funcionais de Bühler e Jakobson que possuem aquela agilidade necessária para determinar as tipologias textuais com base nas funções lingüísticas predominantes que se realizam na atualização da linguagem. A atividade do tradutor terá assim parâmetros suficientemente científicos para tomar suas decisões e fazer suas escolhas: tradução literal ou livre, orientada ao leitor, orientada ao texto, orientada ao código, etc. Por outro lado, a avaliação da tradução poderá valer-se com proveito desses parâmetros, considerando categorias ou tipologias textuais, a partir das quais será possível alcançar uma equivalência relativizada, isto é, relacionada ao tipo de texto em questão, entre outros fatores.
Embora considerando que, em sua grande maioria, os textos de gêneros diversos não possuem claras e absolutas delimitações e portanto podem apresentar sobreposições, haverá sempre a possibilidade de definir qual ou quais são as funções da linguagem predominantes no texto e dessa forma detectar a intencionalidade do texto. Portanto, tendo em vista um determinado objetivo tradutório, será possível proceder às escolhas adequadas para alcançar a equivalência que, embora podendo ser formal, não exclui a funcional. De fato, as tipologias textuais funcionais, centradas na função de um texto, em dado contexto situacional, permitem decidir quais serão as diversas metodologias tradutórias.
É a K. Reiss (1981) que devemos o mérito da adoção do tipo de classificação textual embasada nas três macrofunções de K. Bühler. Partindo do tipo de texto, Reiss propõe os critérios da tradução, a fim de alcançar a equivalência necessária e adequada. Para o texto expressivo, centrado na função expressiva de Bülher, (função emotiva de Jakobson), em que a forma, sua dimensão estilística e estética predominam, haverá critérios diferentes dos que se aplicam a um texto conativo, por exemplo, centrado na persuasão, ao passo que o texto informativo (referencial) será centrado no conteúdo (o referente).
Em relação à tipologia de Reiss, a classificação textual realizada por Newmark (1988), embora também pautada em Bühler, acrescenta e integra as funções de Jakobson, mantendo-lhe no entanto o mesmo espírito, e se apresenta mais flexível, posto que a sua abordagem da tradução não considera o texto como um bloco monolítico: o texto possui a multifuncionalidade. Em outras palavras, a maioria dos textos realiza as três macrofunções buhlerianas, embora haja uma dominante. De fato, sabemos que as funções dialogam entre si, no texto, e uma rígida hierarquia não pode ser estabelecida de forma absoluta.
A contribuição de Newmark vai além da identificação da função dominante do texto - para a finalidade da análise textual - com vistas à tradução, considerando também a intenção do autor, o tipo de destinatário e o contexto de origem do TF e do TA, e ainda o estilo, relacionado ao tom do texto. Tendo em vista que em nível programático Newmark pretende fornecer soluções concretas para os problemas que o tradutor tem que enfrentar, utilizando em sua atividade também os instrumentos da análise comparativa entre diversas línguas, que lhe são oferecidos pela estilística comparada, ele detalha a estreita relação entre a tipologia textual e os traços lingüísticos que o definem. Por exemplo, o emprego não convencional da língua, caracterizado pelas expressões metafóricas criativas, pelos neologismos, arcaísmos, uma sintaxe de exceção ou uma pontuação ousada, anticonvencional, configuram claramente o elemento expressivo (emotivo, pessoal) de um texto.
Com a finalidade de relacionar os tipos de texto às diversas intervenções/decisões/escolhas do tradutor, Newmark utiliza duas metodologias de tradução: a) semântica, realizada tendo em vista o autor do TF e sua linguagem, adequada aos textos expressivos; b) comunicativa, realizada tendo em mente o destinatário e adequada aos textos informativos e conativos. Segundo Scarpa, “as características que diferenciam os dois pólos, representados pelas duas metodologias, representam sem dúvida a contribuição teórica mais original de Newmark à disciplina da tradução” (Scarpa, op.cit., p.18). Afinada com a posição de Newmark, a tradução dos textos expressivos terá como unidade e centralidade a expressão lingüística, a palavra, porque é nesse nível que estão contidas as nuanças de significado tão relevantes para esse tipo de texto, e a abordagem deverá ser semântica para dar conta desses valores e alcançar a equivalência funcional mais próxima do original e, portanto, mais adequada.
A tarefa da teoria e da crítica da tradução
De acordo com Popovic (1973:161-165), a tarefa da teoria é colocar à disposição do tradutor e de seu crítico instruções utilizáveis e um aparato que especifique a atividade da crítica da tradução em relação à sua finalidade original, isto, é, pragmática. O autor observa que na prática tradutória existem duas formas básicas de crítica: uma crítica que trabalha sobre um modelo direto e a crítica que se realiza sem o original de uma tradução.
Para Popovic, a autêntica crítica da tradução, que corresponde aos princípios de uma teoria da tradução, é a que trabalha a obra que o crítico tem realmente em mãos. Trata-se, segundo a classificação do autor, de uma “função analítica” da tradução, que se relaciona diretamente ao texto. Por função analítica da crítica da tradução, Popovic entende “uma complexa análise do estilo, na busca de um tertium comparationis entre original e tradução”, para verificar até que ponto o tradutor compreendeu a linguagem do modelo original, tendo por árbitro desse aspecto a lingüística contrastiva ou a lingüística da tradução.
A “funcão postuladora”, por outro lado, segundo Popovic compreende a escolha de textos para a tradução e está relacionada ao tradutor, enquanto a “função operativa” orienta-se para o receptor (leitor), constituindo-se num fator importante para a naturalização de uma obra oferecida à recepção do leitor [meus grifos].
O confronto e a análise avaliativa da tradução pode partir de uma perspectiva prevalentemente empírica, pautada na função analítica de Popovic, nos postulados funcionais de Bühler e Jakobson - elaborados e aperfeiçoados por Newmark, nos postulados da estilística comparada e na análise dos atos de fala, através dos quais foram observados os complexos fenômenos da tradução literária. Além das questões teóricas, será necessário que se privilegiem os problemas da práxis hermenêutica concreta, buscando descrever as técnicas e os procedimentos formais próprios de uma atividade interlingüística aplicada ao texto literário, tentando resgatar o que ele possui de estilístico, de pragmático e de funcional; como esses aspectos “reagem” na tradução e quais foram os recursos utilizados pelos tradutores para preservá-los, isto é, qual foi a formulação de sua "poética", devido à importância das funções que eles desempenham.
Posto que a crítica da tradução se movimenta nos vários níveis das operações tradutórias, em função dessa mobilidade não se poderá realizar tudo numa crítica: alguns aspectos receberão mais relevância, ao passo que outros ficarão subsumidos. Conforme Popovic, concretamente, isso significa que a crítica deverá subordinar suas informações "à organização da expressão do original e da tradução, bem como suas instruções para o leitor, à função esperada de uma determinada tradução dentro do contexto da evolução e do leitor da obra [...]" (id., ibid., p.164).
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