A VOZ FEMININA À LUZ DA BÍBLIA

Olga dos Santos Caixeta Vilela

 

INTRODUÇÃO

Não é recente a história que conta a história da mulher e o seu percurso no caminho por onde também o homem caminhou e caminha.

O texto proposto para análise, “Bíblia Feminina“ transmite-nos com clareza o problema vivido pela mulher ao longo de sua existência.

Remetendo-nos ao início da Era Cristã, com a Anunciação do anjo Gabriel à Maria, já nos é mostrada a submissão da mulher. “Darás à luz um filho”. Deus, o Senhor, enviou o anjo Gabriel e este anunciou à Maria. A palavra do homem, superior; e a mulher, olhos voltados para o céu, em sinal de servidão, de obediência.

Assim começa a história da vida da mulher dentro da Era Cristã, mas, desde a história que inicia a criação do mundo, já nos mostra a Bíblia , em Gênesis, 3-16.

Deus disse também à mulher: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dor teus filhos; teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio”.

Essas palavras ditas em Gênesis entraram nos ouvidos do homem e o dominaram através dos séculos e hoje, início do século XXI , nossos ouvidos recebem os ecos trazidos por vozes que contam e recontam a história.

 

REFLEXOS & INTERDIÇÕES

Por isso o homem deixará o seu pai e a sua mãe para unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne.

O texto “Bíblia Feminina” conta-nos sobre uma voz feminina que, já bem perto de nós , no tempo, começou uma nova luta pela conquista do lugar da mulher na sociedade (do mundo?).

Elizabeth Cady Stanton, menina ainda e marcava as páginas do livro de seu pai, o juiz Cady, onde estavam registradas as leis (absurdas) que salvaguardavam os direitos dos homens sobre suas mulheres, que, queixosas dos maridos que lhes roubavam o que tinham, recorriam a ele, juiz ,para buscarem ajuda e justiça, sem nenhum sucesso.

Desde muito cedo muitas mulheres tentaram fazerem-se ouvir e receberam a mesma explicação que a menina Elizabeth recebera de seu pai: “A lei defende os maridos e o casamento faz dos dois , homem e mulher, um só, e este “um”, era o marido”. Estas, aliás, são palavras divinas , “uma só carne”.

Elizabeth, menina, recebia para si toda a fala de outras mulheres que interagiam com a voz de seu pai e foi apenas uma voz silenciosa que marcava páginas, guardada para um tempo posterior, a idade adulta, quando sua voz já se prontificou a estabelecer um diálogo aberto e vivo com o mundo, com os homens e com as outras mulheres.

A FI entrevista no texto se marca em frases do tipo: “O casamento fazia dos dois um só e este um era o marido”. “...a interdição de acesso das mulheres ao sacerdócio e ao episcopado...”.

As citações acima se pré-constrem à margem do pensamento feminino e as leituras feitas pelas mulheres a estas FD inviabilizam a aplicação de seu pensamento no mundo, mesmo porque o pensamento feminino não é levado em consideração, prevalecendo a lei do mais forte que, no caso , é o homem.

O discurso feminino, saído a partir do discurso masculino objetiva à dispersão de sua voz para que chegue ao ouvido de outras mulheres e objetiva ainda a descentralização da voz masculina, para que dessa forma possa acontecer uma perda de força e, automaticamente a entrada de uma nova visão sobre o assunto no contexto social.

A mulher, no desejo de ser sujeito da construção do seu discurso se assujeita ao discurso masculino e busca o seu lugar a qualquer preço, até mesmo se fazendo notar pelo caminho mais fácil de “dominar” o homem: fazendo -se objeto de desejo, reduzindo-se a mero símbolo sexual .

Ao longo da história a criação do discurso feminino pouco seduziu o homem que a acreditou o segundo sexo, alguém incapaz de pensar, de agir com inteligência o que , aliás, ele, homem, lia na própria Bíblia. “O homem é a cabeça do casal”, “... ó mulheres, sede submissas aos vossos maridos”.

O espírito cristão do discurso masculino foi o mesmo que criou a Inquisição no século XVI, levando ao submetimento o próprio homem e amedrontando ainda mais as mulheres. Apenas o clero, formado por homens, entendia o latim, diz o texto. A ideologia da Igreja se fechou objetivando a si mesma, pois aquilo que o Outro não entende é só meu. E este “meu” quer dizer Igreja.

O que ficou impregnado na voz feminina foi o discurso masculino, fazendo, portanto, que a mulher só falasse pelo voz do outro, (o homem). Todo o discurso trazido à tona pela mulher foi apenas uma constatação de que o homem tudo produziu e a mulher tornou-se, então, apenas o L2 de um discurso pronto, cujo valor linguístico-semântico só ecoaria com a permissão do homem. A voz da mulher foi apenas um balbucio.

Essa atribuição de valor estabelecido ao homem pelo próprio homem, como recado dos céus se tornou responsável por sua dominação e os maridos, em nome de Deus, das leis e de seus próprios desejos se fizeram respeitar pelas mulheres, calando-lhes a voz e atribuindo-lhes um lugar inferior e ainda subestimando sua capacidade de agir por si mesmas.

Elizabeth, adulta, descobre que a própria Bíblia utiliza-se da mulher, colocando-a como responsável pela introdução do pecado ao mundo.

O Senhor Deus disse: “Quem te revelou que estavas nu? Terias tu, porventura comido do fruto da árvore que eu te havia proibido de comer”? O homem respondeu: “ A mulher que me destes apresentou me deste fruto, e eu comi. Gênesis, 3-11.

As palavras de Gênesis revelam-nos que o homem aponta a mulher como precursora do pecado, excluindo-se da culpa. Ele comeu da maçã , mas quem a colheu e a ofereceu fora a mulher. Nesse momento o homem, para livrar-se da culpa diante de Deus, estaria se colocando em posição de obediência `a mulher. “A mulher deu-ma e eu comi”. Não quisesse ele comer do fruto proibido, tê-le-ia rejeitado, mas ficou o dito como pretexto para se colocar diante do Senhor, em papel de réu primário.

A luta da mulher começou aí e não parou e, talvez, nem pare. A posição de igualdade entre homem e mulher que também nos mostra a Bíblia em Gênesis 2, 22, “e da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e levou-a para junto do homem, para sua companheira” ( Grifo meu), é algo que acompanha o sentimento feminino e Ellizabeth, conhecedora da importância de sua luta, convoca um grupo de mulheres familiarizadas com o hebraico e o grego, e capacitadas em teologia e ciências afins, para resultar na publicação da “Bíblia das Mulheres”, dentro de uma hermenêutica feminina.

Notamos que o discurso trazido pela Bíblia é unívoco e uníssono no que diz respeito ao gênero. Foi escrito por homens, que não ouviram o desejo ou a voz feminina; ditado por Deus aos profetas, apóstolos; e a figura de Deus é masculina para o mundo. Os homens escreveram tudo o que devia ser seguido, também pelas mulheres, de acordo com a sua visão. A figura feminina não perpassou as linhas escritas e nem a sua voz se fez sentir em nenhum momento, a não ser a voz de Maria Santíssima para seu filho nas Bodas de Caná, em São João, 2- 3,4,5.

Como viesse a faltar o vinho, disse-lhe a mãe de Jesus: “Eles não têm vinho”. Respondeu-lhe Jesus: “Mãe, isso nos compete a nós? Minha hora ainda não chegou”. Disse então sua mãe aos serventes: “Fazei o que ele vos mandar.

E Jesus obedece, transformando a água em vinho.

A voz de Maria , nesta passagem, não se tornou paradigmática para as mulheres, não representa a voz feminina, mas a voz da Mãe que chama o filho e reclama-lhe obediência. Não negamos que a voz e Maria represente uma voz feminina no mundo (cristão, especificamente), mas o sinal que sua voz repassa às mulheres é de servidão, de obediência, de pureza, de pessoa dócil que tudo faz para o filho ( e ao marido) , de mulher-mãe apenas que se dedica ao lar e não a voz de mulher companheira, aquela que Deus criou para estar ao lado do homem e atrás da qual o próprio homem se escondeu para apresentar-se a Deus.

Não nos assusta que na Era Cristã o homem esteja negando a figura feminina como alguém capaz de repensar o mundo, pois o homem de então apenas seguiu o pensamento cravado já dentro de si, trazido pelos pensadores de épocas bem anteriores. Aristóteles, no século IV a.C. já ditava:

De mulher pode-se dizer que é um homem inferior. A natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens.

O que poderia Aristóteles estar dizendo sobre ser um homem inferior? Haveria então uma classificação dentro do próprio gênero? Homens superiores e homens inferiores. Que critérios os próprios homens teriam usado para classificar-se?

Platão, cujas idéias penetraram profundamente no pensamento cristão, reforçava o desprezo da cultura grega pelas mulheres.

Os homens covardes, que foram injustos durante sua vida, serão muito provavelmente, transformados em mulheres quando reencarnerem.

Observe-se que o pensamento de Platão também é classificatório e os critérios para tal são apenas seus. Ele inclui na figura feminina a idéia de maldade, de covardia. E o critério para chamar de covarde a uma mulher qual terá sido, visto que não lhe era dada condição de agir?

A palavra das mulheres , enquanto possibilidade de dizer EU, foi sempre sufocada no mundo e dentro da própria Igreja e elas foram e são conduzidas aí, pela voz de um Padre.

(O padre, o maior representante de Deus no mundo, grande defensor do bem, transmissor da verdade ao homem e cúmplice da depreciação do ser humano feminino, visto como objeto do pecado).

Dentro da hermenêutica feminina a Bíblia revela a igualdade entre homens e mulheres, nos diz o texto de Frei Beto e revela ainda a leitura machista que se faz até hoje da Bíblia no intuito de benefício dos homens que encontram na mulher apenas um objeto de utilidade doméstica e primordialmente sexual.

Ainda de acordo com o texto, a natureza não deixa dúvidas de que o homem nasce do corpo de uma mulher, muito embora em Gênesis 2-22 possamos ler algo que difere:

Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma das costelas e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem Deus fez a mulher

Parece paradoxal pois, mais adiante no mesmo Gênesis 3-16 encontramos:

Disse também à mulher: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dor teus filhos.

A mulher foi criada da costela de um homem para dar à luz um outro homem.

A visão que se formou sobre o poder masculino, que aliás, a própria mulher admite (este foi o ensinamento que lhe foi repassado como educação) criou uma repressão perfeita para a mulher que , não sentindo ou sendo impedida de sentir, acaba crendo que é seu destino ou desígnio de Deus, uma vez que os mecanismos de repressão passaram a fazer parte de sua individualidade. Só o homem é capaz de resolver determinadas questões; o homem é o chefe da família, a cabeça do casal; o homem pode decidir sempre o destino de sua mulher.

Novamente há o atravessamento do discurso masculino que não altera seu posicionamento sobre a visão transferida à mulher, enquanto a mulher mascara o seu ser-pessoa em detrimento de sua felicidade e também como prova do amor aos filhos.

O texto é um diálogo constante com o mundo, com o sexo e com o gênero, com a reprodução da imagem, com o homem, com a mulher, com a Igreja e seus valores, com as leis sociais, com o casamento e com o lugar que a mulher ocupa no mundo (também uma visão a partir da Bíblia) e sobretudo, com a representação masculina ante todos os itens citados..

O texto em análise coloca nomes de mulheres que foram ignoradas pela Ética patriarcal, embora tenham recebido uma exaltação social. O discurso do poder patriarcal, monopólio resultante de uma FD exclusivamente machista que, com a justificativa de proteção à mulher, definhou por séculos e séculos todo o vigor natural feminino.

Débora, corajosa e sagaz; Vasti, por rejeitar que os maridos vejam suas mulheres como propriedade; Hulda, por sua pedagogia ao se fazer entender; Maria, por proclamar a expectativa do Salvador.

Lembramos que essa exaltação feita às mulheres saiu de uma Bíblia cuja perspectiva é analisada por mulheres. As referências feitas a mulheres pelos pensadores, fala delas como um ser para o qual não há bons olhos.

Péricles, o grande estadista ateniense, decretava: “As mulheres, os escravos e os estrangeiros não são cidadãos”.

No direito romano, a mulher era classificada como “Imbecilitas”.

Em livros do Antigo Testamento lemos algumas referências machistas bastante radicais.

No Eclesiástico encontramos esta passagem: “Um homem que te faz mal é melhor que uma mulher que te faz bem (sexo)”.

Essa visão machista vivida e sentida pela mulher fez que ela, principalmente pela educação que lhe foi dada e ainda por ser considerada um ser frágil( pelo fato de gerar), aceitasse passivamente(?) tais imposições. E o próprio homem que a vê assim, e que por outro lado lhe oferece também o sustento, o benefício aos filhos e mesmo o luxo, fez com que a voz feminina viesse a ecoar no mundo até em sinal de agradecimeno, pois o homem faz um mal, mas oferece muitos bens. Tudo isso impediu a mulher de se rebelar e de se fazer ouvir. São Paulo em suas cartas aos Coríntios revela:

As mulheres se calem nas assembléias porque não lhes compete falar, mas viver sujeitas, como diz a lei. Se quiserem aprender alguma coisa, que perguntem em casa aos seus maridos que não é conveniente à mulher falar na assembléia.

E ainda de São Paulo a Timóteo:

A mulher ouça a instrução em silêncio com espírito de submissão. Não permito que a mulher ensine nem se arrogue autoridade sobre o marido, mas permaneça em silêncio, pois o primeiro a ser criado foi Adão e depois Eva . E não foi Adão que se deixou iludir, mas sim a mulher que, enganada, incorreu em transgressão; mas ela poderá salvar, cumprindo os deveres de mãe, contanto que permaneça com modéstia na fé, na caridade e na santidade.

É bom repensar que toda essa beleza poética cristã foi escrita por mãos masculinas, pensadas por homens que coincidentemente tiveram a mesma fé cristã.. Fé cristã, também baseada no amor a Deus.

Nota-se nas palavras cristãs que o amor pregado por Deus era um amor exclusivista e que Deus, amando só aos homens(gênero masculino) teria, talvez, utilizado o corpo de uma mulher para, apenas, tirar dele um filho seu. Teria Deus também se utilizado da mulher enquanto corpo, matéria e depois abandonado o seu destino às mãos dos homens?

Teria, por acaso, Deus, inspirado Santo Tomás de Aquino já no século VII em sua extensa obra teológica, que marca, desde então a teologia Cristã? Eis o que explica o grande mestre sobre a mulher:

A mulher é um ser acidental e falho. Por natureza a mulher é inferior ao homem em força e dignidade, e por natureza lhe está sujeita, pois no homem o que domina, pela sua prórpia natureza é a facilidade de discernir, a inteligência.

Mais adiante confirma:

A mulher foi criada mais imperfeita que o homem porque no homem, naturalmente há mais discernimento e razão.

Esta afirmação nos leva a crer que Deus nasceu de um ser, uma mulher, sem dignidade. A afirmação é do autor. Afirmação nossa agora seria a de que um ser falho não daria à luz um ser perfeito. Silogismo perfeito, portanto:

A mulher é um ser imperfeito.

Um ser imperfeito não gera perfeição.

Portanto, Tudo que nasce da mulher é imperfeito.

Não há pessoalismo no silogismo criado: podemos enxergar lógica.

De volta ao texto de Frei Beto citamos: “ Acaba de ser publicada nos EUA uma edição da Bíblia “politicamente e sexualmente correta” onde, por exemplo, Deus é tratado por Ele/Ela.”. E ainda diz que atualmente aumentou o número de mulheres dedicadas a uma leitura feminista da Palavra de Deus.

Acreditamos que as mulheres referidas no texto como “feministas dedicadas” não estejam apenas querendo inverter os papéis. Fazer uma leitura da Bíblia numa perspectiva renovada, sem discriminações só pode acontecer se se excluir a idéia de gênero.

Se é necessário acabar com o monopólio clerical machista ele naturalmente que ficaria depreciado se se fizesse monopolicamente feminista.

Em todo o mundo, sabemos, houve mulheres e ainda há que lutaram pelas suas idéias e muitas acabaram sendo condenadas por estarem pensando. Uma mulher que pensa é um risco para a vida do homem, para as outras mulheres, para a sociedade, pois ela pensa pouco.

No século XII, estudos medievais, literário e historiográfico, mostram Maria de França, mulher poliglota, conhecedora das raízes lexicais do Latim e leitora dos clássicos existentes até a época , portadora de grande lirismo em suas poesias sob a ótica do amor cortês, ficou durante séculos vedada ao conhecimento, uma vez que a uma mulher não era dado o direito de se fazer conhecer.

No século XIV, Christine de Pisan, escritora de baladas e rondós enfrenta sérias dificuldades, sendo criticada por viver sem a proteção masculina. Escreve “A cidade das Mulheres”, obra em que evoca o mito das Semírames, a mulher sozinha que precisa ser corajosa. Ainda em “O livro das três virtudes”, verdadeiro tratado de educação para mulheres, lemos o que a escritora deixa escrito a um homem , seu difamador e opositor:

Que não me seja imputada a fama de louca, eu mulher, que tive a arrogância e a ousadia de contradizer um autor tão sutil, quando ele, homem, ousou difamar e culpar, sem exceção, todo um sexo.

Goutier Col, mestre da Igreja, pede a ela que se retrate, que confesse seus erros porque assim “teremos piedade e daremos sua penitência salutar”.

Inútil tentativa. Christine de Pisan não renuncia às suas idéias e escreve ainda os seus últimos versos para Joana D’Arc, na França.

Tu Joana, nascida em boa hora

Bendito seja que a criou

Donzela enviada por Deus

Sobre quem o Espírito Santo

Derramou sua imensa graça

E que teve tamanho dom.

 

Uma jovem de 16 anos

(Não e alguma coisa extraordinária?)

Para quem as armas não são pesadas

E diante dela fogem os inimigos...

Joana venceu todos os limites de sua época e sofreu as consequências de sua ousadia.

No século XVI citamos ainda Artemísia Gentileschi, nascida em Roma, primeira mulher a figurar num processo de estupro. No processo transformam-na em ré, acusada de ninfomaníaca, sendo submetida a exames vexamosos. Condenada pelos homens, foi torturada com anéis de ferro nos dedos das mãos.. Artemísia assumiu sua vida, escolheu seu destino. Não teve medo de superar as proibições, enfrentar a moral, se tornar pintor, como um homem, no mesmo nível. Reivindicou a igualdade, sem lutar contra os homens.

Essas mulheres, e muitas outras, foram feministas avant la letre. Escritoras, guerreiras, pintoras, escritoras, artistas, mulheres que ousaram se impor em terrenos antes reservados somente aos homens e enfrentaram todos os preconceitos de sua época.

Elizabeth Cady Stanton, bem mais perto de nós, já, século XIX, é a continuação desse trabalho de luta para ocupar um espaço no mundo ao lado dos homens. Já se multiplica o número de mulheres que estão nesse rol de lutadoras pela causa feminina.

No Brasil, como narra o texto, Branca Dias foi condenada por ter sido encontrada, na Paraíba, com uma edição da Bíblia Feminina em língua vernácula, o que era proibido pela Inquisição. E só depois de condenada descobriram que era analfabeta.

Mais uma vez se nota a arbitrariedade das atitudes masculinas machistas com a justificativa de tudo estarem fazendo em nome da lei e em benefício do social, da ética.

A filósofa Hanna Arendt após ter conhecido um assassino nazista, afirmou nada encontrar nele que a fizesse pensar que ele poderia ter cometido tantas barbaridades. Ela era um sujeito comum.

O fato nos remete à frase bíblica de Salomão: “O homem é ruim desde a sua meninice”.

Se a frase de Salomão pode ser considerada verdadeira, ele teria que se limitar somente ao gênero masculino, em vista de todas as atrocidades que um homem é capaz de fazer ou temos que generalizar a idéia e contextualizá-la no mundo também das mulheres? Será verdade que um homem, quando tem ocasião de se beneficiar, raramente deixa de fazê-lo pelo Outro?

O questionamento que se faz sobre qual o lugar que a mulher ocupa, na Bíblia, traz sérias implicações essencialmente à Igreja atual que supre tais explicações com falsas idéias de pecado e desejo de continuar mistificando o que para o homem não é mais segredo.

A sociedade atual aprecia e valoriza o falso. O artificial entra para a realidade das pessoas , com maior valor que o verdadeiro. A aparência supera a forma original. Um homem instrumentaliza o outro homem e esse Outro muitas vezes é uma mulher. A condição feminina é um desafio constante.

Encontrar exatamente uma mulher com um livro proibido nas mãos foi uma boa justificativa para avisar outras mulheres.

Erasmo em “O Elogio da Loucura”, século XVI, critica violentamente a sociedade da época, ridicularizando os falsos católicos, a hipocrisia religiosa e a corrupção de muitos membros do clero, não poupando nem os papas.

Em todo o tempo da história, todo o discurso produzido pelo homem se fez na tentativa de dispersar a dualidade radical existente no mundo. Por um lado o benefício do poder que centraliza e se apodera do caminho e por outro lado toda uma categoria que se coloca acuada por não dispor de meios para enfrentar a opressão. Esse poder referido também cabe à Igreja.

A sociedade assim distribuída coloca ainda um outro problema que sempre foi crucial: O problema da mulher. A mulher que gritou e se condenou e a mulher que se calou de medo ou de cansaço.

A superfície discursiva do texto “Bíblia Feminina”, de Frei Beto, historicia fatos ocorridos num determinado momento histórico cujos valores transitaram sobre pontos ligados ao passado e o florescimento de idéias que estariam por surgir - século XIX.

Recontado agora, no final do século XX, o mesmo fato ganha uma nova competência, cuja superfície discursiva baila ante olhos conservadores versus olhos pós-modernos e essa intersubjetividade, vista hoje, encaminha-nos para uma análise do texto que enuncia um discurso cuja voz concede a si mesmo (texto/autor) um lugar para dizer, contracenando com muitas outras vozes que entram para complementar aquele ou até mesmo para fazer oposição.

Há uma voz masculina no texto( o autor) que narra e outra voz também masculina que desperta um desejo de suscitar na mulher o seu encontro de si mesma, e ainda outra voz, ainda masculina, que deseja defender a mulher diante do mundo, da religião, da Igreja. São três vozes em um só sujeito enunciativo que fala diante de cada uma das outras vozes surgidas dentro do mesmo texto, reconhecidas pelas citações e lidas nas entrelinhas. Ainda no final do texto encontramos na própria voz do autor uma manifestação de reprovação que chama a mulher para refletir sobre deixar-se valer de seu corpo para se reificar.

A leitura que se pode depreender do texto é bem diacrônica e apresenta uma deixis fundadora que nos remete à criação do mundo, à Gênesis. Essa mesma deixis fundadora atravessou milênios e chegou até nossos dias numa elaboração discursiva formada por várias gerações de homens e mulheres, um atravessando o discurso do outro, para chegar a ponderações mais relevantes que estariam, hoje, abrindo um espaço maior às mulheres no que diz respeito às suas cobranças de posicionamento na estrutura social vigente.

O que se lê no texto “Bíblia Feminina” são efeitos de uma FD que estaria nesse tempo elaborando uma nova FD para confrontar-se com aquela e, a partir daí, purificar um novo discurso que esteja mais coerente com o pensamento do século.

Os co-enunciadores do discurso do texto, as mulheres principalmente e todos os homens que corroboram com ele (discurso) serão a possibilidade de multiplicação para se acrescentar a frase “A mulher quer ser senhora de sua vida”, e estarão dentro do discurso como um suporte a estabelecer fronteiras para uma possível retro-ação.

Todo esse processo de emancipação cobrado e exigido pela mulher, ao longo do tempo é realçado no texto cujo nome é Bíblia. Este termo a partir do título e repetido algumas vezes dentro do texto, heterogeneíza o seu significado.

Bíblia - conjunto dos livros sagrados do Antigo e do Novo Testamento.

Bíblia feminina - aquela em que está inserida a voz também das mulheres, re-elaborada e re-lida por elas.

Esta heterogeneidade mostrada no texto nos remete também a uma heterogeneidade constitutiva que se marca pelo interdiscurso. A polifonia existe , marcadamente, desde o início quando Elizabeth ,na voz feminina infantil, na observação de outras mulheres queixosas de seus maridos à voz do juiz Cady, seu pai, que lamentava, mas defendia os maridos. O texto inteiro é um interdiscurso que aflora o desejo de consonância entre mundo masculino e mundo feminino, na visão feminina , mas Frei Beto no final , último parágrafo, coloca em questionamento a própria entrega da mulher à apropriação pública de seu corpo visando à reificação, reduzindo-se a mero apelo de consumo material e simbólico e por outro lado, queixando-se de serem tratadas pelos homens como objetos descartáveis.

Sabemos que essa entrega, a meros objetos descartáveis também faz parte da apropriação do discurso masculino ao longo do tempo o que levou a mulher a acreditar que, para conquistar o homem dos seus sonhos, dos seus desejos era necessário que estivesse em plena forma de beleza física, caso contrário, seria repudiada.

O mesmo mundo que produziu Cleópatra, que perfumava sua embarcação para que, assim, os homens percebessem sua aproximação, dois milênios mais tarde cria mulheres aprisionadas ainda à procriação e mulheres “Globeleza”, padrão difícil de se alcançar.

O texto “Bíblia Feminina” redescobre apenas, tira o véu de alguns olhos para fazer enxergar a alguns outros o caráter contraditório do mundo.

Todas as expressões veiculadas neste caráter contraditório do mundo são parte da ideologia do cotidiano desde que não há interesse do sistema de se trabalhar o assunto, uma vez que uma consciência fechada produz um raio de ação limitado, mas são parte também de uma FI sistemática que trabalha em prol de maior fechamento da questão, pois uma avaliação crítica aberta sobre o assunto revolucionaria aquela mesma consciência fechada e explodiria na palma da mão de todos aqueles que carregam nas mãos a ânsia do poder.

O homem que pensou em todo esse tempo estar monologicamente ditando os seus ensaios sobre o que uma mulher deveria ou não fazer, falhou na perspicácia de conhecer o dialogismo silencioso.

Falando, a mulher não teve vez; no silêncio ela foi recapitulando o seu desejo e elaborando o seu discurso que hoje acabou por começar a contracenar com o discurso masculino. A dialogização hoje, quase um embate dentro dessa imensa arena que é o mundo. Em todos os lados do mundo há um grito que começa a ser ouvido.

Não é o discurso do Outro que importa hoje; é um outro discurso que entra, ganha espaço e cria uma diversidade de valores que redundam no consciente e no inconsciente do homem e do mundo.

A mulher, hoje, começa a ser sujeito, a ser 1a pessoa, a criar efeito para sua linguagem, a conjugar um verbo antes inexistente em sua vida. Eu Sou.

A FD elaborada pela mulher, interpelada como sujeito falante frente à FI da sociedade, leva a mesma mulher a um desdobramento de papéis dentro do seu ambiente discursivo, uma vez que sua posição de sujeito falante encontra grande barreira por parte dos homens e mesmo de outras mulheres.

A posição de Elizabeth Cady Stanton no texto “Bíblia Feminina” é múltipla e ao mesmo tempo única. Única por ser sempre a representação feminina e, múltipla por representar uma geração passada de mulheres que aceitou e se calou e uma geração presente, cuja voz está sendo ouvida nos nossos dias. Mulheres que gritam por reconhecimento, por emancipação, por espaço, por vez e por voz.

Elizabeth fala em nome de mulheres pobres, ricas, adultas ou não, adúlteras ou não, materializantes ou materializadas ou materializadoras, mulheres justas e injustas, maduras ou não, mulheres leitoras da Bíblia ou analfabetas, enfim, mulheres-Marias que acreditam na presença feminina para a transformação do mundo.

Frei Beto discute o texto com a mulher e este interdiscurso promove a aproximação das idéias que ele levanta com as idéias de Elizabeth e de outros nomes presente no texto.

Maingueneau afirma que o interdiscurso é a unidade de análise mais pertinente e que toda FD é heterogênea.

Observamos no texto que as FDs se definem circularmente uma vez que cada uma delas é o começo de uma nova FD que se afigura. O atravessamento das vozes circulares elaboram o universo discursivo textual e em cada linha há uma voz linear e uma outra voz que repassa a sua materialidade (texto) para se juntar a um inconsciente(?) marcado no tempo.

A mulher se olha, se elabora e entra para o Centro de Estudos Bíblicos, aliás, ao lado de outros homens que também estão preocupados com a figura feminina e seu estado no mundo. Haverá por detrás de cada homem figurante do CEBI uma nova FD pertencente a uma FI que estaria dando início a um novo embate responsável pela Gênesis de uma nova deixis fundadora a que, nos próximos séculos, outras mulheres estarão recorrendo para se firmarem na continuação de sua voz?

 

Bibliografia

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