FÁBULA DE MILLÔR FERNANDES
O DESMANTELAMENTO DE UMA IDEOLOGIA
Edviges Marlene Paranaíba Vilela (UNINCOR)
Antes de se esboçar uma análise discursiva, convém apresentar alguns dados relevantes sobre a disciplina chamada Análise do Discurso.
A Análise do Discurso teve sua origem na França, na década do 60, através das figuras de Jean Dubois e Michel Pêcheux. O que há de comum no trabalho desses dois “é que ambos são tomados pelo espaço do marxismo e da política, partilhando convicções sobre a luta de classes, a história e o movimento social”, conforme afirma Fernanda Mussalim (2001). A Análise do Discurso surgiu, portanto, no centro das questões políticas.
Para entendermos melhor essa disciplina, é bom que se fale, mesmo que rapidamente, um pouco sobre o Estruturalismo, que a precedeu.
A autonomia relativa da linguagem é unanimemente reconhecida na conjuntura estruturalista, uma vez que a língua - objeto de estudo das teorias estruturalistas - pode ser estudada a partir de regularidades e pode ser apreendida na sua totalidade, pois as influências externas, geradoras de irregularidades, não afetam o sistema por não serem consideradas parte da estrutura. A língua constitui um sistema fechado em si mesmo e as suas relações com o mundo são, portanto, desprezadas.
Os estruturalistas propõem-se como objetivo estudar a estrutura do texto “nele mesmo e por ele mesmo” e restringem-se a uma abordagem imanente do texto, excluindo qualquer reflexão sobre sua exterioridade.
Na década de 50, surgem os trabalhos de Harris (Discourse Analysis, 1952), que mostram a possibilidade de ultrapassar as análises confinadas meramente à frase, ao estender procedimentos da lingüística distribucional americana aos enunciados (chamados discursos), e, de outro lado, os trabalhos de Roman Jakobson e E. Benveniste sobre a enunciação. Esses trabalhos já apontam a diferença de postura teórica de uma análise do discurso de linha mais americana de outra, mais européia.
Embora a obra de Harris possa ser considerada o marco inicial da análise do discurso, ela se coloca como simples extensão da lingüística por considerar frase e texto como elementos isomórficos, diferenciando-se apenas em grau de complexidade. A preocupação está centrada na organização dos elementos que constituem o texto e não com a instituição do sentido.
Em oposição a essa teoria, encontra-se a tendência européia, que leva em consideração as condições de produção e coloca a exterioridade como elemento fundamental da análise discursiva.
A partir de agora, os conceitos referentes à Análise do Discurso, aqui apresentados, serão aqueles da linha européia ou, especificamente, da francesa.
Para se chegar à Análise do Discurso, um grande passo foi o estudo das formações discursivas, cujo conceito, tomado da obra do filósofo Michel Foucault (1969) é o seguinte: um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa.
O conceito de formação discursiva é utilizado pela Análise do Discurso para designar o lugar onde se articulam discurso e ideologia. Podemos dizer, então, que uma formação discursiva é governada por uma formação ideológica. Como uma formação ideológica coloca em relação mais de uma força ideológica, uma formação discursiva colocará em jogo mais de um discurso.
Na década de 60, vem à tona a obra de Mikhail Bakhtin, que, contrariando Saussure e os demais estruturalistas (que consideram a língua um sistema sincrônico homogêneo e rejeitam suas manifestações individuais - a fala) valoriza a fala, a enunciação, e afirma sua natureza social, não individual: a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas sociais.
As estruturas sociais, convém ressaltar, são governadas por ideologias, que, segundo Althusser, manifestam-se nos ARE (aparelhos repressores do Estado) ou nos AIE (aparelhos ideológicos do Estado). As ideologias determinam as formações discursivas. Uma formação discursiva, segundo Mussalim, é marcada por regularidades, ou seja, por “regras de formação”, tidas como mecanismos de controle do que pertence e do que não pertence a uma formação discursiva. A FD, portanto, não é um espaço fechado, é sempre invadida por elementos que vêm de outro lugar, de outras FDs.
É isso que pretendemos mostrar nos dois textos que seguem:
Texto I
A RAPOSA E O CACHO DE UVAS
Uma raposa faminta, ao ver cachos de uva suspensos em uma parreira, quis pegá-los, mas não conseguiu. Então, afastou-se dela, dizendo: “Estão verdes.”
Assim também, alguns homens, não conseguindo realizar seus negócios por incapacidade, acusam as circunstâncias.
Esopo
Texto II
A RAPOSA E AS UVAS
De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e gula de todos os tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra deliciosa do parreiral que descia por um precipício a perder de vista. Olhou e viu, além de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas maravilhosos, uvas grandes, tentadoras. Armou o salto, retesou o corpo, saltou, o focinho passou a um palmo das uvas. Caiu, tentou de novo, não conseguiu. Descansou, encolheu mais o corpo, deu tudo o que tinha, não conseguiu nem roçar as uvas gordas e redondas. Desistiu, dizendo entre dentes, com raiva: “Ah, também, não tem importância. Estão muito verdes.” E foi descendo, com cuidado, quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a pedra até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra, perigosamente, pois o terreno era irregular e havia risco de despencar, esticou a pata e... Conseguiu! Com avidez colocou na boca quase o cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes!
MORAL: A FRUSTRAÇÃO É UMA FORMA DE JULGAMENTO TÃO BOA COMO QUALQUER OUTRA.
Millôr Fernandes
Estamos diante de dois textos: o primeiro, do século V a.C., e o segundo, de um autor contemporâneo. Ambos pertencem ao mesmo gênero discursivo, sendo que o segundo é uma releitura do primeiro. A interdiscursividade se evidencia: alguns elementos se mantêm; outros são acrescentados e outros, completamente distorcidos.
Citemos, antes, alguns aspectos que merecem uma atenção especial.
A fábula - gênero dos textos em questão - é uma narrativa de natureza simbólica, sobre animais, que alude a uma situação humana e tem por objetivo transmitir certa moralidade. A lição moral que se explicita na conclusão é, sem dúvida, a formação ideológica que motiva a formação discursiva. Revela preocupação com a manutenção da ordem estabelecida ao apresentar um modelo maniqueísta: o bem deve ser imitado, e o mal, rejeitado. A presença dos animais constitui elemento importante nas condições de produção, uma vez que, na época do surgimento das fábulas, por volta do século XVIII a. C., na Suméria, havia um convívio mais íntimo entre homens e animais. Acreditava-se que a assimilação da moral tornava-se mais fácil através das histórias em que os animais apresentavam características humanas. Assim, o entretenimento aparente camufla um ensinamento ou uma lição de moral.
Passemos à análise específica dos dois textos em questão.
Antes, porém, mais alguns conceitos merecem ser apresentados por constituírem embasamento ao que se afirma a respeito dos textos analisados.
Segundo Bakhtin, nenhum texto é monológico, ao contrário, a dialogia está presente e caracteriza qualquer discurso. Essa dialogia, ou seja, esse conflito de vozes, é o que se pode observar nos dois textos.
Outro conceito que merece ser apontado, aqui, é o de heterogeneidade mostrada, que, segundo Maingueneau, “incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação.” O autor, citando Ducrot, distingue em uma enunciação, dois tipos de personagens, os enunciadores e os locutores, elementos importantes na análise que está sendo feita. “Por ‘locutor’ entende-se um ser que no enunciado é apresentado como seu responsável. (...) O ‘enunciador’ representa de certa forma, frente ao ‘locutor’ o que o personagem representa para o autor em uma ficção. Os ‘enunciadores’ são seres cujas vozes estão presentes na enunciação sem que lhes possa, entretanto, atribuir palavras precisas; efetivamente, eles não falam, mas a enunciação permite expressar seu ponto de vista.”
Quanto ao texto I, podemos dizer que sua formação discursiva é didático-pedagógica, pois o enunciado tem como principal objetivo educar, usando, para isso, uma forma de aparente distração (portanto, nova formação discursiva), ou seja, uma história de animais. O texto parte de uma formação discursiva fisiológica, digamos assim, pois a ação da personagem é motivada pela fome. Não conseguindo seu intento, desculpa-se, dizendo que as uvas estão verdes. O locutor do enunciado “Estão verdes” corresponde ao enunciador do texto, que pretende mostrar a reação daqueles que se frustram em alguma empreitada e, para disfarçar sua frustração, acusam as circunstâncias. O locutor assume as palavras, mas não o ponto de vista que elas assumem. O enunciador sujeito do discurso se assujeita a uma ideologia, a da formação de caráter, usando, para isso, a crítica à dissimulação da frustração. Na realidade, é o enunciador que “fala” pela voz do locutor.
O texto II parafraseia o texto I, mas ao contrário de tantos outros que mantiveram, praticamente, o mesmo tom, este distorce a moral clássica que conclui o primeiro.
Até certo ponto, o segundo texto mantém o sentido do texto original no que concerne à parte figurativa, ou seja, até o enunciado “Estão verdes”, apesar de acrescentar alguns elementos. Por exemplo, ao lado do que chamamos formação discursiva fisiológica (a fome da raposa), aparece uma formação discursiva comportamental: a gula da personagem, mais um dado para reforçar a conclusão. Ao contrário do primeiro texto, que apresenta apenas uma tentativa da personagem para atingir o seu objetivo, no texto II, aparece uma segunda tentativa, depois do fracasso da primeira. Só então o locutor emite o enunciado “Ah, também não tem importância. Estão muito verdes.” (É bom ressaltar que esse enunciado é precedido de expressões do enunciador “entre dentes, com raiva”, que evidenciam as condições de produção do enunciado, o que não aparece no texto original.
A partir daí, novos enunciados se apresentam em vista de uma condição de produção fortuita (a vista de uma enorme pedra). Reanimada, a raposa - o locutor - tenta novamente atingir seu objetivo, ignorando o que havia afirmado anteriormente, premida pelas circunstâncias. Isso comprova que o enunciado da personagem diferia , realmente, da enunciação aparente. A moral clássica (crítica à falta de humildade para aceitar as limitações e à transferência do fracasso para as circunstâncias) fica comprovada, mas o enunciador não pára aí: o locutor, ou seja, a raposa, consegue, com muito esforço, o que pretendia - apanhar as uvas - mas, ao contrário do que desejava, as uvas estavam realmente verdes. Nesse ponto, o texto II amplia, alarga os horizontes do texto com o qual vinha dialogando e determina uma outra “moral”, cujo sentido vai de encontro a toda moral comum às fábulas. Aqui não há intenção pedagógica, de se ensinar alguma coisa, segundo a tradição de oposição entre o bem e o mal. Os elementos acrescidos à narrativa levaram a uma nova conclusão, que mostra a coincidência entre o enunciado do locutor “Estão muito verdes” e o enunciado do enunciador “Realmente as uvas estavam muito verdes!”
A continuação da fábula imprime ao texto, portanto, uma nova ideologia, que, fugindo do caráter didático-pedagógico, parte para o lúdico, em busca do humor.
Como diz o próprio Millôr Fernandes: Fazer humor “É adotar uma forma completamente desinibida e descondicionada de ver as coisas.”
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
BRANDÃO, H.H.N. Introdução à Análise do Discurso. Editora da UNICAMP, 1992.
ESOPO. Fábulas Completas. São Paulo: Moderna, 1994, p.25
FERNANDES, Millôr. Fábulas Fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.116.
MUSSALIM, Fernanda. Análise do Discurso. In: MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna Christina (org). Introdução à Lingüística: Domínios e Fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001. Cap. IV, pp. 101-142.
MAINGUENEAU, D. Novas Tendências em Análise do Discurso.Campinas: Pontes, 1994.