O ENIGMA ESTRUTURANDO A NARRATIVA DE LEONARDO SCIASCIA E GRAZIA DELEDDA.

Leda Papaleo Ruffo

Esclarecimento sobre o relatório de Pesquisa de 1993 e o pedido de prorrogação, a fim de perseguir no percurso narrativo deleddiano. O veio culpa. Tão inserido na narrativa de Grazia Deledda e o conseqüente “gancho” com Sciascia no dito “romanzo giallo”, que, por suas características especiais, denomino “romanzo poliziesco”.

Como a pesquisa, em desenvolvimento, se conjuga a uma narrativa feminina do fim do séc. XIX e princípio do séc. XX. Na longínqua Sardegna muitos problemas explodiram em ilha tão avessa às mudanças da tradição. Grazia Deledda, ganhadora do Nobel de Literatura (1926), atrevera-se a furar o “cerchio” familiar e, assim, se tornara conhecida publicamente, através de sua produção literária. A crítica machista de então foi quase unânime no repúdio à escritora sarda que com apenas estudos primários e leituras assistemáticas de romances europeus conseguira tornar-se conhecida também fora da Itália. Grazia Deledda escreveu uma obra gigantesca e prosseguiu sempre em leve constatação e, algumas vezes, em amargas contestações a trajetória e a vitória da tradição obedecida e fossilizada na ilha marginalizada.

Na minha tese de Doutorado sofri “por tabela” essa discriminação e, lembro-me bem, fui até aconselhada a trabalhar Deledda como verista ou decadentista. A minha proposta, todavia, era outra: caminhar com Deledda a sua narrativa doída, intimista, atraída pela utopia do eterno ao “Paraíso terrestre”, sua Nuoro, distante agora que morava em Roma. Trabalhei as obras Canne al Vento, La madre e Cosima, tendo como confluência Pane casalingo, escrito no Corriere della Sera em janeiro de 1936, alguns meses antes de sua morte.

No início da proposta de pesquisa (janeiro de 1991 e respostas em outubro do mesmo ano), conforme relatório enviado, as releituras dos romances Cenere, La chiesa della solitudine, Lédera, principalmente o último, levaram-me a questionar a culpa como problema fundamental no esclarecimento das aparentes antíteses “deleddianas”: morte x vida, religião x religiosidade, primavera x outono x inverno x verão, ilha x continente, carne x espírito, bem x mal, velho x novo etc. e a dialética estruturadora que, a princípio, apontava para Hegel. Deledda, criticada por ser repetitiva, intrigava-me e a procura do suporte básico estava realmente na poética de Bachelard (Poética do Espaço), onde casa, porão, sotão, canto, concha, cofre, miniatura, ninho e etc. diziam das ressonâncias e da repercussão na narrativa da autora. Respeitando o enovelar das notícias “deleddianas” (novelle), oriundas do seu espaço sardo, procurei não comprometer minhas leituras e aceitar nas Formas Simples, de André Jolles, a palavra e depois, o coro da ilha “deleddiana”. Era a Poética do Espaço, a bandeira teórica de que mais necessitava, no momento, o livro de cabeceira.

Tendo sido orientadora da Tese de Doutorado da Profª Ana Maria Magalhães sobre Leonardo Sciascia, também habitante de ilha, Sicília, onde a culpa é o elemento estruturador e coteja sua narrativa, tento estabelecer um eixo entre os dois autores, resultado das leituras de Lédera. Canne al vento de Grazia Deledda e o Mar do texto e a cor da denúncia (uma leitura de Il mare color del vino da profª Ana Maria Magalhães). A presença da máfia, a constatação “deleddiana” e a contestação “sciasciana” levaram-me a um desvio no qual as obras de crítica textual de Cesare Segre (Aviamento all l’analisi del testo novecentesco e Intrecci di voci) serviam como indicadores, à medida que adentrava as obras tão distantes no tempo. Da culpa ao “romance poliziesco” se projetava novo vilão nos tipos Efix-Giufà. O tratamento dos criminosos involuntários aproxima os dois autores. A fim de estabelecer na pesquisa a “plurivocità” e a polifonia de quase um século, apelei para Segre que nos diz:

“... é che nel romanzo s’intrecciano molte voci e molti linguaggi, al di là dell’eventuale caratterizzazione stilistica o linguistica dei singoli personaggi attraverso i loro discorsi”. A trama o “intreccio” estudado (no “romance poliziesco”), representando-se a polifonia no tempo e no espaço, onde os embriões se atém à dialética emitente (narrador) personagens (tipos) destinatário, levavam a problemática da pena e da culpa e a empatia do leitor com os criminosos: o criado e o idiota.

Como professora de língua e literatura italiana, penso a literatura e penso as demais ciências que desembocam na Teoria literária. Não devo resvalar para um “idealismo mágico” no perigo da Obra Aberta de Umberto Eco que valorizava o receptor e o intérprete. Segundo Eco, a obra buscava a dialética entre a iniciativa do intérprete e a fidelidade da Obra. Umberto Eco alerta para “a exagerada concessão à liberdade interpretativa do leitor”. Após 30 anos de Obra Aberta, escreve, em 1990, I limiti dell’interpretazione (obra que leio atualmente) e diz que “... interpretar significa reagir ao texto do mundo ou ao mundo de um texto, produzido outros textos. Tanto a explicação do funcionamento do Sistema Solar nos termos das leis estáveis de Newton como a enunciação de uma série proposições que se referem ao significado de um texto dado são ambas formas de interpretação. O problema, então, não consiste em discutir a velha idéia de que o mundo é um texto que pode ser interpretado (e vice-versa) mas em decidir se tem um significado fixo, uma pluralidade de significados possíveis, ou, ao contrário, nenhum significado (p. 325)”.

O meu trabalho hoje aqui, considerando a teoria do romance, nasceu da minha pesquisa de Doutorado na Faculdade de Letras da UFRJ. O nascimento da tese e sua defesa sofreram um peso emocional, na aderência à autora Grazia Deledda, nascida em Nuoro, Sardegna. O questionamento da mulher sarda, do sul da Itália, no final do século passado e início deste fez-me envolver demais com Deledda e, às vezes, eu não distinguia Leda da Deledda. Como tese não carece de um ponto final, continuei caminhando, nas releituras de seus romances, perseguindo seu signo lingüístico de tradutora da própria língua italiana para atingir o seu Signo. Após o segundo relatório da pesquisa, novo atalho me desviou de um aparente julgamento.

Tendo ido a Viterbo, honrando o Acordo Cultural UFRJ x La Tuscia, para um Congresso Internacional sobre o romance dos anos 80, me dei conta do ingrediente “poliziesco” de Deledda e me propus a levantar alguns dados característicos que a aproximaram da preocupação de Leonardo Sciascia. No Congresso apreendemos a preocupação com o destino do romance, por sua profusão desmedida e por isso a sua possível morte. Fenômeno parecido aconteceu com Jorge Amado na crítica superficial de alguns e maldosa ou invejosa de outros, todavia Jorge Amado foi à luta e, hoje, com muitas traduções no mundo inteiro, é orgulho nacional. Ouvimos depoimentos de vários novos autores sobre a produção de suas obras e eu, em um gancho, estabeleci a relação da obra deleddiana, na temática do romance “poliziesco”, tão afeito às ilhas meridionais da Itália.

 

O ROMANCE POLIZIESCO EM DELEDDA E SCIASCIA

O fato de os dois autores serem ilhéus, precisamente Sardegna e Sicília - parte do Meridione italiano - nos traz a idéia do retorno, no “eu” ilhado, uterino. Deledda e Sciascia são involuntariamente cúmplices na constatação de um “poder”: tradição milenar. Junte-se a tudo o que foi dito o ingrediente sobredeterminante “máfia” e assim, o prato está pronto e chama-se simplicidade, tessitura ou entrelaçamento.

Nos dois textos, comparados, apreendemos o crime - o criminoso - a culpa questionada e a empatia com os criminosos, por isso “poliziesco” e não policial.

Os criminosos Efix e Giufá estruturam a narrativa e purgam seus “crimes”, respectivamente com dedicação e imbecilidade. A figura do servo dedicado que se dá, inteiramente, às patroas arruinadas, nos leva ao legendário, ao mito do eterno arlequim. E, por sua vez, Giufá, o imbecil, estabelece na ironia dos diálogos entre policiais e ele próprio, dois planos distintos (o de cima e de baixo), na medida que o “scherzo” (humor) se introduz em pinceladas rápidas, que denunciam a voz do narrador:

G____Eu encontrei!

P____Sua eminência? Perguntou o capitão, tendo o nariz apertado sob os dois dedos.

G____Que Eminência? - perguntou Giufá.

S____Quero dizer o Cardeal! - precisou o capitão.

G____Eu nunca vi um cardeal - disse Giufá - e tanto menos o toquei: e aqui estou tocando uma coisa que pode ser o cardeal, como pode ser um cão. (Leonardo Sciascia - Il mare color del vino p.1310)

 

Giufá havia matado o Cardeal, pensando em estar caçando uma ave saborosa (que lhe haviam indicado os moradores locais), não compreende o que fizera, ao carregar para casa o imenso corpanzil. Assusta-se com a reação da mãe assustada, devota e profundamente religiosa. Giufá, em nenhum momento, sente o alcance do nefasto acontecimento, tanto assim, que, com a chegada dos policiais à beira do poço familiar, se oferece, como voluntário, para pesquisar a origem do cheiro desagradável que infestava o lugar. Não lhe passava mais na cabeça que havia lá dois corpos. Ele não fixava, vivia! Imbecilidade ou esperteza?

Giufá, já dentro do escuro poço, às apalpadelas, tenta fazer seu trabalho, no plano de baixo:

 

G____Já estou tocando algo peludo, alguma coisa peluda.

Tinha pelos, no corpo, o cardeal?

S____Não sei, disse o capitão.

G____Não sabe... E quantos pés tinha o cardeal, sabe?

E a confusão se estabelece com as perguntas de Giufá e as respostas azedas dos policiais... Tiradas geniais caracterizam a luta entre o imbecil e a policia inadiplente... O narrador provoca!

Outras perguntas, outras respostas dos dois planos que se agridem: (de cima, força, igreja) e povo (imbecilidade? Esperteza?) O diálogo dos dois planos dizem das injustiças e diferenças entre ricos e pobres, entre poderosos e povo. Sciascia, o autor, “não resiste à tentação de intervir com enunciados próprios, dá espaço outras vezes a uma espécie de voz coletiva, conversas de co-habitantes, de curiosos, de opinião popular”. Segre, Cesare. Intrecci di voce, p.34. A trama, “l’intreccio”, se constrói nas perguntas e respostas, centrada em Giufá, que provoca dúvidas...

O leitor é também atuante na provocação, no chamamento: emitente-destinatário. Continuamos, imbecilidade ou esperteza? No “scherzo” dos diálogos, a constatação: criminosos sem castigo, crimes não resolvidos...

Já, com Efix, o servo, a narrativa se processa mais lentamente, cautelosamente para não ferir a tradição da Sardenha; ela cobra muito caro a desobediência. A proteção do “arlequim”, a fuga de Lia para o Continente, teve um desfecho trágico: a morte do velho Barão Pintor. Efix é um criminoso involuntário, e suporta, em suas constantes peregrinações, o peso do pecado, tem consciência do que fez. Toda sua vida de dedicação e entrega é reflexo do seu erro. Dona Lia se casara e tivera um filho, Giacinto que após a morte da mãe vem para Nuora (Gualte). A alegria de Efix dura pouco. Giacinto, ser já contaminado, cria uma série de problemas e é o sobredeterminante forte na desestruturação da tradição: o perigo Noemi. A pobreza e decadência da família se acentuam com os “golpes” tentados por Giacinto: Efix sabe:

“Un equilibrio sacro, seppure precario, è stato, spezzato a causa sua; ed egli non ritroverá la pace della coscienza, non vedrá maturare in bene i frutti della sua semina, anche se buonni, prima che con l’autocastigo, non sia purificato, mettendosi cosi in grado di ristabilire il vecchio ordine, di riannodare i fili spezzati.

Solo alloro la vita, ricomincerá nel fantomatico villaggio di Galte e nella decrepita casa delle dame Pintor, il cui cortile non a caso confina con il cimitero abbandonato nel quale biancheggiano le ossa che le intemperie hanno messo allo scoperto”.

Deledda, Grazia. Canne al vento in Giacobbe Maria. Grazia Deledda (introduzione alla Sardegna). p.96.

Maria Giacobbe, estudiosa de Grazia Deledda, em um de seus comentários sobre a autora, explicita porque não vê Deledda verista ou decadentista, citando uma passagem de Benedito Croce:

“Storie di amore e di colpe”, scerisse Benedito Croce a propósito dei soggetti deleddiani. Ma come non si attardò ad esaminare la natura delle colpe, sembrò anche in qualche modo fraintendre la natura degli amori.

“Nei personaggi deleddiani questi, pur nascendo il più delle vulte da forte ed esplicita attrazione fisica non hanno mai la carnalità di certe passioni verghiane, per esempio, o la sensualità accesa e de caelenti dei piaceri dannunziani, per esempio”. Giacobbe Maria, Grazia Deledda (introduzione alla Sardegna). p.96. A narradora, também se soma aos tipos e personagens, embora timidamente, imersa nas leis da tradição, a grande vencedora.

 

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço (Antonio da Costa Leal e Lídia Valle Leal). Rio. Eldorado, 1974, 176 p.

 

JOLLES, André. Formas Simples. Legenda, saga, mito, advinha ditado, caso memorável, conto chiste. S. Paulo, Cultrix, 1976, 222 p.

Observação: Embora o projeto de pesquisa tenha sido aprovado em 18 de dezembro de 1990 e enviado para o SAG e CEPG em janeiro de 1991, só obtive resposta de autorização em 18/10/91.

 

O texto Pane casalingo, traduzido para o português teve sua divulgação em trabalho junto à Pós-Graduação, no 1º semestre de 1991, nos Cursos de Mestrado e Doutorado da Subárea Letras Italianas sobre a Narrativa italiana contemporânea.

DELEDDA, Grazia. Canne al vento (int. di Vittorio Spinazzola). 4ª ed, Milano, Mondadori, 1978, 261 p.

 

__________ L’(int. Vittorio Spinazzola). Mondadori, 1978, 233 p.

 

SCIASCIA, Leonardo. Opere 1956-1971 Da Il mare color del vino. Milano,

Bompiani, 1989.