A MÁQUINA DO MUNDO
O OLHAR DE ANJO TORTO
SOBRE OS BARÕES ASSINALADOS
Tatiana Alves Soares (UNESA e UniverCidade)
Carlos Drummond de Andrade, considerado por muitos o maior poeta do país, tem sua estréia literária em 1930, com a publicação de Alguma Poesia.
Em Claro Enigma, obra datada de 1951, a fase social e política encontrada em livros anteriores dá lugar a interrogações de cunho existencial, numa sombria resignação diante da condição humana. Tal angústia pode ser sentida em A máquina do mundo, um dos mais consagrados poemas do autor.
A temática filosófico-existencial contida no poema é intensificada pela inquestionável remissão ao texto camoniano: inserida no canto X d’Os Lusíadas, a miniatura do universo é apresentada por Tethys a Vasco da Gama, num prenúncio das glórias futuras a que estariam destinados os portugueses. A imagem da máquina do mundo, que na epopéia camoniana surge como signo de enaltecimento dos feitos gloriosos lusitanos, aparece redimensionada no poema drummondiano. É desse redimensionamento, observado em seus aspectos estilísticos, históricos e imagísticos, que trata o presente ensaio.
A máquina do mundo camoniana (Lus., X, 76-142) reitera a perspectiva que permeia o poema: a Sapiência Suprema, negada a míseros mortais, é mostrada a Vasco da Gama, numa extensão do prêmio da Ilha dos Amores. No alto de um cume, símbolo ascensional e iniciático, a Vasco da Gama é concedida a contemplação do universo. Além de ratificar a tônica antropocêntrica, valorizando as conquistas humanas, retrata a cosmovisão renascentista, na perspectiva ptolomaica que via a Terra como centro do sistema solar. A máquina que surge é radiante, deslumbrante, num brilho condizente com a glória humana:
Este orbe que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que Ele só entende e alcança,
De quem não há no mundo semelhança.(X, 81)
Além de ser marcada pelo encontro dos planos mítico e histórico, onde deuses e homens contracenam, a passagem em que se dá a contemplação da máquina do mundo ocorre em pleno glamour épico, após a chegada às Índias e o desfrute na Ilha dos Amores. Trata-se, portanto, de um momento sublime para o representante dos barões assinalados.
O poema homônimo drummondiano integra uma obra cuja tônica é a angústia existencial, decorrente da constatação do ser humano ante sua pequenez. Não por acaso, a máquina do mundo é encontrada acidentalmente, por um eu que vaga, sem rumo, por uma cidadezinha qualquer:
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia. (ANDRADE, 1987: 300)
Contrariamente ao observado no poema camoniano, é de ceticismo e amargura a atitude do eu drummondiano. Trata-se de uma estradinha qualquer, repleta de pedras no meio do caminho, pela qual ele vaga, errante. Expressiva é a imagem das pedras, que tanto podem traduzir o embrutecimento do homem diante de seus obstáculos quanto refletir o estado passivo e inicial de alguém que começa um caminho evolutivo. O aparecimento da máquina é precedido pela presença de aves e de um sino, numa espécie de anunciação. As aves normalmente representam os estados superiores do ser , pertencendo ao campo semântico das imagens ascensionais. Mas o que se vê aqui são aves cujas formas pretas lentamente se vão diluindo na escuridão maior, numa inversão do código imagístico, que agora remete à queda, às trevas. O sino, outro símbolo de conexão com o sagrado, aparece enrouquecido, num reflexo de seu cansaço. Significativa é ainda a construção sintática, que sugere ser o eu um dos responsáveis pelo surgimento de tais elementos. O próprio ser desenganado, juntamente com os montes, constitui uma das origens dos pássaros negros em céu de chumbo. Note-se aqui uma das grandes vertentes da angústia da lírica drummondiana: a impossibilidade do diálogo entre Criador e criatura. Traído em sua fé, cansado de esperar por uma resposta, o eu manifesta arrependimento pelo fato de ter pensado em se envolver. Após ter tentado entender o mundo, ele nada mais espera. E, nesse momento, ela se abre:
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto dos mistérios, nos abismos. (Ibidem, p. 300)
Diferentemente do poema camoniano, em que a máquina surge em todo o seu esplendor, a máquina drummondiana é circunspecta , parcimoniosa em som e brilho. Sua serenidade encontra um espectador de pupilas gastas, que teria fatigado suas retinas na busca do transcendente. A alusão ao deserto também é expressiva, remetendo , simultaneamente, à aridez e à solidão, mas também ao local onde geralmente ocorrem as revelações.
Entretanto, agora é tarde: a máquina encontra o homem exausto, e sua renúncia ao transcendente é percebida no ceticismo de quem não pode nem quer estabelecer contato:
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas. (Ibidem, p. 300)
Além da repetição da idéia de que a máquina surge em um momento tardio, em que o homem já há muito dela desistira, a remissão ao texto camoniano acentua o niilismo do eu drummondiano : n’Os Lusíadas a máquina representa o triunfo do homem, num olhar renascentista sobre os barões assinalados. No poema contemporâneo, o homem se ressente de sua condição, carente de perspectivas, sem vislumbre de glórias. O contraste com o texto camoniano é evidenciado na vida besta do homem comum, aquele que em vão sempre repete os mesmos sem roteiro tristes périplos. A paradisíaca Ilha dos Amores é aqui substituída por uma estradinha qualquer, e o homem encontrado é fragmentado, dilacerado:
Assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
O esfacelamento do sujeito lírico é intensificado pela adjetivação: ele é noturno e miserável, e o convite para que contemple e agasalhe a máquina parte de alguém sobre a montanha, numa imagem de forte caráter místico. Entretanto, nem o chamado é suficiente para demovê-lo de seu ceticismo. Tem-se, novamente, a imagem da desilusão posterior à interrogação metafísica, como se pode depreender das palavras desse ser que a ele se dirige:
(...)
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo. (Ibidem, p. 301)
O universo mostrado pela máquina drummondiana apresenta marcas inequívocas de modernidade e industrialização. Não se trata, aqui, de um prenúncio das terras por descobrir, mas de um retrato do mundo contemporâneo, habitado pelo gauche:
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
(...)
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades mais altas que todos
monumentos erguidos à verdade. (Ibidem, p. 301)
A perfeição e a ordem geométricas, que no poema camoniano surgem como signo positivo do cientificismo e de domínio do homem sobre o universo, aqui aparecem sob a ótica niilista desse eu que vê tudo como uma estranha ordem, na qual ele não se encaixa. Trata-se do desconcerto do eu, cansado de repetir ad eternum as viagens pelos mares muitas vezes navegados, sem chegar a lugar algum. Às imagens fulgurantes da máquina camoniana, contrapõem-se , no texto drummondiano, o céu de chumbo e aves negras, num fúnebre bailado ao som de um sino enrouquecido.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades: o ato de ver, ação-chave no texto camoniano, é aqui repudiado pelo eu drummondiano. Declinando do convite, o poeta renuncia ao desvendamento da máquina do mundo. Outro aspecto desse redimensionamento está no fato de o texto contemporâneo apresentar um sujeito lírico que se coloca na 1.a pessoa, conferindo ao poema uma perspectiva subjetivista, ao contrário da dimensão épica que caracteriza o texto renascentista:
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima - esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se infiltra;
(...)
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho. (Ibidem, p. 302)
A recusa efetuada pelo sujeito é decorrente da falta de esperança, e manifesta-se pelo desdém em relação à máquina. O ser que outrora ansiava pela resposta agora sabe que há rimas, mas não soluções:
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas. (Ibidem, p. 302)
A trajetória do eu drummondiano chega agora ao seu estágio final: do primeiro momento, anterior ao tempo presente, infere-se uma busca, que se revelara vã; o segundo momento trouxe a aparição da máquina, num encontro que culminou com a rejeição por parte do eu-lírico. O momento atual corresponde a uma espécie de balanço, uma reflexão acerca da perda. Longe de apresentar uma atitude reverente, o sujeito parece aceitar sua torta condição. Repele a máquina que, humilde, miudamente se recompõe. Vagarosamente, ele avalia o que deixou para trás. Sabe-se marcado pelas angústias de um mundo sem glórias, um gauche assinalado.
Bibliografia
ACHCAR, Francisco. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Publifolha, 2000.
ANDRADE, Carlos Drummond de. A máquina do mundo. In: Nova Reunião. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto, [s/d.].
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.