DE EUCLIDES DA CUNHA A CLARICE LISPECTOR:
IMAGENS DO SERTANEJO NA FICÇÃO BRASILEIRA
Fátima Cristina Dias Rocha (UERJ)
Este trabalho se desenvolve a partir de três textos nucleares: os romances A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, e Sargento Getúlio (1971), de João Ubaldo Ribeiro, e o conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, do livro Sagarana (1946).
A idéia de reunir esses textos surgiu inicialmente da constatação de que os três culminam com a morte do protagonista - morte que constitui, para esse protagonista, o momento do auto-reconhecimento.
Outro aspecto que me chamou a atenção, nesses três textos, foi o fato de que eles colocam em cena personagens que vivenciam e expõem inquietações e incertezas quanto à própria individualidade. Macabéa, por exemplo, “não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro”.
Deste modo, os romances A hora da estrela e Sargento Getúlio, assim como o conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, dão vida a personagens que experimentam um “sentimento de identidade” frágil e esgarçado, sentimento que só adquire contornos mais nítidos no momento da morte, instante em que Macabéa, por exemplo, afirma: “Hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci”. Nos três textos, portanto, a morte se mostra como a “vez” do personagem. Esta idéia baseia-se nas palavras que o padre diz a Augusto Matraga, no conto de Guimarães Rosa, palavras que passam a ser o lema do personagem: “Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”.
Além desse traço comum - a morte como a “vez” -, as três narrativas figuram um espaço geográfico-social e humano distinto daquele em que se situa a cultura letrada e urbana do escritor: “A hora e vez de Augusto Matraga” cenariza o interior de Minas Gerais; Sargento Getúlio recria o sertão nordestino; e A hora da estrela lança a migrante nordestina na cena agressiva da cidade grande.
Os três textos têm como protagonistas, portanto, o homem não-citadino, seja o sertanejo - nordestino ou mineiro -, seja a nordestina que se desloca para o Rio de Janeiro.
E, ao abrir o espaço textual para a representação das vivências e da fala do sertanejo, os três textos integram-se à chamada “vertente antropológica” da literatura brasileira.
Essa vertente é identificada pelo professor e ensaísta Silviano Santiago em obras como Os sertões, Grande sertão:veredas e A hora da estrela, nas quais o escritor não disfarça sua condição de intelectual, mas abre seu texto à participação de outras vozes. Como um antropólogo, diz-nos Silviano Santiago, o autor faz com que essas vozes sejam ouvidas longe do local em que foram enunciadas, pois nessa vertente o intelectual apenas colhe o discurso do indivíduo não-citadino, do ser não incorporado aos valores ditos culturais e europeizados da sociedade brasileira. O autor cede a vez, portanto, à fala do outro, ou sob a forma coletiva dos revoltosos de Canudos, em Os sertões, ou sob a forma pessoal do Sargento Getúlio, no romance de João Ubaldo Ribeiro.
Se, então, ao a(colher) a voz do indivíduo não-citadino, os três textos em foco integram-se à vertente de cunho antropológico, eles ainda mais se singularizam por colocar em cena personagens que sofrem e expõem dúvidas quanto à sua individualidade, a qual só é vivenciada em plenitude no momento agônico da existência. Tal singularidade reúne às obras nucleares o livro Os sertões, pois, trazendo à luz o sertanejo e incorporando-o ao país, em suas páginas a morte também “é a vez” dos “compatriotas retardatários” retratados por Euclides da Cunha.
Assim, ao longo deste trabalho, procuro destacar, nos textos nucleares, as diferentes figurações do par intelectual / homem não-citadino, abordando ainda as estratégias postas em prática pelos escritores para traçar a face e a identidade do sertanejo. Investigo também o lugar da morte, e de suas relações com o tema da identidade, nesses textos que podem ser reunidos sob a rubrica “Quando a morte é a vez”. Examino, por fim, o diálogo que Clarice Lispector, João Ubaldo Ribeiro e Guimarães Rosa estabelecem com o livro Os sertões, matriz do discurso literário-antropológico.
Percorro, então, a “estranha e impressionadora” paisagem dos sertões dramatizados por Euclides da Cunha; ouço repetidas vezes o relato do Sargento Getúlio; acompanho Augusto Matraga em sua travessia pelas veredas mineiras; e revolto-me com a existência subumana de Macabéa, numa “cidade toda feita contra ela”.
Depois de percorrer esses vastos espaços, posso afirmar que, dentre as obras nucleares, o romance de Clarice Lispector se destaca por dramatizar mais agudamente as tensões provocadas pelo embate entre a consciência letrada e urbana do intelectual e a subjetividade do homem não-citadino. O relato de Clarice deixa a nu os dilemas vividos pelo “narrador-antropólogo” quando este experimenta o confronto com a alteridade: o estranhamento e a perplexidade, o esforço para identificar-se com o outro e compreendê-lo por dentro - todas as tensões da abordagem antropológica estão dramatizadas no texto de Clarice Lispector, que expõe, ainda, o acidentado percurso que vai da alteridade à identidade.
Dar vida ao seu personagem converte-se, assim, num processo doloroso, que se faz através de fragmentárias tentativas de aproximação - retratos que flagram a “incompetência de ser” da nordestina, sua alienação de si mesma, sua quase inexistência.
Para problematizar a mudez e a “incompetência de ser” de Macabéa, o narrador Rodrigo S. M. procura despojar-se da cultura adquirida, escrevendo “de modo cada vez mais simples” e despindo-se de intelectualismos. As hesitações, dúvidas e questionamentos do narrador denunciam e preenchem o “vazio” que se interpõe entre o seu discurso de intelectual e o discurso não-dito das nordestinas que emigram. Diz, por exemplo, o narrador Rodrigo S.M.:
Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz, gás e telefone.
Com efeito, o romance de Clarice Lispector coloca em cena um personagem que sofre de modo radical a doença do desenraizamento: sem laços que a liguem às tradições do lugar de origem, sem o domínio dos códigos que orientam o comportamento na grande cidade, Macabéa só reconhece a singularidade de seu ser individual no momento da morte. Esta é, portanto, a “vez” do auto-reconhecimento, mas tal percepção se extingue no instante mesmo em que se desvela à consciência da nordestina.
A morte de Macabéa emblematiza, portanto, a exigüidade existencial a que ela está condenada no espaço urbano - espaço que dilui os contornos individuais da nordestina, até suprimi-los por completo.
“Vez” do auto-reconhecimento, a morte de Macabéa significa, ambígua e paradoxalmente, possibilidade e interdição; resistência e impossibilidade.
Ao figurar a morte de Macabéa com os traços da luta e da resistência, Clarice Lispector propõe um diálogo entre sua “hesitante” narrativa e o monumental Os sertões, cuja cena final dramatiza, de modo contundente, a bravura e a resistência dos sertanejos:
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
E se o par resistência/impossibilidade aproxima o romance de Clarice Lispector do livro Os sertões, no romance A hora da estrela o tom grandiloqüente de Euclides - “advogado daqueles pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha e sanguinária” - dá lugar ao discurso titubeante do “réu” Rodrigo S. M., que escreve sobre a nordestina para defender-se da acusação que ela lhe faz.
O retrato do sertanejo também é redimensionado pelo romance de Clarice Lispector. “Antes de tudo um forte” em Os sertões, o sertanejo, no romance A hora da estrela, torna-se “antes de tudo um paciente”, e a “rocha viva da nacionalidade” (como o descrevia Euclides da Cunha) converte-se na “resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito”, nas palavras de Rodrigo S.M. Enquanto não chega a “vez” dessa reivindicação, o narrador-intelectual “grita” por Macabéa - expondo o mutismo da nordestina, que se reduz a si mesma, até extinguir-se.
Ao passo que o narrador Rodrigo S. M. impõe sua presença em cada página do texto de Clarice Lispector, no romance Sargento Getúlio o narrador-intelectual sai de cena, deixando em seu lugar a voz do soldado sergipano Getúlio.
O relato de Getúlio dá mostra, então, das ambigüidades e tensões vividas pela plebe rural brasileira. Por um lado, o discurso do soldado sergipano afirma, com insistência, a bravura e a ousadia, a autonomia e a liberdade - valores prezados pelo homem pobre e livre que julga haver superado a miséria e a situação de dependência; por outro lado, o discurso de Getúlio expõe os estreitos limites de sua autoconsciência e o caráter reificado de sua identidade, aspectos que suprimem a possibilidade de uma existência autônoma, tornando precária e enganosa a sensação de onipotência e de liberdade afirmada pelo Sargento.
Assim, como Macabéa, o personagem de João Ubaldo apresenta uma organização psíquica bastante frágil, sendo tênue, também a sua auto-representação. Embora o Sargento repita mais de uma vez a expressão “eu sou eu”, sua fala e gestos deixam evidentes a indiferenciação e a indissociabilidade que Getúlio experimenta em relação ao chefe político, efeitos drásticos do sistema de dominação pessoal.
E é só a partir do momento em que “escolhe” a revolta e o caminho individuais que Getúlio se dissocia do chefe político, experimentando a autodeterminação e o auto-reconhecimento, e descobrindo a diferença constitutiva da identidade: “O que é que eu fiz até agora? Nada. Eu não era eu, era um pedaço de outro, mas agora eu sou eu sempre e quem pode?”
Deste modo, não é a iminência da morte que provoca em Getúlio a consciência da própria individualidade. Ao contrário, a morte do Sargento assinala a impossibilidade de que seu gesto libertário o conduza a uma existência autônoma.
Assim, a impossibilidade de um viver autônomo interrompe tanto a trajetória da alagoana Macabéa quanto a do sergipano Getúlio. E, se o romance de Clarice Lispector registra um sinal de que a nordestina um dia “vai talvez reivindicar o direito ao grito”, no romance de João Ubaldo “ecoa” o grito do Sargento Getúlio: menos vitimado pelo desenraizamento, Getúlio conserva tradições, lembranças e referências que lhe permitem “falar”, expondo suas crenças e inquietações, sua ousadia e vulnerabilidade.
Ao figurar a voz do Sargento Getúlio, João Ubaldo Ribeiro procura torná-la expressiva do mundo interior do personagem - de sua perspectiva, de seu modo de pensar e de “enxergar a realidade”. Para concretizar seu intento, João Ubaldo propõe uma situação narrativa que se apóia na “fala” de Getúlio. Optando por encenar tal fala, o escritor se vale de modismos e fórmulas populares, nem sempre se distinguindo as expressões de uso geral das contribuições nitidamente regionais - misturando-se a ambas, ainda, as que resultam da “invenção” do escritor. Essa oralidade construída por João Ubaldo Ribeiro constitui um dos recursos mais eficazes para a figuração da identidade existencial e social do seu personagem: servindo-se dos processos expressivos comuns à linguagem falada - como a intensificação e a repetição -, o escritor imprime ao relato de Getúlio um tom extremamente brutal, que reflete com agudeza a enorme carga afetiva que ritma a fala de Getúlio.
Entretanto, a voz do Sargento Getúlio não lhe assegura um destino diferente daquele reservado à “muda” nordestina: Getúlio também morre justamente no momento em que se insurge como sujeito, arriscando-se a construir uma história própria. Sob esse viés - ao qual se acrescenta o da “resistência inconceptível” -, Macabéa e Getúlio revivem o destino dos sertanejos retratados em Os sertões, dizimados pelo Brasil litorâneo quando buscavam a concretização de um projeto afeito às peculiaridades do Brasil interior.
Defendendo a individualidade e a autonomia que acabara de conquistar, o Sargento Getúlio enfrenta, sozinho - resistindo até a exaustão -, o cerco que lhe fazem os soldados do governo. Desta forma, o sertanejo Getúlio constitui uma outra versão do “lutador fantástico” que desafiava de modo tão cabal os esquemas interpretativos de Euclides da Cunha, em Os sertões.
Na figuração do sertanejo proposta por João Ubaldo, é o “lutador fantástico” Getúlio que fala, desvendando a visão de mundo e o imaginário do jagunço sertanejo. Num discurso ininterrupto e tortuoso, Getúlio desvela, então, sua valentia e crueldade, suas contradições e fragilidade - aspectos que, característicos da plebe rural brasileira, traçam igualmente o retrato do sertanejo feito por Euclides da Cunha.
As vozes singulares do mundo sertanejo também ocupam, no conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, o centro da cena: nesse texto, narrador e personagens partilham uma concepção da existência enraizada nos valores, crenças e tradições tipicamente sertanejos.
Sintonizado com a imaginação rústica, o narrador acompanha as etapas do itinerário místico de Augusto Matraga, personagem que experimenta um processo de transformação da realidade subjetiva - a conversão religiosa -, processo que o conduz à sua reconstrução como pessoa.
Augusto Matraga passa de valentão a “santo”, e sua conversão religiosa é amparada, predominantemente, pelo catolicismo providencialista que singulariza o homem dos sertões mineiros: o personagem atravessa um longo período de penitência, em que, tendo abdicado de si mesmo - de sua condição, de seu passado -, experimenta as angústias e hesitações do processo de individuação.
E a nova realidade subjetiva de Nhõ Augusto avulta com maior intensidade no momento da morte, quando o prazer de brigar - característico do Matraga anterior à conversão religiosa - se conjuga ao gesto humanitário de dar a vida por seus semelhantes, atitudes que asseguram ao personagem a concretização do lema que o amparara em sua “travessia”: “P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...”
Assim, a morte de Augusto Matraga constitui, efetivamente, a “vez” do auto-reconhecimento e da autodeterminação, assinalando o instante em que a nova individualidade de Nhô Augusto alcança a plenitude.
Deste modo, a valentia e a religiosidade do homem interiorano - que a Euclides da Cunha, em Os sertões, pareciam “incompreensíveis” - conjugam-se de modo harmonioso na figuração do sertanejo delineada por Guimarães Rosa: na trajetória de Augusto Matraga, a religiosidade simples do homem dos sertões é capaz de converter a valentia e a violência em instrumento de redenção espiritual.
Substituindo a perspectiva distanciada de Euclides pela sintonia com a matéria rústica e com a sensibilidade popular, o escritor mineiro compõe um retrato do homem interiorano em que se destaca o enraizamento desse homem em sua coletividade - aspecto que fornece ao sertanejo os valores, crenças e tradições que lhe permitem realizar suas aspirações.
Chegando ao final desta incursão por algumas obras representativas da vertente antropológica de nossa literatura - percurso em que me detive diante dos rostos dos sertanejos ali esculpidos -, é possível afirmar que cada um dos rostos traçados por Clarice Lispector, João Ubaldo Ribeiro e Guimarães Rosa põe em destaque, acentuando-o e dando-lhe novos tons - um traço que se mostrava no desenho do país delineado por Euclides da Cunha.
O romance A hora da estrela traz à luz a perplexidade vivenciada por Euclides da Cunha ao entrar em contato com o desconhecido Brasil interior. Este, com sua terra e homem enigmáticos, obrigou o engenheiro e jornalista a rever seus esquemas de interpretação e a compor um retrato do sertanejo em que a ousadia, o heroísmo, a determinação e a resistência foram os traços mais fortes - o que não impediu que a “rocha viva da nacionalidade” fosse destruída pelo “mestiço neurastênico do litoral”.
Na figuração do sertanejo levada a efeito pelo romance de Clarice Lispector, já não são a ousadia e a determinação do homem dos sertões que provocam no narrador-intelectual a estranheza e a perplexidade que o impelem a “escrever sobre a nordestina”: representando as dificuldades intransponíveis da migrante desenraizada e solitária numa “cidade toda feita contra ela”, é a existência subumana de Macabéa que inquieta o narrador clariciano, que acaba por traçar do sertanejo uma imagem feita de impossibilidades e de vazios: “É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? Apenas isso mesmo: não tinha”. Essa “incompetência de ser” que vitima Macabéa culmina com a sua “hora da estrela”: ela morre no momento em que, lutando mudamente pela vida, toma consciência de si mesma, revivendo, assim, a exclusão que o Brasil litorâneo impôs aos sertanejos que lutaram em Canudos.
A narrativa de João Ubaldo também coloca em cena um personagem que reatualiza alguns dos episódios e impasses por que passaram os revoltosos retratados em Os sertões: defendendo a individualidade e a autonomia que acabara de conquistar, o Sargento Getúlio enfrenta, sozinho - resistindo até a exaustão -, o cerco que lhe fazem os soldados do governo.
Substituindo a voz do narrador-intelectual pela fala do sargento sergipano, o escritor João Ubaldo Ribeiro põe em destaque a visão de mundo e o imaginário do jagunço sertanejo - homem que Euclides da Cunha definira como “o mais bravo e mais inútil da nossa terra”. Num discurso ininterrupto e tortuoso, Getúlio desvela, então, sua valentia e crueldade, suas contradições e fragilidade - aspectos que, característicos da plebe rural brasileira, traçam igualmente o retrato do sertanejo feito por Euclides da Cunha. Nas mãos de João Ubaldo, tal retrato ganha “voz” e “alma”, expondo em tons extremamente crus - mas com alguns toques de lirismo - a ousadia e o desamparo, a esperança e as frustrações do homem sertanejo.
Quanto ao texto de Guimarães Rosa, ele destaca um traço que, na imagem do sertanejo proposta por Euclides da Cunha, não aparece em primeiro plano, pois o jornalista procurava encobrir esse traço com as pinceladas mais fortes do discurso cientificista: trata-se da religiosidade ingênua do homem dos sertões, a qual se transforma, na trajetória de Augusto Matraga, na via privilegiada para converter a violência em instrumento de redenção espiritual.
Com efeito, o personagem de Guimarães Rosa, depois de passar pelos tormentos e hesitações do processo de individuação, vivencia a morte como o momento de realização pessoal - momento em que se integram, de modo harmonioso, os dois aspectos do sertanejo que mais intrigavam o narrador-intelectual, em Os sertões: a valentia e o desejo de salvação.
Endossando a afirmação de Walter Benjamin de que é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo, sua existência vivida assumem pela primeira vez uma forma transmissível, na origem do conto de Guimarães Rosa está a autoridade de Augusto Matraga no momento de sua morte - a qual é a sanção de tudo que o “narrador-fabulista-sertanejo” pode contar.
Concluindo o percurso por esses espaços em que “a morte é a vez”, acabei por observar que - mesmo nas narrativas em que a morte do personagem assinala a impossibilidade de uma existência autônoma e plena - é a “autoridade” dessa morte que faz “aflorar o inesquecível” (palavras de Walter Benjamin) nos gestos e olhares dos sertanejos eternizados por Euclides da Cunha, Clarice Lispector, João Ubaldo Ribeiro e Guimarães Rosa.
Afinal, como disse o próprio Guimarães Rosa em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o momento da morte “é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas”, passando-se para “o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias”.
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