LITERATURA E LINGÜÍSTICA
LIMITES INTERDISCIPLINARES
Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba (UERJ)
As investigações sobre o texto literário, realizadas conforme as linhas de orientação do método estruturalista, desenvolveram discussões acerca da literatura e de metodologias analíticas, pela apropriação de conceitos que já faziam parte do quadro categorial da Lingüística. Na tentativa de detectarem os princípios reguladores do discurso literário, especialmente quando da abordagem das múltiplas narrativas, as propostas dos teóricos da literatura, elaboradas nas primeiras décadas do século XX, tiveram por base o legado do pensamento estrutural de Saussure. A Lingüística que ele inaugura desenvolveu-se de modo dedutivo, por ter se constituído em uma ciência capaz de prescrever um princípio geral de classificação diante do heteróclito da linguagem. E se tal fato ocorreu, foi porque Saussure sabia bem da impossibilidade de se partir do estudo de cada uma das inúmeras línguas que teria que abarcar.
Seguindo essa mesma via de estratégia investigativa, o estruturalismo literário também quis se firmar com seus princípios e métodos analíticos. Já não mais face à diversidade das línguas, e sim diante das múltiplas formas de manifestações literárias, a atividade estruturalista passou a requerer um procedimento, também dedutivo, de modo a tornar possível a formulação de um modelo de descrição que permitisse separar, identificar e nomear os núcleos organizadores das narrativas de caráter estético. Com esse propósito, os primeiros estudos literários procuraram estabelecer modelos de análise que, na visão dos teóricos, pudessem ser capazes de explicar o processo pelo qual os discursos ficcionais se organizavam. Não foi outro o motivo que os levou a investigarem, diante da diversidade pela qual as narrativas eram construídas na literatura, um núcleo comum que familiarmente as unisse. Buscavam, enfim, sua macroestrutura e, nesse percurso, chegaram à conclusão de que, apesar de as personagens agirem de diferentes formas e, conseqüentemente com nomes e ações também diversificadas, as narrativas eram compostas sempre em função de três categorias básicas: equilíbrio, desequilíbrio, novo equilíbrio.
Hoje sabemos que tal assertiva, preconizadora das seqüências textuais, menos do que ter rendido dividendos a debates teóricos significativos, passou, posteriormente, a ser considerada em seus limites, quanto à eficácia de alcance. Se, por um lado, a divisão em três partes - equilíbrio, desequilíbrio, novo equilíbrio - servia de orientação para o crítico diante de certos textos passíveis de ser por aí penetráveis, por outro, essa divisão tornava-se redutora, quando determinadas literaturas requeriam outros caminhos analíticos, de modo a permitir que a crítica revelasse, em suas reflexões, um aproveitamento mais abrangente do texto com o qual trabalhava. É o que afirma, por exemplo, Roberto Corrêa dos Santos, na discussão que estabelece sobre a possibilidade de fazer render o texto de Clarice Lispector, chamada essa que aparece no belo ensaio, já bastante conhecido entre nós, publicado sob o título Leitura de A imitação da rosa.
Fosse a intenção deste estudo operar sobre os segmentos fundamentais com que se organiza o conto, poder-se- iam empregar os modelos, já bastante divulgados entre nós, de caracterização da atitude narrativa, que abrangem a generalização de um esquema previsto de funcionamento, possível de ser simplificado na relação entre equilíbrio, desequilíbrio e novo equilíbrio, enquanto fases de um modelo geral de estruturação da trama narrativa. Como o texto em questão, visto em geral, não escapa a esse regime, nada mais instantâneo seria seccioná-lo via esses três momentos: a) o momento que antecede o aparecimento das rosas, enquanto elemento desestruturador; b) desestruturação propriamente dita, pelo envolvimento e contemplação das rosas e c) o momento posterior à entrega das rosas. (SANTOS, 1986: 15-31)
Como vemos, embora o crítico veja, nesse conto de Clarice, a possibilidade de dividi-lo nas tais seqüências pensadas pelos teóricos, influenciados que se encontravam pelo pensamento opositivo e binário da lingüística saussuriana, Roberto Corrêa pôde perceber, com exatidão, que o conto diante do qual se encontrava resistia aos princípios dualistas e opositivos que, de um modo ou de outro, tendiam ao fechamento do círculo metafísico. O conto de Clarice, por não pertencer à literatura subordinada ao que Barthes denominou Lei do Significado (BARTHES, [s/d]: 14), suscitava uma outra postura, diferente daquela dos modelos clássicos estruturais. É por esse motivo que, apesar de Roberto Corrêa reconhecer a possibilidade de se estabelecerem seqüências em função dos modos distintos pelos quais a personagem Laura se comporta diante das rosas, não deixa de fazer a seguinte ressalva:
Em relação a “A imitação da rosa”, a aplicação do modelo de divisão textual em grandes segmentos torna questionável não o modelo analítico em si, mas o que, em sua confiança, escaparia à leitura. Traçar sua macroestrutura não deve permitir que se perca de vista a feitura do conto em seus componentes mínimos (...). (Idem, p. 17.)
A indispensável atitude de desconfiança quanto à homogeneização na aplicabilidade de propostas, como essa que aqui lembramos, não nos impede de verificar que, quando se pretende discutir a apropriação do campo conceitual da Lingüística promovida pelos estudos da literatura, constata-se nitidamente uma familiaridade conceitual entre as duas disciplinas em suas formações iniciais. É evidente a aproximação da Teoria da literatura com a Lingüística em seus primórdios, sendo que o entendimento do modo de investigação do objeto parece ter sido o primeiro aspecto de uma interdisciplinaridade nascente que, pouco a pouco, foi se firmando. As relações entre um e outro campo do saber estreitam-se, de modo mais nítido, quando se verifica que o princípio estrutural subjacente à compreensão da língua é de importância significativa também para a investigação do objeto da Teoria da literatura. Daí a presença de noções comuns que transitam e se intercambiam no interior das duas disciplinas. Termos bastante conhecidos como sistema, estrutura, sintagma, paradigma, significação, valor, substância, forma, expressão, conteúdo, sentido positivo, sentido negativo constituem apenas alguns dentre aqueles que começaram a compor as grades conceituais dos dois campos de saber. Até porque, ainda que se perceba um grau de variabilidade, em termos de maior ou menor proximidade conceitual, entre as práticas efetivas de leitura do literário e a disciplina de Saussure, não resta dúvida de que houve um vínculo forte que contribuiu para a relação de parentesco: o forte interesse pelo aprofundamento das pesquisas sobre o fenômeno da linguagem demonstrado tanto pela Lingüística quanto pela Teoria da Literatura.
O fato de reconhecermos a positividade do caráter de vizinhança nas relações primeiras dessas duas disciplinas não significa, contudo, que devamos deixar de lado a inadequação de certos resultados obtidos, por conta de uma interdisciplinaridade que, em determinado momento do estruturalismo literário, se fez por um caráter mais de apropriação do que de especulação crítica. Em virtude deste fato, embora tenham sido muitas as perdas analíticas daí decorrentes, uma discussão acerca da passagem dos conceitos de langue e parole para a análise literária é ilustrativa do gesto interdisciplinar de simples aproveitamento e, portanto, da necessidade de se estabelecerem limites no terreno das investigações de caráter epistemológico. Para constatar a forma restrita pela qual o par conceitual langue e parole foi inadequadamente empregado pela Teoria, passemos, primeiro, por sua caracterização originalmente pensada.
A divisão langue/parole na Lingüística se deve, sobretudo à diferenciação entre sistema e não-sistema. Para Benveniste, o sistema compõe-se de elementos formais articulados em combinações variáveis, segundo certos princípios de estrutura, sendo que cada unidade do sistema define-se pelo conjunto de relações que mantém com as outras unidades e pelas oposições em que entra. (BENVENISTE, 1976: 22.) Da mesma forma que o sistema, a langue é essa realidade sistemática, de caráter abstrato e homogêneo, no sentido de que só existe, integralmente, na massa amorfa de indivíduos sob a forma de soma de sinais depositados em cada cérebro. (SAUSSURE, 1974: 27) Justifica-se, assim, o fato de Saussure ter considerado a langue como objeto da Lingüística, na medida em que é ela que diz respeito à forma, ou seja, à teia de relações entre elementos lingüísticos. A parole, contrariamente, por se constituir de realizações concretas e particulares, é essencialmente heterogênea e, por isso mesmo, não se presta a um estudo sistemático. É verdade que somente a partir da heterogeneidade da parole se pode determinar o que é sistemático para a langue. No entanto, as variações dos atos lingüísticos das realizações individuais não alteram o sistema da langue por dizerem respeito à substância, e não à forma. Enquanto as variações relacionadas à substância não contribuem para firmar oposições, o conjunto de traços capaz de estabelecer distinções diz respeito, aí sim, à forma. Uma das conseqüências básicas dessa diferença, como sabemos, é o fato de só interessarem à forma os atos lingüísticos sociais, ao passo que as idiossincrasias ficam relacionadas à substância, não se prestando, portanto, a um estudo sistemático.
Diante da correspondência firmada pela Lingüística - a langue está para o sistema e a parole para o não-sistema - levantam-se questões de ordem metodológica e conceitual, no momento em que tais noções passam a ser entendidas pelos primeiros estruturalistas da literatura.
De início, entendeu-se, como era de se supor, que o texto literário estaria relacionado à noção de langue , na medida em que ele, por si só, forma um sistema, quer dizer, cada termo só tem sua significação definida em referência a outras significações de outros termos desse mesmo texto. Configurar o texto como sistema, por sua vez, trouxe como conseqüência uma série de atitudes concernentes ao modo pelo qual o objeto - no caso o discurso literário - veio a ser estudado. Como o sistema só conhece a própria ordem, o texto visto assim, isto é, como sistema , passou também a ser visto como possuidor de uma completude, característica esta típica da idéia de totalidade ou de organização independente. Observavam o literário como algo que tem início e fim em si mesmo e, por assim ser, não aceitaria o suplemento. Ao invés, só admitia aquele texto da crítica que nada mais falasse, a não ser o que já se encontrava presente nele mesmo, o texto-base. Seguindo essa diretriz, a metodologia, obviamente, deixou de cumprir seu papel de apreensão do objeto em seu estado “puro”, já que se partia do pressuposto de que esse objeto oferecia-se como algo pronto. Bastava torná-lo inteligível pelo simulacro. Bastava revelar suas regras de funcionamento ou suas funções, problema este que , em Análise e Interpretação (SANTIAGO, 1978: 200-217), Silviano Santiago sintetiza da seguinte forma:
Assim sendo, no simulacro, o ‘intelectual’ se encontrava unido ao objeto (...). Como diz ainda Barthes, recupera-se o objeto para fazer aparecer as funções. (Ibidem, p. 202)
Um outro desdobramento da concepção de texto como sistema diz respeito à valorização da intratextualidade no estruturalismo literário. Quando o texto passou a ser entendido como sistema, ele podia, na concepção dos analistas, ser investigado naquele isolamento que incitava somente a verificação de uma organização que lhe era própria e peculiar, independente, portanto, de outros textos, pois esses estariam constituindo outros sistemas, sistemas também particulares e fechados em si mesmos. Dessa forma, fosse pela formulação de um modelo analítico a partir do estudo de um texto de exemplo, fosse pelo estabelecimento de um modelo teórico prévio, ambas as atitudes terminavam numa leitura opaca do literário. Não o analisavam na sua transparência, ou seja, naqueles aspectos que ele remete a outros textos, no jogo de seus significantes. Esse pressuposto, em muitos casos, pode promover um drástico reducionismo interpretativo. Os poemas de Oswald de Andrade reunidos em “História do Brasil” (ANDRADE, 1971: 79-90), por exemplo, perderiam completamente suas potencialidades crítico-dialógicas sobre o comportamento dos colonizadores portugueses em relação aos índios, se forem analisados pela ausência da consideração da Carta de Pero Vaz de Caminha e de outros textos de nossos primeiros cronistas ao rei de Portugal. As atitudes metodológicas não levavam em conta efetivamente o jogo de interpretação nos seus aspectos de diferença, já que não era o embate de forças dessas diferenças que contava e sim a superposição de um texto sobre o outro, num gesto ininterrupto e incansável de encontrar, em cada uma dessas paroles individuais, aquilo que as fazia menos parole e mais exemplificação de uma langue.
Na verdade, tanto as formulações de um modelo analítico pautado no estudo de um texto específico, quanto às proposições voltadas para o estabelecimento de uma teoria estrutural, via de regra, só se interessavam pela intertextualidade e só concebiam o texto como parole, enquanto tais noções - intertextualidade e parole - lhes permitissem atingir um objetivo maior: compor uma “gramática” da literatura. Ora se observava a parole com a finalidade de se construir um modelo que possibilitaria olhá-la como um “bom” exemplo dos aspectos gerais de tal modelo. Ora se consideravam tais paroles com a finalidade de se detectarem os pontos de cruzamento para os quais elas convergiam. Em ambos os casos, porém, o objetivo era encontrar os princípios geradores, reduzidos e globalizantes, que participariam da langue da literatura. Em síntese, a finalidade era compor uma espécie de “conjunto normativo”, a partir do qual se verificasse, em cada produção escrita, somente os aspectos aí previstos. Como os princípios reguladores do discurso literário diziam respeito a noções bem concretas, por constituírem o resultado de aspectos encontrados num corpus literário, tal concretude não permitiria articular-se com o conceito de langue. Tratava-se, portanto, de uma inadequação teórica denominar os princípios reguladores de langue. A langue da literatura pretendida possuía característica de materialidade, acidentalidade, finitude, práxis, atualização. Já o conceito de langue, na Lingüística saussuriana, englobava propriedades justamente contrárias a essas tais como: abstração, essencialidade, não-finitude, instituição, potencialidade.
Ao propormos uma relação contrária àquela estabelecida pelo estruturalismo, ou seja, ao pensarmos que embora na Lingüística a langue seja correlata à idéia de sistema, na literatura, a ‘língua’ do texto é uma parole, não se deve deduzir daí que não percebamos a importância do conceito de langue para o entendimento da literatura. O conceito é fundamental no que diz respeito às relações formais pelas quais pensamos dever passar todo processo de construção de significação. Restrito a essa noção, o conceito de langue se parte, pelo gesto que separa uma noção ao grupo de outras ao qual se ligava. Assim, se concordamos com o estruturalismo no sentido de que, num texto, a significação se processa por construção de relações formais ( tal como ocorre com a significação dos termos de uma língua) , por outro, dele discordamos porque entendemos que essa rede não se encontra isolada de outras redes, de outros textos, nem se forma somente com os elementos de um único texto. Tal diversidade a que nos referimos termina por apontar, na verdade, para a seguinte distinção: enquanto o estruturalismo constrói a rede de relações entre os signos do sistema do texto, pensamos a construção dessa rede na íntima dependência de elementos de outras paroles literárias, sempre dialogando entre si. Nesse sentido, a nova relação proposta - na literatura, a língua do texto é uma parole - firma sua validade, quando se elege a intertextualidade como estratégia fundamental à significação, promovendo a compreensão do discurso literário de forma mais complexa: ele é, ao mesmo tempo, uma langue e uma parole. Uma langue enquanto exige, sem dúvida, um trabalho com o conceito de forma, mas uma parole porque este trabalho com forma, fundamentalmente em contextos semiológicos não isólogos, como a literatura, exige, também, o resgate do movimento intertextual que quer a recuperação, no texto, dos diálogos, das referências, das alusões, das falas de outros textos para as quais ele remete.
Referências Bibliográficas
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. SP: Cultrix, 1979.
------. Masculino, feminino e neutro: ensaios de semiótica narrativa. Porto Alegre: Globo, 1976.
------. S/Z. SP: Martins Fontes, 1970.
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
BORBA, Maria Antonieta Jordão de O. Tópicos de teoria para a investigação do discurso literário. Rio de Janeiro: Biblioteca PUC-Rio, 1984 (dissertação de mestrado).
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 2000, 2ª ed.
SANTOS, Roberto Corrêa dos. Clarice Lispector. São Paulo: Atual, 1986.