MORTE
COMO TRANSMUTAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO
PRIMEIRA JORNADA E PRIMEIRA NOVELA DO DECAMERON
ASPECTOS SEMÂNTICOS E INTERTEXTUAIS
Maria Elvira Bonavita Federico
Quando Boccaccio escreve O Decameron, retoma a tradição oral , ou pelo menos mantém relações com ela e outras formas ; a novela é que é nova , o público alvo é que é novo , ele se dirige ao público feminino , portanto , ao fazê-lo, cria uma nova tradição , então estabelece um discurso fundador na medida em que re-significa o que veio antes ( tradição oral e das Mil e Uma Noites ).
Ao tomar a peste como moldura , ao colocar a questão da morte coletiva , nos deixa em xeque com nossas crenças e temores sobre a morte , nosso “ nojo ” dela ( que ele sabe colocar bem em Pampinéia); revemos os discursos / textos concretos , do realismo , do ficcional, dos mitos relativos à morte , seu significado simbólico. Relembramos, com Boccaccio, os problemas da finitude/infinitude do ser (o problema existencial), assim como também o Decameron deflagra em nossas mentes a idéia da morte já vivida e aquelas de todas as representações literárias e artísticas conhecidas por nós . Portanto , há, indiscutivelmente, uma solidariedade e heterogeneidade, na sua variante , onde ele não se representa como centro da enunciação – aponta para um não-centro. O “ outro ” participa da construção do significado da variante de maneira indireta , implícita , não-mostrada.
Na sua forma e estrutura , remete às Mil e uma Noites , pois permite ao leitor fazer seu próprio percurso de leitura . Portanto , há dialogismo (Bakhtin) e ele parece ter consciência dessas outras “ vozes ”, assumindo a heterogeneidade constitutiva ( pluralidade greimasiana) natural , para sua construção , os representando, de maneira implícita ou indireta , ou mesmo direta , como quando declara no Proêmio :
Assim sendo, para que se corrija, para mim , o pecado da Sorte , pretendo narrar cem novelas , ou fábulas , ou parábolas , ou estórias , sejam lá o que forem. A Sorte mostrou-se menos propícia , como vemos, para as frágeis mulheres , e mais avara lhes foi de amparo . (...) O que escrevo são as coisas contadas, durante dez dias , por um honrado grupo de sete mulheres e três moços , na época em que a peste causava mortandade . (BOCCACCIO: 1970, 10)
O “ outro ” participa, até por remissão remota a uma imaginação do leitor , pela emoção e energia criadora que o texto alavanca nele. Mas , haveria a ambigüidade da voz autoral, assim como permaneceria a da relação entre o sentido literal e as relações dinâmicas , incluindo o que decodificamos na leitura , como as marcas dos mitos e ritos presentes nas novelas ou as marcas dos universais vida / morte , natureza / cultura , na literatura e na arte como um todo .
Portanto , para irmos além das aparências , devemos desconstruir o texto ( onde o enunciado é o produto do percurso da enunciação ), já que ele , como objeto semiótico, junta expressão ( aspecto concreto do sistema significante ) ao conteúdo (percurso do significado ligado à expressão ) e, sendo polifônico, tem entrecruzamento de vozes ( em simulação e dissimulação ), precisamos vê-lo nessas partes constitutivas. Desse modo , assim como o autor tem um vasto universo temático dentro de seu universo individual , o leitor também o tem, e às vezes o que deflagra aquela ida a esse repertório individual , é uma palavra , uma maneira de dizer .
Tudo porque o ato de ler não se esgota na decifração simples dos códigos , ele alavanca no leitor múltiplas dimensões de significado , considerando seu repertório individual a partir da sua experiência com a literatura e com a arte , que irão desencadear , durante a leitura , seus sentidos , em imagens que enriquecerão aquela decodificação ou desconstrução do texto , num modo de acionamento daqueles conhecimentos que irão permitir a construção de novos sentidos : portanto , a leitura , nesse sentido , é uma recriação .
Vejamos como se dá a intertextualidade com as Mil e Uma Noites : a obra árabe , de tradição oral , é estruturada em retângulos contidos uns nos outros : a estória primeira é da princesa Châhrazád, que se casa com o rei Châhr-Yar, que já fora casado anteriormente mas havia matado as esposas por terem sido adúlteras. Châhrazád começa então a narrar inúmeras estórias com temas variados para entreter o rei e assim protelar sua morte . Podemos dizer então que a narrativa maior encerra inúmeras outras narrativas menores , dentro das quais , aliás , há ainda outras narrativas . Tais contos começam, quase sempre , com as palavras : “conta-se, entre o que se conta ...”, ou “ouvi contarem...”, ou “existia, em tal lugar , há muito tempo .” – ou seja, são versões que substituem aqui a famosa “ era uma vez ...”
O Decameron segue a mesma estrutura : uma narrativa maior encerra outras narrativas , uma de cada jovem , durante dez dias . No Proêmio , Boccaccio inicia a narrativa maior (corresponde à história de Châhrazád), que é a estória de Galeotto – ele sofreu as dores do amor , e, tendo sido confortado, quer confortar outros (especificamente as mulheres ) que estejam passando pelo mesmo sofrimento. Na narrativa menor (Pampinéia, ou Primeira Jornada , correspondente às estórias contadas por Châhrazád), está a mortandade causada pela peste de Florença, que ceifa muitas vidas , provoca mudanças de comportamento ( para pior ), provoca asco dos mortos e é o evento necessário para que os dez jovens se encontrem numa igreja e decidam deixar a cidade , indo para um lugar aprazível – aí o locus horrendus é substituído pelo locus amoenus, assim como o ambiente cultural (a cidade ) é substituído pelo ambiente natural , ou onde a natureza bela se sobrepõe aos elementos construídos. |
Desse modo , prepara-se o ambiente para as demais narrativas . Curioso notar que , assim como as estórias de Châhrazád tiveram a função de preservar sua vida , também as narrativas do Decameron serviram para entreter as pessoas até passar o perigo representado pela peste , ou seja, em última instância , as novelas serviram para manter a vida dos jovens , assim como para manter um comportamento honesto quando todos os costumes estavam sendo abandonados ou contrariados.
Além disso, há uma sutil referência que pode passar despercebida , mas que liga definitivamente a estrutura das duas obras : na Primeira Novela , narrada por Pânfilo, advém primeiro a função fática dada pelo “Inúmeras vêzes, minhas adoráveis mulheres ...”, mas quando ele começa a narrar a novela de Ciappelletto, inicia exatamente com “ Ragionasi adunque che...”, ou seja, é outro modo de dizer “ era uma vez ...”
No nosso corpus , Primeira Jornada ( que ele chama de Pampinéia), nós encontramos intertextualidades que se dão no plano de conteúdo , mas não no plano da expressão . Isso acontece porque , nas idéias que ele passa , criam-se, em nossas mentes , imagens , conotações e até terrores frente à peste porque nossa leitura é, além de gnóstica, afetivo / emocional .
A Primeira Novela (a estória de como Ciappelletto, que em vida era um homem cruel , pérfido , transforma-se em São Ciappelletto depois de sua morte ). Desde o Proêmio ( quando fala do amor , das angústias que ele provoca em homens e mulheres , diz que escreve essas novelas para ensinar as mulheres como proceder ou não em casos diversos ) o autor já deixa claro que sua obra é ( talvez ) mais “ educativa ” ou terapêutica do que puramente “ recreativa ” – as mulheres apaixonadas saberão, lendo-as, o que deve ser seguido e o que deve ser evitado, ao mesmo tempo em que se ocuparão de alguma atividade .
No que se refere à categorização tímica ( euforia /disforia), ela se articula com o sistema axiológico do autor . Na Primeira Jornada , ao tratar da peste , Boccaccio fala também , explicitamente, sobre as mudanças de comportamento que ela provoca, tal como o abandono dos cadáveres , o abandono dos familiares e vizinhos , o isolamento de alguns em suas casas ou a excessiva liberalidade de outros . Como na descrição propriamente dita dessas mudanças, ele não as qualifique como boas ou más, ao contrário , a qualificação do autor não aparece explicitamente pois ele é um tanto sutil , obriga-nos a nos remontar ao Proêmio , ou a outras partes , como às pequenas introduções , ou ainda vermos na seqüência da narração se ele qualifica ou desqualifica algo . Depois de descrever as mudanças físicas que a peste provoca, bem como o poder infectante da doença , ele diz:
De tais circunstâncias e muitas outras idênticas a estas, ou mesmo piores , nasciam muitos terrores e muitos lances de imaginação , naqueles que ainda estavam vivos . E quase tudo era dirigido para um fim bastante cruel : o de se ficar enojado dos enfermos e de se fugir das suas coisas , e dêles. Agindo assim , cada um supunha estar garantindo a saúde para si mesmo . (BOCCACCIO: 1970, 15)
alguns exageravam no comedimento enquanto outros exageravam no seu contrário . Pouco depois , ele escreve: “ Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade , a reverenda autoridade das leis , quer divinas, quer humanas, desmoronara e dissolvera-se...” (BOCCACCIO: 1970, 15)
, quando continua mostrando como as pessoas faziam o que bem lhes aprouvesse, ele fala do contexto social (lembra até o ideológico) das mudanças de atitudes e da ruptura do sistema . Novamente o autor não explicita que tais atitudes eram ruins , ele vai atribuindo-lhes adjetivos , com valor negativo em relação aos adjetivos já colocados antes , no primeiro exemplo , caracteriza os fins como “cruéis” – portanto , as atitudes parecidas ou seus desdobramentos também serão cruéis. No segundo exemplo , se a autoridade das leis é “ reverenda ” e é abandonada, subentende-se que as ações contrárias serão más ou censuráveis.
Outros comportamentos que ele narra concernem particularmente às mulheres , como o seguinte :
Pelo fato de serem os enfermos abandonados pelos vizinhos , pelos parentes e amigos , tanto quanto pela circunstância de escassearem os criados , apareceu um hábito talvez nunca praticado antes . O hábito foi que nenhuma mulher , por mais pudica , bela ou nobre que fosse, se sentia incomodada por ter a seu serviço , caso adoecessem um homem , ainda que desconhecido . Não importava que tipo fosse de homem , jovem ou não . A ele , sem nenhum pudor , ela mostrava qualquer parte do próprio corpo , do mesmo modo que o exporia a outra mulher , quando a necessidade de sua enfermidade o exigisse. Para as mulheres que escaparam com vida , isso foi, quiçá , motivo de deslizes e de desonestidades , no período que se seguiu à peste . (BOCCACCIO: 1970, 16)
O autor não qualifica essa “ exibição ” do corpo , mas qualifica a mulher que o faz como “ sem nenhum pudor ”, que ela não “se sentia incomodada”, por mais pudica que fosse – daí se presume que o ato de uma mulher mostrar o corpo a um homem não era um hábito visto com bons olhos , o que é reforçado pelas conseqüências desse “ despudor ” depois da peste , como motivo de “ deslizes e desonestidades ”. Se algo é motivo de tais comportamentos , não é algo bom .
Da mesma maneira , na Primeira Novela , ao falar de Ciappelletto, ele assim descreve suas ações :
Ciappelletto era materialista. Como notário que era , fica supremamente envergonhado quando um dos seus documentos era tido como outra coisa que não falso ( como se fôssem poucos os que assim fazia). Dêsses documentos falsos , sentia-se capaz de produzir quantos pedissem; e mais prazerozamente ainda fazia aquêles que dava de graça do que os que era pago para fazer , ainda que règiamente recompensado. Em juízo , prestava falsos testemunhos , com prazer enorme , quando era e mesmo quando não era requisitado. (BOCCACCIO: 1970, 27)
O autor não coloca referência ao seu juízo de tal conduta se apreciada, boa, má, honesta , etc., mas então precisamos nos remeter , mais uma vez , à introdução à novela mencionada, pois , ali , Boccaccio já estabelece seu sistema axiológico: em vida , Ciappelletto é um homem péssimo , portanto , todas as suas atitudes , embora não qualificadas diretamente no corpo do texto , já são (des)qualificadas como más a priori: “ Ser Cepparello con una falsa confessione inganna un santo frate e muorsi; e, essendo stato un pessimo uomo in vita, è morto reputato per santo e chiamato san Ciappelletto.”[1]
A configuração da obra como um todo apresenta a isotopia da morte , de uma maneira ou de outra , ela aparece em quase todas as novelas e todas são , às vezes , entrecruzadas à temática do amor , nem sempre apenas pelo sexo ( não se pode generalizar a obra como pornográfica, ou obscena , há que se ter cuidado ! – nós as vemos segundo o prisma cultural atual e individual ).
Instaura-se a dicotomia morte / vida em algumas delas, como ocorre em Pampinéia, quando a morte aparece como a ceifadora da vida , seja por ordens superiores : a divina , que “atira” a peste sobre os homens , ou por decorrência da ação insidiosa de um ser sobre o outro , pois , nas outras novelas , o amor “ ilegítimo ” acaba na morte ou de um amante ou , ainda , na dos dois amantes . Em qualquer dos casos , a morte é o contrário da vida , do tema da nossa relação com a vida , onde a morte é a única certeza e a peste é, ainda , morte em vida . A Morte é inexorável , não só pela fragilidade da vida , que é passageira , ela é trágica para o indivíduo , seja ela natural , passional ou irracional , como o é a do ciumento vingativo . Mesmo assim , ela é retratada nos seus aspectos diversos , havendo o desdobramento da isotopia da morte : morte física , transformação espiritual , oposição corpo-alma.
Em Pampinéia, existe não só a morte tratada como tal , ou seja, não vida , e as decorrências dela, tais como putrefação , nojo , asco e medo . portanto , não só o aspecto físico da morte , da transmutação, mas as mudanças comportamentais que elas acarretam, fazendo surgir um espaço de transgressão ou a ruptura do espaço da convenção , a peste ao abater-se sobre os que estão vivos , faz que fujam do local para evitar a morte ( assim fez Petrarca naquela época ), e seus efeitos incidem sobre o tratamento com relação aos mortos e à própria morte .
Já na Primeira Novela é colocada a morte como transformação no sentido espiritual , estabelecendo uma segunda dicotomia : corpo / alma : enquanto vivo , Ciappelletto é mau , cruel , desonesto . Ao morrer , no entanto , sua alma não acaba, ele se transforma em santo . Essa mudança começa na mudança do próprio nome , de Cepparello para Ciapelletto, significativamente colocados pelo autor na pequena introdução à novela que já colocamos acima . Pelas suas palavras , os franceses, por ignorância do que significava “ciapperello”, pensando em “ chapéu ” ou “ guirlanda ”, chamaram-no, por sua baixa estatura , de “Ciappelletto”. A guirlanda , na verdade , já remete (e antecipa) à futura condição de Ciappelletto – chave do chiste de Boccaccio: ela é característica de deuses , ou vencedores (os louros dos romanos ), ou de pessoas nobres , assim como lembra a auréola de santidade .
A construção das personalidades e das atitudes das personagens ( principalmente durante a transgressão individual e social – da realidade socialmente construída – do espaço da convenção ), está relacionada à categorização tímica, que é dada pelas dicotomias alteridade / identidade :– euforia /disforia. As mudanças de hábitos seriam disforias para o autor , na medida em que reforçam a identidade de forma negativa , pois cada um trata de se comportar como bem entende, se comporta a seu bel-prazer . Por outro lado , quando a brigata vai em busca de um lugar sadio e tranqüilo , além de ser uma tentativa de manterem-se vivos de acordo com os princípios saudáveis , seria para ele também uma tentativa de manter os bons costumes ( euforia ), ou seja, a reafirmação da alteridade , na medida em que também é saudavelmente bem sucedido quem incorpora os valores instituídos, como fica explícito na fala de Pampinéia, quando propõe, às moças que estão com ela na igreja , a fuga da cidade :
... Por isto , e a fim de que nós , por nojo ou negligência , não venhamos a cair naquilo de que poderemos escapar , de uma maneira ou de outra , se o quisermos, acho excelente a idéia de deixarmos esta terra , assim mesmo como nos achamos, e do mesmo modo como muitas outras o fizeram, antes de nós , ou estão fazendo, Ignoro se a vocês parece o que se afigura a mim . Escapando aos exemplos desonestos dos demais , como se foge da morte , vamos honestamente instalar-nos em nossos lugares , nas cercanias da cidade , onde , para cada uma, existe em abundância tudo que possa ser indispensável . Teremos ali aquêle divertimento , aquela alegria , aquela satisfação que pudermos obter , sem ir além , em nenhum ato , dos limites da razão . (BOCCACCIO: 1970, 21)[2]
Entende-se, então , que primeiro o autor estabelece o caos – a peste , as mortes , as mudanças de costumes – o espaço da transgressão – para depois reestabelecer a ordem – a tranqüilidade , a harmonia , a saúde perfeita , os deleites e a manutenção dos costumes e do bom caráter , onde o espaço da convenção parece copiar a harmonia e o equilíbrio da natureza , para depois colocar sua terapêutica “novelar”.
Alguns dos quadrados semióticos abaixo , baseados na definição de Greimas (GREIMAS, COURTÉS: 1993, 364), nos permitem visualizar ou melhor representar as oposições significativas tratadas neste trabalho :
BIBLIOGRAFIA
www.stg.brown.edu/cgi-bin/dynaweb/nph-dweb/dynaweb/boccaccio/decameron Acesso em 22/abr/2002
BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Abril Cultural, 1970. (Os Imortais da Literatura Universal )