TEXTO E IMAGEM - ROMPIMENTO DAS FRONTEIRAS E EXPANSÃO SEMIÓTICA

Ulysses Maciel de Oliveira Neto

 

O propósito dessa comunicação é denunciar como as rupturas nas tensas e tênues fronteiras dos campos semióticos simbólico e icônico possibilitam a deflagração de determinados efeitos estéticos . A tensão provocada pela proximidade desses campos no interior dos discursos possibilita o rompimento dos seus limites , fazendo com que eles se expandam e, ainda que competitivos, se interpenetrem, negociando a troca de significados e enriquecendo-se reciprocamente com as metáforas um do outro . A tradução desses signos não pode ser literal . A expansão de um dos campos para o interior do outro se dá a partir das dobras e fissuras por onde os textos escapam à racionalidade dos enredos , abandonam a literalidade e descambam para a armadilha às avessas que é a metáfora .

Nas narrativas , como , por exemplo , no episódio da “ Peste ”, da Ilíada, estão presentes signos de campos semióticos não-simbólicos: o ruído das setas no carcás e a escuridão da noite . Outros elementos , como a distância entre os planos e a sucessão de imagens , hoje nos sugerem uma narrativa cinematográfica . Lessing, filósofo do século XVII, em sua obra Laocoonte, ou sobre os limites entre a pintura e a poesia ,[1] nomeia como “ pintura musical” essa narrativa de Homero, apontando a impossibilidade de traduzi-la “ em outra língua ”. Modernamente , Massimo Canevacci, usando conceitos da antropologia da comunicação visual ,[2] afirma que os significados não são mais vistos como estáticos , mas sim negociados pelas muitas linguagens postas em ação .

Não havia no século XVIII um meio de comunicação que estruturasse todos esses signos em um único significado . A leitura de Lessing é a seguinte :

Apolo desce do cume do Olimpo . Eu não apenas o vejo descer , mas também escuto. A cada passo ressoam as flechas nos ombros do irado. Ele avança semelhante à noite . [...] É impossível traduzir em uma outra língua a pintura musical que acompanha as palavras do poeta . [...] A vantagem principal consiste no fato de o poeta atingir aquilo que a pintura material mostra a partir dele passando através de toda uma galeria de pinturas .

Em Homero as metáforas se referiam a associações mais diretas, às relações entre os homens e os deuses . As fronteiras entre os campos semióticos ainda não haviam sido rompidas. A narrativa sugere uma sucessão de imagens , mas o poeta só confirma informações já dadas e corrobora associações . Os signos estão na superfície do texto , lado a lado , mas não estruturados em uma idéia única e globalizante, intuída pelo leitor a partir de lacunas ou opacidades existentes. Lessing aponta nessa narrativa a impossibilidade de se representar pictoricamente uma sucessão de fatos .

O cinema seria o meio que , além de colocar lado a lado e harmonicamente signos pertencentes a diferentes campos semióticos, provocaria a ruptura dos signos isolados e reconstruiria tudo em uma nova forma . Segundo Hauser, em sua obra História social da literatura e da arte ,[3] essa característica do cinema remonta à sua origem e é a representação do mundo em processo de destruição / revolução , um verdadeiro novo paradigma.

Lessing não conheceu o cinema , a possibilidade de projetar seqüências de imagens separadas por espaços vazios , que causam a ilusão do movimento . Além disso, o cinema rompe com a temporalidade e a espacialidade restritas à imitação do real e possibilita que se projete a narração visual de acontecimentos que se sucedem no tempo , através de imagens .

Lessing também não conheceu a linguagem dos quadrinhos que , justamente por evidenciar a partição do movimento , criando uma arritmia , representa a ação através de seus momentos mais significativos , valorizando uns em detrimento de outros , acelerando ou tornando lentas determinadas seqüências e, dessa forma , tensionando a narrativa . Essa linguagem , além de representar na página impressa os mesmos acontecimentos , traduz para o campo icônico os ruídos , a dor e as sensações táteis, representando-os graficamente.

Nos quadrinhos de Guido Crepax criados para Histoire d’O,[4] esse ilustrador estrutura uma metáfora trazendo, por um lado , sentidos bem primitivos , os instintos sexuais e o exercício do poder , expresso pelo discurso dos carrascos , segundo a fórmula de Sade. Por outro lado , nas seqüências de janelas sem legendas , a ausência do simbólico deixa lacunas que abrem espaço para uma outra narrativa , por onde o leitor vai em busca de emoções pertencentes ao campo do sublime : as idéias de medo , da queda e do desconhecido .

As imagens ficam na superfície . Mas Crepax rompe essa fronteira entre imagem e texto , através da metáfora do poder reforçada por uma estética própria : a representação gráfica da dor através dos closes dos rostos com expressões horrendas de gritos . O olhar no final da página em anexo , que nos olha e olha para o desconhecido , para algo que não é para espectadores sensíveis , remete para o sublime . Segundo Burke, as idéias de dor e de perigo e tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atue de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime , a mais forte emoção de que o espírito é capaz . Do mesmo modo o que torna a dor mais dolorosa é ela ser considerada a emissária da morte , essa rainha dos terrores .[5]

Uma outra possibilidade de contato enriquecedor entre diferentes campos semióticos é da literatura com a fotografia . Marcel Proust, em sua obra Em busca do tempo perdido,[6] revela, através de significados trazidos do campo da fotografia , como o personagem narrador em primeira pessoa se dá conta do grave estado de saúde da avó.

Proust introduz um corte no enredo , por onde pode penetrar a imaginação ligada à fotografia como cópia do real , não literalmente , mas através de metáforas estruturadas com os significados do campo fotográfico . Idéias como “o fotógrafo que nunca voltará ao local fotografado”, “a objetiva puramente material em lugar da vista ”; a idéia do momento em que a presença despercebida do narrador faz dele um ausente e do momento em que o narrador avista, “ tão só por um instante , pois ela desapareceu logo [...] a uma velha consumida que eu não conhecia”; e a imagem do “ viajante de capa e chapéu ”, apontado como um sinal de espontaneidade indicadora de uma arte sem premissas , da expressão totalmente espontânea do artista , sem estar preso a nada . Esse é o trecho em que se dá o corte :

O que , mecanicamente, se efetuou naquele instante em meus olhos quando avistei minha avó, foi mesmo uma fotografia ! Jamais vemos os entes queridos a não ser no sistema animado , no movimento perpétuo de nossa incessante ternura , a qual , antes de deixar que cheguem até nós as imagens que nos apresentam a sua face , arrebata-as no seu vórtice , lança-as sobre a idéia que fazemos deles desde sempre , fá-las aderir a ela , coincidir com ela .[7]

Os significados do campo semiótico da fotografia , com seus conteúdos de objetividade e mecanicidade, evidenciam a incapacidade do nosso olhar de “ ver ” objetivamente e, em contrapartida , a eficácia do dispositivo fotográfico em produzir esse descolamento entre o olhar e o afeto . O equipamento de que Proust se utiliza para causar no leitor um efeito com a sua fotografia resume-se praticamente à ótica e à chapa . Ele não se refere propriamente à câmera , que implica em ser operada pelo homem , e não lida com o material sensível no laboratório , isto é, ele não imprime a sua foto .

A fotografia de Proust, então , é puro conceito . E disso provém a sua eficácia como recurso estético . A imagem fotográfica real , impressa em papel sensível através de um processo químico , não tem verdadeiramente a propriedade de retirar do objeto fotografado alguma carga de conotação . Só pode ser efetivamente isenta de “contaminação humana ” quando for resultado da tradução para o campo simbólico dos significados do campo da fotografia . A expressão “contaminação humana ” está no livro de Brassaï sobre Proust e o empreendimento fotográfico .[8]

Um outro texto literário em que os significados do campo da fotografia se tornam efeito estético é o conto de Cortázar Las babas del diablo[9].

Proust com sua representação da foto da avó secciona o tempo . Realizada a foto não há mais nada além da descrição da avó envelhecida e acabada , efetivamente a antecipação da sua morte .

No conto de Cortázar, existem várias camadas de representação , que separam os fatos possíveis de acontecer dos enredos fantásticos e da imaginação dos personagens . A cena do assédio do menino pela mulher ruiva na ilha , que é a cena que Michel fotografa, é lida como o real . A fotografia dessa cena é presa na parede pelo fotógrafo que passa a observá-la ( ainda na camada do real ) e, subitamente percebe um movimento nas folhas da árvore , que ele ainda considera aceitável , mas quando a mão da mulher ruiva começa a mover-se, inicia-se uma nova narrativa , um novo desfecho para a fotografia , mas já agora na camada dos enredos fantásticos . A passagem é sutil , e é quando se dá a interpenetração dos campos simbólico e icônico e o rompimento das fronteiras entre eles .

Essa nova narrativa é realizada no texto como uma descrição das imagens captadas pela objetiva da câmara fotográfica avançando no cenário da fotografia . À medida que ela avança os objetos aumentam, ficam desfocados e saem do quadro . Não se trata de uma fotografia real , mas de uma expansão das possibilidades de significação no campo da fotografia , contaminado pela invasão da representação simbólica de fatos verossímeis e de fatos inverossímeis. Assim , a literatura dá o troco , enriquecendo o imaginário da fotografia com idéias de imagens que se movimentam e de fotografias que não seccionam o tempo , propriedades que a fotografia efetivamente não possui na camada do verossímil .

Na última cena do filme Blow Up, de Michelangelo Antonioni, baseado no conto de Cortázar, o fotógrafo assiste e participa de um jogo de tênis sem bola jogado por palhaços . Essa imagem serve de ponto de chegada para o escopo deste texto : a imagem fotográfica impressa no papel sensível retrata mais fielmente ou menos fielmente o real , mas o que o leitor buscará nela, através do imaginário que a permeia , é a possibilidade de imaginar uma nova narrativa . Basta deixar-se levar , agora citando Cortázar, como os fios da virgem , levados pelo vento cavalgado pelo sol .

Essas são as possibilidades ampliadas de representação estética quando se incita a contaminação dos campos semióticos uns pelos outros e se estruturam metáforas que prendem o leitor pelo inusitado e o libertam pela possibilidade de múltiplas representações.



[1] LESSING, G.E. Laocoonte, ou sobre as fronteiras da pintura e da  poesia. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 182. Introd., trad. e notas: Márcio Selligmann-Silva.

[2] CANEVACCI, M. Antropologia da comunicação visual. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 9.

[3] HAUSER, Arnold. Historia social de la literatura y el arte. Vol. III. Madrid: Guadarrama, 1969, pp. 294-295.

[4] CREPAX, G. (ilustrador) Histoire d’O. Paris: Livre-Essor, 1975.

[5] BURKE, Edmund. uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo. São Paulo: Papirus, 1993.

[6] PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido – O caminho de Guermantes. Vol. 3. Porto Alegre: Globo, 1983.

[7] Id., ibid., p. 49.

[8] BRASSAÏ. Marcel Proust sous l’emprise de la photographie. Paris: Gallimard, 1997, p.55.

[9] CORTÁZAR, J. “As babas do diabo”. In  As armas secretas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.