Parcela
da
língua
sertaneza - de Elomar
Figueira
de Melo
Simões, D.M.P.
(UERJ)
0.
Palavras
iniciais
Estudar e
dominar uma
língua
são
ações
que deveriam
ser praticadas
desde a
mais
tenra
idade
como
um
exercício de
prazer.
Logo
nos
primeiros
contatos
com a
língua
nacional –
orientados
pelos
familiares –
os
falantes
deveriam
ser sensibilizados
sobre a
importância e
a
beleza do
vernáculo. Pode
parecer
extravagante
tal
idéia, uma
vez
que os
infantes
não estariam –
em
tese –
disponíveis e
aptos
para
informações
desta
natureza,
todavia,
não estou
falando de
instruções
sistemáticas
ou
sistematizadas (pois
se
trata da
fase de
transmissão da
língua),
mas de uma
prática
cotidiana
estimulante do
uso da
língua
observado
como
instrumento de
realização
pessoal.
Isto
porque,
sobretudo na
infância, as
interações
pré-verbais e
verbais
destinam-se, a
princípio, ao
suprimento de
necessidades
primárias.
Entretanto, o
prazer –
independentemente
de
sua
origem –
ativa
mecanismos
cerebrais
que se
correlacionam
com os
produzidos na
área produtora
de
linguagens.
Assim sendo, é
perfeitamente
possível
realizar
interações
verbais
produtivas,
proficientes e
prazerosas
desde a
infância,
com o
objetivo de
gerar o
gosto
pela
aquisição da
língua,
em
especial,
como
meio de
realização
pessoal.
Veja-se o
excerto a
seguir:
Tem sido contado muitas
vezes (até
pela
própria
protagonista)
como Helen
Keller - a
famosa
surda-muda e
cega
norte-americana
- estabeleceu
contato, aos
sete
anos,
pela
primeira
vez,
com a
língua, uma
língua de
sinais
que soletrava
na
palma da
mão. Helen
considerava
esse
dia
como o de
um
autêntico
renascimento. Lembrava a
vida
anterior a
esse
momento
apenas de
maneira
muito
vaga e
incompleta.
Tinha sido
um
simples
organismo
vegetativo.
Graças à
língua,
adquiriu rapidamente o
acesso a
um
mundo
rico e passou a
dispor da
capacidade de
recordar,
sonhar,
fantasiar. E adquiriu
também,
pela
primeira
vez, a
capacidade de
pensar e de
organizar
idéias (Malmberg,
1976: 82-3).
Como partilho
desta
crença –
língua
como
forma de
apreensão do
mundo e
completude
pessoal –
atravesso, desbravo incansavelmente o
território das
metodologias
de
ensino
para
tentar
descobrir/aperfeiçoar
estratégias de
estimulação dos
potenciais
lingüístico-gramaticais dos
falantes no
sentido de
viabilizar-lhes o
domínio
efetivo do
vernáculo,
em
sua
variedade.
Nessa
travessia,
verifiquei
que a
variante sertânica
presente
em
autores
como Guimarães
Rosa (narrativa)
e Elomar
Figueira Mello
(poesia-musical) trazia uma
contribuição
lingüístico-cultural
incomensurável
e
que, a
despeito do
volume de
trabalhos de
crítica
literária
realizados
sobre a
obra rosiana,
a
investigação
vernacular
não se
mostra
tão
abundante.
Avançando na
pesquisa,
verifiquei
que a
obra
elomariana
não
tinha sido
ainda
objeto de
estudo
vernacular.
Sua
composição
já
fora estudada
por
historiadores, sociólogos e
antropólogos,
todavia,
talvez
por
desconhecimento
da
obra, os
lingüistas
ainda
não se haviam
pronunciado a
respeito da
produção do
virtuoso
compositor
baiano.
Na
segunda
metade de
1980, iniciei
meus
estudos de
violão
clássico e
nesta
oportunidade
conheci,
entre
outros, Elomar
Figueira Mello
que,
além de
violonista
virtuoso, é
poeta. E dos
melhores!
Elomar (como
é
conhecido) é
um
artista
nacional
que
não teve
ainda uma
divulgação à
altura de
sua
obra.
Reconhecido
internacionalmente
(tem
disco gravado
na Alemanha,
por
exemplo),
não atravessa
os
espaços da “intelectualidade
referendada
pelos
títulos
acadêmicos” (talvez
em
função da
temática
por
ele eleita: o
cantar de
sua
terra e
sua
gente
in
natura).
Arquiteto
por
formação e
músico
erudito
por
talento e
opção, Elomar
nos tem
brindado
com
um
acervo
poético-musical
que
precisa
ser
conhecido
pelos
apreciadores
da
poesia, da
música e,
principalmente,
da
língua
portuguesa.
Compositor,
violeiro,
dono de uma
voz
privilegiada, Elomar,
mistura
em
suas
músicas a
tradição da
música
sertaneja à
tradição
lírica
européia. (...)
Defensor
ferrenho do
combativo
povo
sertanejo, se
alinha a uma
tradição
literária
que
remonta a João
Guimarães
Rosa e José
Lins do
Rego.
Em
sua
postura
purista se assemelha a
Ariano Suassuna,
ferrenho
defensor da
cultura de
raiz. (Paula
Chagas –
Jornal da
Tarde –
Apud
INTERNET)
Suas
composições
poéticas
dão-nos
mostras de
amplo
domínio
vernáculo: do sertânico
local e
original (ele
é
um
criador de
bodes do
sertão
baiano) ao
erudito e
histórico
português. Elomar é
um
poliglota
em
sua
própria
língua (cf.
Bechara, 1985).
Seus
textos,
ora desenham
cenários do
sertão, da
caatinga;
ora fazem
renascer
cenas
medievais –
ainda
que retocadas
pela
experiência
sincrônica
imediata. Esta
vertente
nos
leva a
revisitar
o bucolismo e a
pureza
romântico-religiosa de
antanho.
A
composição
elomariana
abarca
cantorias
sertanezas
(sic),
cantigas à
moda
medieval,
em
meio a uma
vastíssima
produção
lírica:
óperas,
antífonas,
concertos,
solos
para
violão, etc.
Nessa
moldura
artística,
Elomar
nos
oferta
um
corpus
lingüístico
muito
especial,
recolhido
diretamente (por
experiência
vivencial –
ele continua
criando
bodes nas
barragens do
Rio
Gavião - BA) e
construído
artesanalmente
(retomando
formas dos
clássicos
portugueses e renovando a
língua
por
meio da
neologia, seja
ela mórfica,
semântica,
fônica etc.).
Veja o
que diz o
poeta-compositor
baiano:
Há no
sertão
um
enorme
manancial
cultural
que deve
ser cantado, tocado e
escrito.
Muitos
como João
Cabral de Melo
Neto, João
Guimarães
Rosa e José
Lins do
Rego
já fizeram
isso na
literatura.
Eu sigo essa
tradição
com
minha
música e
minhas
óperas.
(Entrevistado
por Paula
Chagas,
especial
para o JT
Apud
INTERNET)
Por
isso, na
busca de
caminhos
mais
eficientes
para o
trabalho
didático
com a
língua
nacional,
decidi
enveredar
pelos
sertões
medievalizantes de Elomar e
analisar
seus
poemas
musicais,
para: a)
demonstrar a
capacidade
artística do
poeta roçaliano (sic)
eleito; b)
chamar a
atenção de
estudantes e
pesquisadores
para uma
nova
frente de
trabalho no
eixo da
variação; c)
apontar o
dialeto sertânico
como
fonte de
aquisição/ampliação
do
vernáculo; d)
demonstrar a
riqueza da
análise
pancrônica
formas da
língua,
exercitando
conhecimentos
de
vários
níveis:
fônico, mórfico,
sintático,
semântico; e)
contribuir
com o
conhecimento
da
língua
portuguesa e f)
comprovar
que há
formas
bastante
interessantes e produtivas de
conhecer/aprender
nossa
língua.
Para
ilustrar, passarei à
análise
semântico-semiótica do 3º
Canto de
Fantasia
leiga
para
um
rio
seco
intitulado
Parcela.
A
página eleita
para
análise traz a
público a
fala do
retirante (de
entre as
Gerais e o
Rio de
Contas),
cantando as
mazelas do
seu
penar.
Nossa
exposição será
assim
dividida: a)
apresentação do texto-corpus;
b)
breve
incursão no
sistema
gráfico do
português; c)
considerações
sobre o
substantivo-título:
Parcela
e d)
análise dos
fatos
lingüísticos
apuráveis na
superfície do
texto.
1.
Apresentação do texto-corpus:
PARCELA
|
|
05 |
Vomo intonce
cunsiguino
pru
conta da
sorte
qui
Deus dá
prissiguino a
vida
topo in
cada
corte
dos camin c’a
foice
armada
do
Anjo da
Morte
a
me
isperá |
refrão |
|
pru vai-num-torna
vamo ritirano
e abaldonano
as patra do
sertão
té a
chuva
torna
cum passá dos
ano
mais do
vai-num-torna num se
volta
não |
|
10
15 |
já
nem sei
mais
contas
lũa
faix
que
baldonei
nosso
lugá
nada
mais
fregela
o ispirito
errante
da cavêra ritirante
dentro
dos
coro
a chucaiá |
refrão |
|
pru vai-num-torna
vamo ritirano
e abaldonano
as patra do
sertão
té a
chuva
torna
cum passá dos
ano
mais do
vai-num-torna num se
volta
não |
|
20
25
30
35 |
a
fome a
peste a
morte e a dô
tomem vem
visita
os
outro
irirmão
os qui dessa se
iscapô
sucedeu
só no
sertão
os istei do
céu
istralô
já vem
vino
sem
demora
c’as voiz dos truvão
o
Rei da
Guerra
o
Rei da
Glora
muitos
mili
anjo in
grande
preparação
nos
alto
céus
vêm vino
sobre
essa
Terra
pra
julgá os homes
maus
qui ofendêro a
Deus
oço o
toco dos
Rubin trombetêro
atraiz dos
véus |
refrão |
|
pru vai-num-torna
vamo ritirano
e abaldonano
as patra do
sertão
té a
chuva
torna
cum passá dos
ano
mais do
vai-num-torna num se
volta
não |
Como se pode
ver, a
página eleita
para
este
estudo é
um
documento da
fala
sertaneja
levado às
últimas
conseqüências
pelo
poeta,
pois
ele tentou
registrá-la
por
meio de uma
grafia –
representação
escrita
de uma
palavra;
escrita,
transcrição
(HOUAISS, 2001: s.v)
–
pretensamente
fonética, o
que
nos faz
recordar
um
estágio da
grafia do
português.
Breve
incursão no
sistema
gráfico do
português
A
propósito de
grafia,
veja-se o
que diz
(COUTINHO, 1974: 72):
1.
Período
fonético. §
96. Coincide
este
período
com a
fase
arcaica do
idioma. O
objetivo a
que visavam os
escritores
ou
copistas da
época
era
facilitar a
leitura, dando
ao
leitor uma
impressão,
tanto
quanto
possível
exata, da
língua
falada. (...)
Não havia
um
padrão
uniforme na
transcrição
das
palavras. às
vezes, num
documento,
aparecem os
mesmo
vocábulos
grafados de
modo
diferente.
Para
isso
concorriam as
diferenças
regionais
(...) O
que,
porém,
não se pode
negar é a
tendência
manifestamente
fonética do
sistema
então
em
uso.
Escrevia-se
não
para a
vista,
mas
para o
ouvido.
Observe-se
que o
excerto,
informa de
um
estágio da
escrita
portuguesa
em
que havia
grande
preocupação
com a variação
dialetal (ainda
que
cientificamente
isto seja
descoberta
muito
posterior) e
com a
impressão
auditiva
resultante da
leitura. Havia
uma
pretensão de
representar iconicamente
a
fala.
Sabe-se
que a
convenção
ortográfica teve
origem numa
observação de
base
política
em
relação à
circulação da
informação
numa
dada
língua. A
invenção da
imprensa e a
possibilidade de
circulação
documental do
saber
humano
fortaleceram os
argumentos
que defendem a
ortografia
–
sistema
convencionado de
transcrição
verbal. A
convenção
ortográfica –
em
princípio
instituída
para
solucionar as
dificuldades
decorrentes da variação
dialetal (cf. SILVA, 1991:
16) – afastou-se das
bases da
escrita
alfabética e
instituiu uma
forma
fixa
para
cada
palavra.
Congelada a
palavra,
deu-se a
desvinculação
entre o
que se
fala e o
que se
escreve,
sobretudo no
que tange à
dialetação.
Logo,
não se pode
esperar
igual
prosódia
ou
igual
sotaque de
falantes de
regiões e/ou
classes
sociais
diferentes.
Elomar,
mesmo
sem
conhecimento
especializado
em
questões
lingüístico-ortográficas, opta
por
representar a
fala sertânica
por uma
grafia
particular,
em
que
tenta
trazer-nos a
realidade da
fala
local. É o
sertanejo
falando-cantando.
Vê-se no
texto “Parcela”
a
representação
icônica da
fala
sertaneza (como
quer o
poeta),
que
nos pode
prestar
um
excelente
serviço
vernacular. É
possível
fazer
um
estudo
fonomórfico dos
vocábulos
apuráveis na
superfície do
texto
em
análise,
verificando os metaplasmos praticados
quer
pela
fala
local
real (a
sertânica)
quer pelas
invenções
poéticas do
artista.
Verificam-se
também
construções
neológicas de
vária
natureza. Umas
correntes na
fala
local, outras,
possivelmente inventadas
pelo
autor
quer
para
suprir
lacuna expressional
quer
para
romper
com o
instituído (marca
freqüente nas
produções
artísticas).
Vejamos algumas
mostras dessas
particularidades.
2.
Considerações
sobre o
substantivo-título:
Parcela.
O texto-objeto deste
estudo
pareceu-me
muito
oportuno
desde o
título:
Parcela.
Pois,
antes de
identificar
certo
tipo
de
composição
musical,
indicar
parte,
porção,
pedaço, etc. (Não
podemos
nos
esquecer de
que
cada
manifestação
dialetal é
também
parcela
das possibilidades de uma
língua.)
Observe-se o
que dizem os
dicionários:
parcela
n
substantivo
feminino
1
pequena
parte de
alguma
coisa;
fração,
fragmento;
(...) 5
Rubrica:
versificação.
Regionalismo:
Brasil.
estrofe da
poesia
popular,
típica dos
desafios,
que pode
ter
oito
ou
dez
versos
(parcela-de-oito e parcela-de-dez), ger. de
cinco
sílabas (ditos
carretilha)
{Houaiss, s.u.}
parcela
[Do fr. parcelle < lat vulg. *particella, dim. de
pars,
partis, 'parte'.]
S. f. 1.
Pequena
parte;
fração,
fragmento.
(...) 3. Bras. Liter. Pop. V.
carretilha
(4).
carretilha.
Liter. Pop. Bras.
Décima de
redondilhas
menores
rimadas na
mesma
disposição da
décima
clássica;
miudinha,
parcela,
parcela-de-dez.{Aurélio, s.u.}
Um e
outro
dicionários
apresentam
parcela
com a
significação
primeira de
parte
de alguma
coisa;
fração,
fragmento.
Inclusive a
noção voltada
para a
literatura (um
brasileirismo)
pode
ser
lida
como
parte do
universo
literário
nacional.
Contudo, elegi
a
letra
por
sua
beleza
lingüístico-poético-cultural e
pela
oportunidade
de
discutir
um
título
constituído
por
um
substantivo da
língua
portuguesa (léxico
geral)
que,
sem
adornos
especiais,
denota a
malemolência
semântica do
vernáculo.
Assim,
Parcela serve
como
designativo da
página musical
em
questão, serve
como
documento de
uma
parte
específica (a
sertaneza – sic) de Elomar e
ainda serve
como recolho
de uma
mostra
significativa
da
riqueza da
língua
portuguesa.
3.
Análise dos
fatos
lingüísticos
apuráveis na
superfície do
texto “Parcela”
Como se sabe,
a variação da
língua é
responsável
por
sua
evolução,
por
sua
transformação. Os
falantes,
distribuídos no
tempo, no
espaço
físico, no
espaço
social, nas
profissões e
ofícios,
enfim,
divididos
em
grupos
distintos,
realizam o
sistema
lingüístico
peculiarmente,
por
meio dos
dialetos
ou
falares. De
suas
particularidades
de atualização
vão resultando
formas
que se mostram
estranhas,
extravagantes,
difíceis de
entender,
para
falantes
alheios
àqueles
usos. È
patente
que,
entre os
fatores de
alteração
fonética,
destacam-se a
imperfeição das
imagens
auditivas e a
insuficiência
ou
dificuldade
fisiológica
para
reproduzir o
som
ouvido,
a acomodação da
pronúncia,
sob
a
ação das
leis
fonéticas,
atua
determinantemente
na
configuração do
léxico
(SIMÕES, 2002).
Levando-se
em
consideração
que o
texto de
Elomar se enquadra
nos
usos
lingüísticos
especiais (usos
não-padrão),
trago aos
leitores
um
levantamento
crítico dos
fatos
lingüísticos
presentes
em “Parcela”.
Focalizarei a
seleção de
unidades
léxicas (campos
e
domínios
semânticos
prestigiados no
texto),
levando
em
conta
não
só
sua
estruturação mórfica,
mas
sobretudo
seu
valor icônico,
por
meio do
qual o
poeta sugere uma
imagem do
sertão
nordestino. O
suporte
fonêmico pancrônico é uma
pista da
leitura a
ser utilizada. E,
como
último
objetivo,
sublinharei a
relevância do
domínio
lingüístico e
do
conhecimento
enciclopédico
na
produção de
um
texto.
Tais
fatos podem
ser,
em
princípio,
divididos
em
três
grupos: a)
históricos; b)
dialetais e c)
criação
poética. A
partir desta classificação
tento
discutir
conjuntos de
formas da
língua
atualizadas no
texto de
Elomar,
que propiciam
um
estudo
bastante
alargado de
fatos da
história do
homem e da
língua
atinentes à
dinâmica
lexical.
3.1. Dos
fatos
históricos
3.1.1. No
domínio
enciclopédico
Como
todo
texto
literário, o
poema
em
estudo é
estímulo
para o enriquecimento do
cabedal de
informações
enciclopédicas.
Por
isso, é
mister
que o
estudante seja
provocado a
buscar a
literatura
como
um dos
caminhos
produtivos da
aquisição da
língua e da
cultura a
ela
referente.
Ainda
que a
essência
humana seja a
mesma
independentemente
de
raça
ou
nacionalidade,
a
sua
produção cultural se
constrói de
modo
diverso, e
isto se
reflete nas
línguas
que
identificam
cada
nacionalidade
ou
cada
grupo
humano.
Este
estudo,
que se ocupa
da
variante sertânica
documentada no
texto de
Elomar,
visa
não
só a
desenvolver uma
análise
pormenorizada das
formas da
língua
(incluindo as
diferenciações
gráficas) numa
visão
pancrônica (com
abonações históricas),
mas
também
apontar o
valor
enciclopédico
dos
textos
literários.
Estes,
além de
mostrarem a
língua
como
um
acontecimento
de
beleza e de
prazer, trazem
em
suas
formas as
informações de
fatos e
fenômenos
que devem
ser
compor a
moldura de
formação do
homem
integral,
para
que
este adquira
referências
para a
compreensão de
seu
papel na
sociedade, no
mundo.
Elomar é
um
erudito.
Sua
formação
leitora se fundou
nos
clássicos da
literatura
universal.
Por
isso
sua
produção
poética traz
um
conjunto de
informações
sócio-históricas de
alta
relevância.
Homem
religioso,
Elomar presentifica
mitos
judaico-cristãos
por
intermédio da
seleção
vocabular
por
ele praticada
na
elaboração de
seus
textos. O
texto
em
análise
apresenta-se eivado de
fundamentos
judaicos
cristãos.
Em
Parcela,
vê-se a
narração
poética do
desdouro do
homem do
sertão,
obrigado
pela
seca a
migrar
em
busca de
condições de
vida.
Todavia,
este
homem sofrido
se
mostra regido
por
certo
determinismo
fatalista,
entregando-se ao
cumprimento de
profecias
religiosas.
Ele
parte de
sua
terra, sabendo
que o
seu
destino é a
morte.
Contudo,
por
sua
religiosidade, o
seu
sofrer é
um
verdadeiro
corban (cf. Levítico, 27. In A
Bíblia
Sagrada.):
o nordestino flagelado configura-se
como
um
ser
resignado
que
vê
toda a
desgraça
em
que vive
como
um
sacrifício
em
oferta a
Deus.
Ao
narrar poeticamente a
trajetória
desgraçada do
homem do
sertão, o
poeta retoma
termos e
expressões
bíblicos
que dão ao
seu
texto uma
moldura
informativa de
alta
relevância.
É interessante
observar
que o
contato
com a
religião e
suas
práticas é a
única
forma de
aquisição do
padrão
formal da
língua, uma
vez
que o
homem
caipira
dificilmente tem
acesso à
escola.
Por
isso, as
formas
mais
distanciadas da
fala
regional
são aquelas
que
representam a
fala da
Igreja,
adquirida nas
missas e
cultos.
Observem-se as
expressões:
Quadro 1 –
Fatos
históricos –
Domínio
enciclopédico
expressão
textual |
comentário |
Abonações |
c’a
foice
armada /do
Anjo da
Morte
|
A
palavra
foice
(lat. falce) denomina
instrumento
curso
para
ceifar,
segar.
No
sentido
figurado,
é
símbolo
do
tempo.
Seguido da
expressão
Anjo
da
Morte,
faz uma
remissão
ao
Apocalipse
(Novo
testamento),
livro
das
Revelações
Divinas
feitas
a João
Evangelista
(SÉGUIER,
1964:
s.v.).
Ali
estaria traçado o
destino
dos
homens
e do
mundo.
|
|
vai-num-torna = |
|
|
a
fome a
peste a
morte e a dô |
Alusão
aos
quatro
cavaleiros
do
Apocalipse:
a
guerra,
a
fome,
a
peste
e a
morte. |
|
o
Rei da
Guerra / o
Rei da
Glora |
expressões
que
designam o
Senhor
Deus
Todo-poderoso
|
|
muitos
mili
anjo in
grande
preparação
/
nos
alto
céus / vêm
vino
sobre essa
Terra /
pra
julgá os homes
maus / qui
ofendêro a
Deus |
Trecho
que
alude ao
capítulo
d’Os
anjos e os
sete
trovões. |
Vi
outro
anjo
forte,
que
descia do
céu,
vestido
de uma
nuvem;
e,
por
cima
de
sua
cabeça
estava o
arco
celeste,
e o
seu
rosto
era
como
o
sol,
e os
seus
pés
como
colunas
de
fogo.
(A
BÍBLIA
Sagrada.
Apocalipse,
10, 1) |
oço o
toco dos
Rubin trombetêro / atraiz dos
véus |
Rubin é uma
forma aferesada de
Querubim
que, na
hierarquia
celeste (Pseo,
206-207),
pertence à
ordem
superior
dos
anjos e
sentam-se
imediatamente
abaixo dos
serafins.
Seguindo a
temática
bíblica, o
poeta
alude
então ao
episódio
da
abertura
do
sétimo
selo. Os
sete
anjos e as
sete
trombetas.
A
expressão
atraiz dos
véus
evoca
vestido
em
uma
nuvem
que
aparece no
versículo
transcrito
em
diálogo
com o
item
anterior. |
E vi os
sete
anjos,
que
estavam
diante de
Deus, e
forma-lhes dadas
sete
trombetas.
(A
BÍBLIA
Sagrada.
Apocalipse,
8,2)
Que sae
com trouão
do
cobre
ardente.
(Lus. X, 28)
Apud
Cunha,
1980, 215. |
Ao
lançar
mão de
formas
dialetais,
Elomar
registra
formas
que contêm
marcas da
história da
língua, de
sua
evolução.
Vejam-se:
Quadro
2 –
Fatos
históricos
–
Domínio
lexical
Fato
lingüístico
|
Exemplos
textuais |
Comentários
e abonações |
Monotongação
|
|
|
A monotongação é
resultado
de uma
tendência
fonética
histórica
de apagamento da
semivogal
nos
ditongos
crescentes
ou
decrescentes.
Tal
tendência
já
era
encontradiça
no
latim
vulgar. |
iscapô ( = escapou); istralô (=
estalou); cavêra (=
caveira);
coro (=
couro); trombetêro (=
trombeteiro);
ôço (= ouço);
contas
(quantas) |
A
fala
popular
também
faz
uso
sistemático
da monotongação
em
formas
como:
dinheiro
(dinhêro),
cadeira
(cadêra),
queijo
(quêjo),
roupa
(rôpa), etc. |
ofendêro – as
terminações
verbais
–one, -on e –unt ,
em
português
moderno se
converteram
em –ão,
escrito
–am,
quando
desinência
átona.
|
No
português
arcaico,
havia a
forma –om
que
corresponderia, na
fala, à
realização
/aWN/;
passando
pela
monotongação e desnasalação resulta
em /o/,
grafado –o-. |
glora |
Coexiste a
forma guilora
em
que se dá
a epêntese do /i/
junto
com a
monotongação do /Ja/
em /a/. |
tomem (=
também)
contr. de
tão
bem; f.hist.
sXIII tanben, sXIV tã be,
sXV tambem, sXV tãobem.
{Houaiss, s.u.}
|
Esta
evolução
sugere
sua
continuidade na
fala
caipira (e
mesmo na
var.
popular)
para tomem,
resultado
da monotongação e desnasalação de –ão
em –o e da
síncope do –b-,
motivados
pela
facilitação articulatória. |
Conservação de
forma de
transição
do
latim ao
português
|
|
|
Nos
dialetos
nacionais
se entremeiam
peculiaridades
do
português
antigo
que
hoje,
muito
esporadicamente aparecem no
uso
lusitano (SILVEIRA,
1983: 287, § 568). |
lũa < luna; in
>
em;
intonce < entonces (do
castelhano)
> enton (arc.) |
Da
Lũa os
claros
rayos rutilauão. I, 58); Da
Lũa, trazem,
ramos de
Palmeira,
(II, 93);
Cinco
vezes a
Lũa se escondêra (III,
59); Os
cornos
ajuntou da
ebúrnea
lũa (IX, 48 )– Os
Lusíadas
(CUNHA,
1980: 124) |
mais (=
mas)
–
conjunção
adversativa,
do lat. magis; |
Hoje se
escreve
mas,
porém os
brasileiros
ainda a
pronunciamos, na
língua
corrente,
mais.(Sousa
da
Silveira
(id.
ib.), 1983: 107,[21]). |
mili –
mais uma
recuperação
de
forma
antiga:
é originado
por
mille
> mili >
mil |
|
homes – Documenta-se
sobre a
forma
homem:
lat. hòmo,ìnis
'homem,
indivíduo,
ser
humano', a
partir do ac.
homìne(m);
ver homin(i)-;
f.hist. 1152 omem, 1211
homem,
1258 e 1262 pl. omees, 1265 pl. homees,
sXIV homees/homees/omeem.
{Houaiss, s.u.}.
|
Vê-se na
grafia
homes uma
retomada
da
forma de
transição
datada de
1265,
contudo
sem o
alongamento
da
vogal –e-
representada
então
por –ee-.
Forão
por
estes
homẽs
que
passauão, (I, 78);
Que do
sepulchro os homẽs desenterra, (III, 118); e
mais
dez
ocorrências
em Os
Lusíadas
da
forma
homẽs.
(Cunha,
1980: 104) |
fregela –
denota
tendência
evolutiva
da
língua: o
grupo
consonantal fl-
lat. evolui
para ch-
ou
para fr;
ainda
que a
forma
padrão
atual seja
flagela,
é
possível
encontrar no
dialeto
caipira
muitos
vestígios
do
estado
arcaico do
português.
|
A
forma
flagelar
tem
seu
registro na
língua
datado de
1580, na
Lírica.
{Houaiss, s.u.}
|
múltipla
grafia
|
|
|
Imprecisão
de
grafia
decorrente da variação
lingüística,
já
que
quem
escrevia
tinha a
intenção
de
registrar a
fala. |
Vomo/ vamo;
que
/ qui; faix / voiz / atraiz; abaldonano – baldonei;
em
/ in; |
Em faix,
tem-se
ainda uma
marcação
de
pronúncia
palatalizada do travador /S/;
enquanto
em
voiz/ atraiz, tem-se a
marcação
de
pronúncia
sibilante
sonora
/S/,
talvez
por
requinte
estilístico,
em
decorrência
da
proximidade
com
formas da
língua
mais
freqüentes
no
texto
formal
religioso. |
epêntese
|
|
|
Metaplasmo de
aumento
que
consiste na
evolução
de
um
fonema no
interior
do
vocábulo. |
faix / voiz / atraiz |
Alargamos
em
ditongo,
por
meio da
adjunção de –I, as
vogais
tônicas
finais
seguidas
de –z
ou –s:
capaz
(capais),
pés (péis)
(…),
bem
como a
terminação
–ãs (ãis), alemãs (alemãis), etc.(Sousa da
Silveira:
1983, 281 §551). |
|
istralô < estalou |
Assim
como
em
estrela
(< stella, lat.)
que teria
sido motivada
por
analogia
com a
forma
astro,
ter-se-ia
em
istralô uma
analogia
com
quebrou.
Em
ambos os
casos, a
resultante
é o
surgimento
de
grupo
consonantal
cujo
segundo
elemento é
a vibrante representada
por –r-.
Atualmente
tem-se justificado o
aparecimento
do –r-
em
formas
como esta
como
um
fenômeno
fonético
comum,
depois de
–st-:
listra (<
lista),
mastro
(<
mastro),
registro (<
registo), etc. |
Anaptixe
ou
suarabácti
|
|
|
Epêntese
especial
que
consiste no desfazimento de uma
dificuldade
de
pronúncia
decorrente de
grupo
consonantal
ou
travamento silábico. |
irirmão (<
irmão) –
redobro da
sílaba
inicial,
provavelmente
por
motivação articulatória derivada da
tendência
a
apoiar a
consoante
numa
base
vocálica,
desfazendo o travamento
inicialmente:
ir > iri( r).
|
No Brasil, ouve-se no
dialeto
caipira
Silivério, Silivana,
pronúncia
ocorrente
também na
linguagem
popular,
inclusive
em
Portugal.(cf. Coutinho: 1974, 147, § 224)
Diz-se
que o
falante do
tupi
também
acrescentava uma
vogal
para
desfazer
grupo
consonantal.
como
em
curuçá (neol.
tupi
curu'sa < port.
cruz)
{Houaiss, s.u.} |
Síncope
|
|
|
Supressão de
fonema no
interior
do
vocábulo; |
pro (=
para o);
pra (=
para)
|
|
Áferese:
|
|
|
Supressão de
fonema no
início do
vocábulo; |
Rubin
>
querubim;
te >
até |
|
metafonia
|
|
|
Influência da
vogal
tônica
sobre a da
sílaba
anterior |
vomo |
|
elisão
condicionada
|
|
|
Desaparecimento
de
vogal
final
quando o
vocábulo
seguinte
começa
por
vogal. |
num (<
em
um)
→
elisão
ou
|
|
Vocalização
das
palatais
|
|
|
Mutação
fonética
que
consiste na
aproximação
articulatória
entre
um
fonema
consonantal e
um
vocálico.
Via de
regra,
dá-se no
contato
com a
vogal
palatal
/i/. |
chucaiá
→
( <
chocalhar)
palatização
vocálica
como
recuperação
de
forma
antiga |
A
forma de
que
derivaria
chocalhar
é
chocalho
(choca
+ -alho).
Por
sua
vez, o
grupo lh-
teria sido
resultado
da
evolução
do
grupo ly-
(SILVEIRA,
op. cit) /lJ/,
conforme
filyu >
filho,
palea > *palia >
palha.
Portanto,
a
forma chucaiá,
denota a
recuperação
do /J/
da
forma
latina /lJ/. |
falso
aportuguesamento
|
|
|
Recusa de
padrões
aparentemente
alheios ao
do
português. |
toco []
>
toque |
A
semelhança do
tema
em -e
com
galicismos,
como
nuance,
vedete, etc.)
motiva a
recusa de
vocábulos
com
este
tema e
promove a
adaptação
ao
padrão
geral (temas
em –a e
–o) da
fala
popular. |
Apócope
|
|
|
Supressão de
fonema no
final do
vocábulo |
istei (=
esteios) –
documenta
a
prevalência
do
modelo
paroxítono (grave)
da
língua
portuguesa e o
conseqüente
apagamento da
sílaba
átona
final.
|
Neste
caso o
apagamento é acentuado
pela
sistemática
recusa da
marcação
redundante
do
plural
em
sintagmas
nominais
como os
istei (< os
esteios). |
Quadro 3 –
Fatos
dialetais
Fato
lingüístico |
Exemplos
textuais |
Comentário e
abonações |
Exclusão
da
marcação
redundante
do
plural:
|
|
|
O
uso
popular
e o
caipira
tendem a
reduzir a
marcação
do
plural.
Para
tais
falantes,
basta
marcar uma
forma,
geralmente
o
determinante. |
dos
ano; dos
camin (= dos
caminhos);
as patra (= as
pátrias);
contas
lũa (= quantas
luas);
dos
coro (=
dos
couros);
os
outro ;
os istei (os
esteios);
c’as voiz (=
com as
vozes);
dos truvão;
muitos
mili (=
muitos
mil);
nos
alto
céus |
1. A
marcação
da
flexão
nos
sintagmas
segundo
a
norma
padrão
se faz
redundante.
Segundo
a
regra
geral,
em
um SN,
determinante(s)
e
determinado
devem
estar no
mesmo
gênero e
número.
2. Há
um
uso
específico
para
formas
do
plural
de
substantivos
como
trevas,
céus,
ares,
cuja
significação
não é a
de
número
(os
nomes
designam
coisas
incontáveis),
mas de
amplitude.
(cf.
Câmara (CÂMARA
JR., 1973: 82.) |
|
EXCEÇÕES:
dos
véus /
nos
alto
céus /
homes
maus/
|
Nestes
sintagmas
o
plural
se realiza no
modelo
padrão;
é
ícone da
retomada
da
fala
formal,
imitando o
texto
bíblico,
ouvido
nos
ofícios
litúrgicos. |
Redução do –ndo
do
gerúndio
|
|
|
Síncope do /d/
por
força da
nasal
que
evolui da
condição
de travador
para a de
inicial
de silaba
complexa
aberta,
recuperando o
padrão
geral:
cV (consoante
+
vogal). |
prissiguino; ritirano; abaldonano; vino |
Redução da
marca
morfêmica do
gerúndio
–nd
para n- (escreveno
por
escrevendo);
(MATOS
E SILVA, 1997: 57) |
Opção
pela
variante –im
|
|
|
Coexistem historicamente no
português as
formas
–inho e –im oriundas da
forma
latina
–inu. |
camin |
Nos
usos
caipira
e
regional
nordestino prevalece a
forma –im. |
Perda do
travador
consonantal vibrante
velar /R/
|
|
|
A
atuação
da
lei
do
menor
esforço
(cf. COUTINHO, 1974: 173,§ 191) promove a
queda de
fonema
complicador
da
pronúncia.
|
dá - isperá – passá – chucaiá – julga
→formas
verbais |
Os
usos
popular
e
caipira
tendem a
enfatizar a
tonicidade da
vogal,
apagando o travador vibrante alveolar /r/. |
dô (=
dor);
lugá (=
lugar)
→substantivos |
Registro
gráfico
da neutralização das
vogais
média e
alta
|
|
|
O
uso
não
padrão
apresenta a
tendência
à
anulação
da
oposição
fonológica
entre /E/
e /i/
bem
como
entre //
e /u/,
em
posição
pretônica, realizando-se
um
arquifonema /I/
ou /u/,
conforme
o
caso. |
1. pru - cum – chucaiá - truvão
2. qui - isperá - ritirano – ritirante -
ritirano – prissiguino |
|
Lexicalização
|
|
|
Processo de
produção
involuntário
de
criação
de
unidades
novas
pela
coalescência de
palavras
habitualmente
reunidas no
discurso,
conforme
(ASSUNÇÃO
JR., 1986: 129).
Tal
processo pressupõe
necessariamente uma
construção
sintática
que
lhe
serve de
base. A
documentação
do
fenômeno se dá
diante
da coexistência no
mesmo
estágio
da
língua
da
forma
nova
com o
sintagma
que
lhe dera
origem.
|
vai-num-torna |
A
expressão
vai-num-torna,
presente no
refrão
do
texto
em
estudo,
demonstra uma lexicalização
complexa
onde
formas
verbais
se combinam
com o
advérbio
não
– grafado num – e geram uma
forma
substantiva
correspondente
à
noção de
morte,
fim. |
Quadro 4 –
Criação
poética
Neologismo
prosódico:
|
|
|
Alteração da
posição do
acento
tônico,
criando uma
forma
paralela
para o
vocábulo
em
benefício
da
rima. |
ispirito
(=
espírito) |
Escrita
sem
acento
gráfico
para
indicar
mudança
de
prosódia
por
necessidade
rítmica. |
3.3. A
propósito da iconicidade
das
formas
Observados o
levantamento e o
comentário das
formas
lingüísticas
do
texto,
torna-se
possível
perceber
que o
estudo dos
textos
não se resume
a uma classificação
gramatical dos
termos de
cada
enunciado. Ao
texto subjazem
conteúdos
socioculturais vastíssimos
que devem
ser considerados
durante e
leitura,
pois deles depende a
construção do
sentido
textual.
Por
isso, venho
perseguindo
um
raciocínio
mais
amplo
que o
gramatical, o
semiótico, focalizando os
signos
que se
combinam na
superfície dos
textos
como
produto de
escolhas
pessoais
orientadas
por
dados
epistemológicos de
alta
relevância.
Isto
porque a
produção sígnica –
antes da
textual – é
resultado de
operações
mentais
complexas
que se fazem
representar
nos
textos
em
níveis
diversos.
São
ícones,
índices e
símbolos
que se
manifestam nas
seleções
lexicais,
por
exemplo.
Em se tratando
de
texto
que traz à
cena a
representação
particular de
uma
paisagem
conhecida
por
estereótipos,
cumpre
que o
autor eleja
formas
bastante
significativas dos
traços
que
deseja
ressaltar,
caso
contrário, a
imagem
estereotipada abafará o
quadro
pretendido, e a
interpretação
do
texto será
empobrecida.
Para
que se
construa
um
texto “com
cores
fortes” é
preciso
produzir iconicidade no
mapeamento dos
signos na
superfície
textual.
Isto decorrerá
da
seleção e
combinação
estratégicas de
unidades
léxicas
que
funcionarão,
em
princípio,
em
três
níveis: a)
icônico – produzindo
imagens no
plano da
captação; b) indicial – gerando
pistas
indutivas no
plano da
reflexão; c)
simbólico – produzindo
generalizações
metafóricas
ou
metonímicas, no
plano da
sistematização.
Na
presente
análise,
apontarei
apenas
marcas
lexicais
icônicas,
pois esta explnação
já se
mostra
extensa
em
relação à
sua
natureza: uma
comunicação
acadêmica de
15
minutos.
Então, as
unidades
lexicais
consideradas
ícones
são:
a)
da religiosidade:
Deus
/
Anjo
da
Morte /
vai-num-torna / fregela /
fome
/
peste
/
morte
/ dô /
céu
istralô / voiz dos truvão /
Rei
da
Guerra
/
Rei
da Glora / mili
anjo
/
alto
céus
/
Terra / Rubin
trombetêro /
véus
b)
da sertanidade:
sorte
/
corte dos camin
/ ritirano /
sertão
/
chuva
/
lũa / ispirito
errante
/ cavêra ritirante /
coro
/
fome
/
peste
/
morte
/ dô / irirmão
Observe-se
que
fome
/
peste
/
morte / dô
são
conjunto
interseção
entre os
dois
eixos
temáticos,
promovendo
assim a
coesão
textual e
garantindo a
orientação do
leitor
até a
mensagem
básica do
texto: o
retirante e as
mazelas do
seu
penar na
direção da
vida
eterna.
A
escolha dos
textos de
Elomar
pela
abundância de
fatos
lingüísticos
depreensíveis na
superfície
textual (para
além das
questões
gráficas),
materializa
fatos fônicos,
mórficos,
sintáticos,
semânticos e
estilísticos e propicia
um
passeio
produtivo
pelo
vernáculo.
Fatos
que ficam
restritos a
comentários de
natureza
diacrônica vêm
à
tona num
texto
contemporâneo,
demonstrando
que a
mutabilidade é
um
fato
constante nas
línguas
vivas.
Veja-se o
excerto:
Não há, afirma
Rui Barbosa,
língua
definitiva e
inalteravelmente formada. Todas se formam, reformam e transformam continuamente.
Quem o
não sabe?
Que
homem de
medianas
letras
hoje o
ignoraria? (In Barbosa, Rui, "Réplica".
Imprensa
Nacional,
Rio, 1904.)
Reações às
mudanças
lingüísticas
que ocorrem
quer
por
força da
dialetação
quer
por
entrada de
novas
formas (neologismos,
empréstimos,
etc.)
não têm
cabimento,
pois a
língua é
símbolo da
trajetória
humana
pela
vida e
pela
cultura.
Logo, a
língua
retrata as
mutações
provocadas
pelo
espírito dos
tempos.
Creio
ser
possível
concluir
este
ensaio,
asseverando a
qualidade
textual da
página
analisada, e supondo
ter podido
sugerir uma
forma a
um
só
tempo
rica e
compacta de
estudarem-se
pontos
complexos da
língua
portuguesa, aliando sincrônico e
diacrônico na
tentativa de uma
análise
universalizante do
fenômeno
lingüístico.
Ao
lado disso,
foi
possível
fazer algumas
incursões
históricas
que demonstram
a
igual
importância
dos
domínios
lingüístico e
enciclopédico
para a
produção
textual.
BIBLIOGRAFIA
ASSUNÇÃO Jr. Antônio
Pio de.
Dinâmica
léxica portuguesa.
Rio de
Janeiro:
Presença, 1986.
BECHARA, Evanildo.
Ensino da
gramática.
Opressão?
Liberdade?
São Paulo: Ática, 1985.
Bíblia
Sagrada (A). Ed. rev. e corr..
Brasília:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
CÂMARA Jr. J. M. da.
Estrutura da
língua portuguesa. 4ª ed. Petrópolis:
Vozes.
COUTINHO, Ismael de
Lima.
Gramática
histórica. 7ª ed.
Rio de
Janeiro:
Livraria
Acadêmica, 1974.
CUNHA, Antonio Geraldo da.
Índice
analítico do
vocabulário de Os
Lusíadas. 2a ed.
Rio de
Janeiro:
Presença/INL-MEC, 1980.
HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles.
Dicionário
Eletrônico Houaiss.
Versão
digital.
Rio de
Janeiro:
Objetiva, 2001.
MALMBERG, Bertil. A
língua e o
homem.
São Paulo:
Nórdica; Duas
Cidades, 1976.
MATTOS E SILVA,
Rosa Virgínia.
Contradições no
ensino do
português.
São Paulo:
Contexto, 1997.
SÉGUIER, Jayme (dir.)
Dicionário
Prático Ilustrado.
Porto, Lello &
Irmãos, 1964.
SILVA, Ademar da. Alfabetização: a
escrita
espontânea.
São Paulo:
Contexto, 1991.
SIMÕES, Darcilia.
Fonologia
em
nova
chave. Texto-base
para a Especialização
em
Língua Portuguesa do
Instituto de
Letras – UERJ, 2002.
SILVEIRA, Sousa da.
Lições de
Português, 9ª ed.
Rio de
Janeiro:
Presença/Pró
Memória/INL/UFF, 1983.
Esta
tendência
não se
reduz ao
gerúndio,
ocorre
também
em outras
classes.
Vemos
em outras
letras do
mesmo
poeta:
Foi cuano ia atravessano a
rua
(In “Chula
no
terreiro”);
isso
se deu cuano
moço
(In “Cantiga
do
Estradar”);
Cuano a
amada
e esperada
trovoada
chega
(In “Campo
Branco”),
etc.