Parcela da língua sertaneza - de Elomar Figueira de Melo

Simões, D.M.P. (UERJ)

 

0. Palavras iniciais

Estudar e dominar uma língua são ações que deveriam ser praticadas desde a mais tenra idade como um exercício de prazer. Logo nos primeiros contatos com a língua nacional – orientados pelos familiares – os falantes deveriam ser sensibilizados sobre a importância e a beleza do vernáculo. Pode parecer extravagante tal idéia, uma vez que os infantes não estariam – em tese disponíveis e aptos para informações desta natureza, todavia, não estou falando de instruções sistemáticas ou sistematizadas (pois se trata da fase de transmissão da língua), mas de uma prática cotidiana estimulante do uso da língua observado como instrumento de realização pessoal. Isto porque, sobretudo na infância, as interações pré-verbais e verbais destinam-se, a princípio, ao suprimento de necessidades primárias. Entretanto, o prazer independentemente de sua origem ativa mecanismos cerebrais que se correlacionam com os produzidos na área produtora de linguagens. Assim sendo, é perfeitamente possível realizar interações verbais produtivas, proficientes e prazerosas desde a infância, com o objetivo de gerar o gosto pela aquisição da língua, em especial, como meio de realização pessoal.

Veja-se o excerto a seguir:

Tem sido contado muitas vezes (até pela própria protagonista) como Helen Keller - a famosa surda-muda e cega norte-americana - estabeleceu contato, aos sete anos, pela primeira vez, com a língua, uma língua de sinais que soletrava na palma da mão. Helen considerava esse dia como o de um autêntico renascimento. Lembrava a vida anterior a esse momento apenas de maneira muito vaga e incompleta. Tinha sido um simples organismo vegetativo. Graças à língua, adquiriu rapidamente o acesso a um mundo rico e passou a dispor da capacidade de recordar, sonhar, fantasiar. E adquiriu também, pela primeira vez, a capacidade de pensar e de organizar idéias (Malmberg, 1976: 82-3).

Como partilho desta crença língua como forma de apreensão do mundo e completude pessoal – atravesso, desbravo incansavelmente o território das metodologias de ensino para tentar descobrir/aperfeiçoar estratégias de estimulação dos potenciais lingüístico-gramaticais dos falantes no sentido de viabilizar-lhes o domínio efetivo do vernáculo, em sua variedade.

Nessa travessia, verifiquei que a variante sertânica presente em autores como Guimarães Rosa (narrativa) e Elomar Figueira Mello (poesia-musical) trazia uma contribuição lingüístico-cultural incomensurável e que, a despeito do volume de trabalhos de crítica literária realizados sobre a obra rosiana, a investigação vernacular não se mostra tão abundante. Avançando na pesquisa, verifiquei que a obra elomariana não tinha sido ainda objeto de estudo vernacular. Sua composição fora estudada por historiadores, sociólogos e antropólogos, todavia, talvez por desconhecimento da obra, os lingüistas ainda não se haviam pronunciado a respeito da produção do virtuoso compositor baiano.

Na segunda metade de 1980, iniciei meus estudos de violão clássico e nesta oportunidade conheci, entre outros, Elomar Figueira Mello que, além de violonista virtuoso, é poeta. E dos melhores! Elomar (como é conhecido) é um artista nacional que não teve ainda uma divulgação à altura de sua obra. Reconhecido internacionalmente (tem disco gravado na Alemanha, por exemplo), não atravessa os espaços da “intelectualidade referendada pelos títulos acadêmicos” (talvez em função da temática por ele eleita: o cantar de sua terra e sua gente in natura).

Arquiteto por formação e músico erudito por talento e opção, Elomar nos tem brindado com um acervo poético-musical que precisa ser conhecido pelos apreciadores da poesia, da música e, principalmente, da língua portuguesa.

Compositor, violeiro, dono de uma voz privilegiada, Elomar, mistura em suas músicas a tradição da música sertaneja à tradição lírica européia. (...)

Defensor ferrenho do combativo povo sertanejo, se alinha a uma tradição literária que remonta a João Guimarães Rosa e José Lins do Rego. Em sua postura purista se assemelha a Ariano Suassuna, ferrenho defensor da cultura de raiz. (Paula Chagas Jornal da Tarde Apud INTERNET)

Suas composições poéticas dão-nos mostras de amplo domínio vernáculo: do sertânico local e original (ele é um criador de bodes do sertão baiano) ao erudito e histórico português. Elomar é um poliglota em sua própria língua (cf. Bechara, 1985). Seus textos, ora desenham cenários do sertão, da caatinga; ora fazem renascer cenas medievais ainda que retocadas pela experiência sincrônica imediata. Esta vertente nos leva a revisitar o bucolismo e a pureza romântico-religiosa de antanho.

A composição elomariana abarca cantorias sertanezas[1] (sic), cantigas à moda medieval, em meio a uma vastíssima produção lírica: óperas, antífonas, concertos, solos para violão, etc.

Nessa moldura artística, Elomar nos oferta um corpus lingüístico muito especial, recolhido diretamente (por experiência vivencial – ele continua criando bodes nas barragens do Rio Gavião - BA) e construído artesanalmente (retomando formas dos clássicos portugueses e renovando a língua por meio da neologia, seja ela mórfica, semântica, fônica etc.).

Veja o que diz o poeta-compositor baiano:

Há no sertão um enorme manancial cultural que deve ser cantado, tocado e escrito. Muitos como João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa e José Lins do Rego fizeram isso na literatura. Eu sigo essa tradição com minha música e minhas óperas. (Entrevistado por Paula Chagas, especial para o JT Apud INTERNET)

Por isso, na busca de caminhos mais eficientes para o trabalho didático com a língua nacional, decidi enveredar pelos sertões medievalizantes de Elomar e analisar seus poemas musicais, para: a) demonstrar a capacidade artística do poeta roçaliano (sic) eleito; b) chamar a atenção de estudantes e pesquisadores para uma nova frente de trabalho no eixo da variação; c) apontar o dialeto sertânico como fonte de aquisição/ampliação do vernáculo; d) demonstrar a riqueza da análise pancrônica formas da língua, exercitando conhecimentos de vários níveis: fônico, mórfico, sintático, semântico; e) contribuir com o conhecimento da língua portuguesa e f) comprovar que formas bastante interessantes e produtivas de conhecer/aprender nossa língua.

Para ilustrar, passarei à análise semântico-semiótica do 3º Canto de Fantasia leiga para um rio seco[2] intitulado Parcela. A página eleita para análise traz a público a fala do retirante (de entre as Gerais e o Rio de Contas), cantando as mazelas do seu penar.

Nossa exposição será assim dividida: a) apresentação do texto-corpus; b) breve incursão no sistema gráfico do português; c) considerações sobre o substantivo-título: Parcela e d) análise dos fatos lingüísticos apuráveis na superfície do texto.

 

1. Apresentação do texto-corpus:

PARCELA

 

 

 

 

 

05

Vomo intonce cunsiguino

pru conta da sorte qui Deus

prissiguino a vida

topo in cada corte

dos camin c’a foice armada

do Anjo da Morte

a me isperá

refrão

 

 

 

 

pru vai-num-torna vamo ritirano

e abaldonano as patra do sertão

té a chuva torna cum passá dos ano

mais do vai-num-torna num se volta não

 

10

 

 

 

 

15

nem sei mais contas lũa

faix que baldonei nosso lugá

nada mais fregela

o ispirito errante da cavêra ritirante

dentro dos coro

a chucaiá

refrão

 

pru vai-num-torna vamo ritirano

e abaldonano as patra do sertão

té a chuva torna cum passá dos ano

mais do vai-num-torna num se volta não

 

20

 

 

 

 

25

 

 

 

 

30

 

 

 

 

35

a fome a peste a morte e a dô

tomem vem visita os outro irirmão

os qui dessa se iscapô

sucedeu no sertão

os istei do céu istralô

vem vino sem demora

c’as voiz dos truvão

o Rei da Guerra

o Rei da Glora

muitos mili anjo in grande preparação

nos alto céus

vêm vino sobre essa Terra

pra julgá os homes maus

qui ofendêro a Deus

oço o toco dos Rubin trombetêro

atraiz dos véus

refrão

 

 

 

pru vai-num-torna vamo ritirano

e abaldonano as patra do sertão

té a chuva torna cum passá dos ano

mais do vai-num-torna num se volta não

Como se pode ver, a página eleita para este estudo é um documento da fala sertaneja levado às últimas conseqüências pelo poeta, pois ele tentou registrá-la por meio de uma grafia representação escrita de uma palavra; escrita, transcrição (HOUAISS, 2001: s.v) – pretensamente fonética, o que nos faz recordar um estágio da grafia do português.

 

Breve incursão no sistema gráfico do português

A propósito de grafia, veja-se o que diz (COUTINHO, 1974: 72):

1. Período fonético. § 96. Coincide este período com a fase arcaica do idioma. O objetivo a que visavam os escritores ou copistas da época era facilitar a leitura, dando ao leitor uma impressão, tanto quanto possível exata, da língua falada. (...) Não havia um padrão uniforme na transcrição das palavras. às vezes, num documento, aparecem os mesmo vocábulos grafados de modo diferente. Para isso concorriam as diferenças regionais (...) O que, porém, não se pode negar é a tendência manifestamente fonética do sistema então em uso. Escrevia-se não para a vista, mas para o ouvido.

Observe-se que o excerto, informa de um estágio da escrita portuguesa em que havia grande preocupação com a variação dialetal (ainda que cientificamente isto seja descoberta muito posterior) e com a impressão auditiva resultante da leitura. Havia uma pretensão de representar iconicamente a fala.

Sabe-se que a convenção ortográfica teve origem numa observação de base política em relação à circulação da informação numa dada língua. A invenção da imprensa e a possibilidade de circulação documental do saber humano fortaleceram os argumentos que defendem a ortografia[3] sistema convencionado de transcrição verbal. A convenção ortográfica – em princípio instituída para solucionar as dificuldades decorrentes da variação dialetal (cf. SILVA, 1991: 16) – afastou-se das bases da escrita alfabética e instituiu uma forma fixa para cada palavra. Congelada a palavra, deu-se a desvinculação entre o que se fala e o que se escreve, sobretudo no que tange à dialetação. Logo, não se pode esperar igual prosódia ou igual sotaque de falantes de regiões e/ou classes sociais diferentes.

Elomar, mesmo sem conhecimento especializado em questões lingüístico-ortográficas, opta por representar a fala sertânica por uma grafia particular, em que tenta trazer-nos a realidade da fala local. É o sertanejo falando-cantando.

Vê-se no textoParcela a representação icônica da fala sertaneza (como quer o poeta), que nos pode prestar um excelente serviço vernacular. É possível fazer um estudo fonomórfico dos vocábulos apuráveis na superfície do texto em análise, verificando os metaplasmos praticados quer pela fala local real (a sertânica) quer pelas invenções poéticas do artista. Verificam-se também construções neológicas de vária natureza. Umas correntes na fala local, outras, possivelmente inventadas pelo autor quer para suprir lacuna expressional quer para romper com o instituído (marca freqüente nas produções artísticas).

Vejamos algumas mostras dessas particularidades.

 

2. Considerações sobre o substantivo-título: Parcela.

O texto-objeto deste estudo pareceu-me muito oportuno desde o título: Parcela. Pois, antes de identificar certo tipo de composição musical, indicar parte, porção, pedaço, etc. (Não podemos nos esquecer de que cada manifestação dialetal é também parcela das possibilidades de uma língua.)

Observe-se o que dizem os dicionários:

parcela n substantivo feminino

pequena parte de alguma coisa; fração, fragmento; (...) 5 Rubrica: versificação. Regionalismo: Brasil. estrofe da poesia popular, típica dos desafios, que pode ter oito ou dez versos (parcela-de-oito e parcela-de-dez), ger. de cinco sílabas (ditos carretilha) {Houaiss, s.u.}

parcela [Do fr. parcelle < lat vulg. *particella, dim. de pars, partis, 'parte'.] S. f. 1. Pequena parte; fração, fragmento. (...) 3. Bras. Liter. Pop. V. carretilha (4).

carretilha.               Liter. Pop. Bras. Décima de redondilhas menores rimadas na mesma disposição da décima clássica; miudinha, parcela, parcela-de-dez.{Aurélio, s.u.}

Um e outro dicionários apresentam parcela com a significação primeira de parte de alguma coisa; fração, fragmento. Inclusive a noção voltada para a literatura (um brasileirismo) pode ser lida como parte do universo literário nacional. Contudo, elegi a letra por sua beleza lingüístico-poético-cultural e pela oportunidade de discutir um título constituído por um substantivo da língua portuguesa (léxico geral) que, sem adornos especiais, denota a malemolência semântica do vernáculo. Assim, Parcela serve como designativo da página musical em questão, serve como documento de uma parte específica (a sertaneza – sic) de Elomar e ainda serve como recolho de uma mostra significativa da riqueza da língua portuguesa.

 

3. Análise dos fatos lingüísticos apuráveis na superfície do textoParcela

Como se sabe, a variação da língua é responsável por sua evolução, por sua transformação. Os falantes, distribuídos no tempo, no espaço físico, no espaço social, nas profissões e ofícios, enfim, divididos em grupos distintos, realizam o sistema lingüístico peculiarmente, por meio dos dialetos[4] ou falares. De suas particularidades de atualização vão resultando formas que se mostram estranhas, extravagantes, difíceis de entender, para falantes alheios àqueles usos. È patente que, entre os fatores de alteração fonética, destacam-se a imperfeição das imagens auditivas e a insuficiência ou dificuldade fisiológica para reproduzir o som ouvido, a acomodação da pronúncia, sob a ação das leis fonéticas, atua determinantemente na configuração do léxico (SIMÕES, 2002).

Levando-se em consideração que o texto de Elomar se enquadra nos usos lingüísticos especiais (usos não-padrão), trago aos leitores um levantamento crítico dos fatos lingüísticos presentes emParcela.

Focalizarei a seleção de unidades léxicas (campos e domínios semânticos prestigiados no texto), levando em conta não sua estruturação mórfica, mas sobretudo seu valor icônico, por meio do qual o poeta sugere uma imagem do sertão nordestino. O suporte fonêmico pancrônico é uma pista da leitura a ser utilizada. E, como último objetivo, sublinharei a relevância do domínio lingüístico e do conhecimento enciclopédico na produção de um texto.

Tais fatos podem ser, em princípio, divididos em três grupos: a) históricos; b) dialetais e c) criação poética. A partir desta classificação tento discutir conjuntos de formas da língua atualizadas no texto de Elomar, que propiciam um estudo bastante alargado de fatos da história do homem e da língua atinentes à dinâmica lexical.

 

3.1. Dos fatos históricos

3.1.1. No domínio enciclopédico

Como todo texto literário, o poema em estudo é estímulo para o enriquecimento do cabedal de informações enciclopédicas. Por isso, é mister que o estudante seja provocado a buscar a literatura como um dos caminhos produtivos da aquisição da língua e da cultura a ela referente. Ainda que a essência humana seja a mesma independentemente de raça ou nacionalidade, a sua produção cultural se constrói de modo diverso, e isto se reflete nas línguas que identificam cada nacionalidade ou cada grupo humano.

Este estudo, que se ocupa da variante sertânica documentada no texto de Elomar, visa não a desenvolver uma análise pormenorizada das formas da língua (incluindo as diferenciações gráficas) numa visão pancrônica (com abonações históricas), mas também apontar o valor enciclopédico dos textos literários. Estes, além de mostrarem a língua como um acontecimento de beleza e de prazer, trazem em suas formas as informações de fatos e fenômenos que devem ser compor a moldura de formação do homem integral, para que este adquira referências para a compreensão de seu papel na sociedade, no mundo.

Elomar é um erudito. Sua formação leitora se fundou nos clássicos da literatura universal. Por isso sua produção poética traz um conjunto de informações sócio-históricas de alta relevância. Homem religioso, Elomar presentifica mitos judaico-cristãos por intermédio da seleção vocabular por ele praticada na elaboração de seus textos. O texto em análise apresenta-se eivado de fundamentos judaicos cristãos.

Em Parcela, vê-se a narração poética do desdouro do homem do sertão, obrigado pela seca a migrar em busca de condições de vida. Todavia, este homem sofrido se mostra regido por certo determinismo fatalista, entregando-se ao cumprimento de profecias religiosas. Ele parte de sua terra, sabendo que o seu destino é a morte. Contudo, por sua religiosidade, o seu sofrer é um verdadeiro corban (cf. Levítico, 27. In A Bíblia Sagrada.): o nordestino flagelado configura-se como um ser resignado que toda a desgraça em que vive como um sacrifício em oferta a Deus.

Ao narrar poeticamente a trajetória desgraçada do homem do sertão, o poeta retoma termos e expressões bíblicos que dão ao seu texto uma moldura informativa de alta relevância.

É interessante observar que o contato com a religião e suas práticas é a única forma de aquisição do padrão formal da língua, uma vez que o homem caipira dificilmente tem acesso à escola. Por isso, as formas mais distanciadas da fala regional são aquelas que representam a fala da Igreja, adquirida nas missas e cultos.

Observem-se as expressões:


 

Quadro 1 – Fatos históricos Domínio enciclopédico

expressão textual

comentário

Abonações

c’a foice armada /do Anjo da Morte

A palavra foice (lat. falce) denomina instrumento curso para ceifar, segar. No sentido figurado, é símbolo do tempo. Seguido da expressão Anjo da Morte, faz uma remissão ao Apocalipse (Novo testamento), livro das Revelações Divinas feitas a João Evangelista (SÉGUIER, 1964: s.v.). Ali estaria traçado o destino dos homens e do mundo.

 

vai-num-torna =

 

 

a fome a peste a morte e a dô

Alusão aos quatro cavaleiros do Apocalipse: a guerra, a fome, a peste e a morte.

 

o Rei da Guerra / o Rei da Glora

expressões que designam o Senhor Deus Todo-poderoso

 

muitos mili anjo in grande preparação /

nos alto céus / vêm vino sobre essa Terra / pra julgá os homes maus / qui ofendêro a Deus

Trecho que alude ao capítulo d’Os anjos e os sete trovões.

Vi outro anjo forte, que descia do céu, vestido de uma nuvem; e, por cima de sua cabeça estava o arco celeste, e o seu rosto era como o sol, e os seus pés como colunas de fogo. (A BÍBLIA Sagrada. Apocalipse, 10, 1)

oço o toco dos Rubin trombetêro / atraiz dos véus

Rubin é uma forma aferesada de Querubim[5] que, na hierarquia celeste (Pseo, 206-207), pertence à ordem superior dos anjos e sentam-se imediatamente abaixo dos serafins.

Seguindo a temática bíblica, o poeta alude então ao episódio da abertura do sétimo selo. Os sete anjos e as sete trombetas.

A expressão atraiz dos véus evoca vestido em uma nuvem que aparece no versículo transcrito em diálogo com o item anterior.

E vi os sete anjos, que estavam diante de Deus, e forma-lhes dadas sete trombetas. (A BÍBLIA Sagrada. Apocalipse, 8,2)

 

Que sae com trouão do cobre ardente. (Lus. X, 28) Apud Cunha, 1980, 215.

 


 

 

 

3.1.2. No domínio lexical

Ao lançar mão de formas dialetais, Elomar registra formas que contêm marcas da história da língua, de sua evolução. Vejam-se:

Quadro 2 – Fatos históricos Domínio lexical

Fato lingüístico

Exemplos textuais

Comentários e abonações

Monotongação

 

 

A monotongação é resultado de uma tendência fonética histórica de apagamento da semivogal nos ditongos crescentes ou decrescentes. Tal tendência era encontradiça no latim vulgar.

iscapô ( = escapou); istralô (= estalou); cavêra (= caveira); coro (= couro); trombetêro (= trombeteiro); ôço (= ouço); contas (quantas)

A fala popular também faz uso sistemático da monotongação em formas como: dinheiro (dinhêro), cadeira (cadêra), queijo (quêjo), roupa (rôpa), etc.

ofendêro – as terminações verbais –one, -on e –unt , em português moderno se converteram em –ão, escrito –am, quando desinência átona.

No português arcaico, havia a formaom que corresponderia, na fala, à realização /aWN/; passando pela monotongação e desnasalação resulta em /o/, grafado –o-.

glora

Coexiste a forma guilora em que se dá a epêntese do /i/ junto com a monotongação do /Ja/ em /a/.

tomem (= também) contr. de tão bem; f.hist. sXIII tanben, sXIV tã be, sXV tambem, sXV tãobem. {Houaiss, s.u.}

 

Esta evolução sugere sua continuidade na fala caipira (e mesmo na var. popular) para tomem, resultado da monotongação e desnasalação de –ão em –o e da síncope do –b-, motivados pela facilitação articulatória.

Conservação de forma de transição do latim ao português

 

 

 

Nos dialetos nacionais se entremeiam peculiaridades do português antigo que hoje, muito esporadicamente aparecem no uso lusitano (SILVEIRA, 1983: 287, § 568).

lũa < luna; in > em; intonce < entonces (do castelhano) > enton (arc.)

Da Lũa os claros rayos rutilauão. I, 58); Da Lũa, trazem, ramos de Palmeira, (II, 93); Cinco vezes a Lũa se escondêra (III, 59); Os cornos ajuntou da ebúrnea lũa (IX, 48 )– Os Lusíadas (CUNHA, 1980: 124)

mais (= mas) conjunção adversativa, do lat. magis;

Hoje se escreve mas, porém os brasileiros ainda a pronunciamos, na língua corrente, mais.(Sousa da Silveira (id. ib.), 1983: 107,[21]).

mili mais uma recuperação de forma antiga[6]: é originado por mille > mili > mil

 

homes – Documenta-se sobre a forma homem: lat. hòmo,ìnis 'homem, indivíduo, ser humano', a partir do ac. homìne(m); ver homin(i)-; f.hist. 1152 omem, 1211 homem, 1258 e 1262 pl. omees, 1265 pl. homees, sXIV homees/homees/omeem. {Houaiss, s.u.}.

Vê-se na grafia homes uma retomada da forma de transição datada de 1265, contudo sem o alongamento da vogal –e- representada então por –ee-.

 

Forão por estes homẽs que passauão, (I, 78); Que do sepulchro os homẽs desenterra, (III, 118); e mais dez ocorrências em Os Lusíadas da forma homẽs. (Cunha, 1980: 104)

fregela – denota tendência evolutiva da língua: o grupo consonantal fl- lat. evolui para ch- ou para fr; ainda que a forma padrão atual seja flagela, é possível encontrar no dialeto caipira muitos vestígios do estado arcaico do português.

A forma flagelar tem seu registro na língua datado de 1580, na Lírica. {Houaiss, s.u.}

 

múltipla grafia

 

 

Imprecisão de grafia decorrente da variação lingüística, que quem escrevia tinha a intenção de registrar a fala.

Vomo/ vamo; que / qui; faix / voiz / atraiz; abaldonano – baldonei; em / in;

Em faix, tem-se ainda uma marcação de pronúncia palatalizada do travador /S/; enquanto em voiz/ atraiz, tem-se a marcação de pronúncia sibilante sonora /S/, talvez por requinte estilístico, em decorrência da proximidade com formas da língua mais freqüentes no texto formal religioso.

epêntese

 

 

Metaplasmo de aumento que consiste na evolução de um fonema no interior do vocábulo.

faix / voiz / atraiz

Alargamos em ditongo, por meio da adjunção de –I, as vogais tônicas finais seguidas de –z ou –s: capaz (capais), pés (péis) (…), bem como a terminação –ãs (ãis), alemãs (alemãis), etc.(Sousa da Silveira: 1983, 281 §551).

 

istralô < estalou

Assim como em estrela (< stella, lat.) que teria sido motivada por analogia com a forma astro[7], ter-se-ia em istralô uma analogia com quebrou. Em ambos os casos, a resultante é o surgimento de grupo consonantal cujo segundo elemento é a vibrante representada por –r-. Atualmente tem-se justificado o aparecimento do –r- em formas como esta como um fenômeno fonético comum, depois de –st-: listra (< lista), mastro (< mastro), registro (< registo), etc.

Anaptixe ou suarabácti

 

 

Epêntese especial que consiste no desfazimento de uma dificuldade de pronúncia decorrente de grupo consonantal ou travamento silábico.

irirmão (< irmão) – redobro da sílaba inicial[8], provavelmente por motivação articulatória derivada da tendência a apoiar a consoante numa base vocálica, desfazendo o travamento inicialmente: ir > iri( r).

 

No Brasil, ouve-se no dialeto caipira Silivério, Silivana, pronúncia ocorrente também na linguagem popular, inclusive em Portugal.(cf. Coutinho: 1974, 147, § 224)

Diz-se que o falante do tupi também acrescentava uma vogal para desfazer grupo consonantal. como em curuçá (neol. tupi curu'sa < port. cruz) {Houaiss, s.u.}

Síncope

 

 

Supressão de fonema no interior do vocábulo;

pro (= para o); pra (= para)

 

Áferese:

 

 

Supressão de fonema no início do vocábulo;

Rubin > querubim; te > até

 

metafonia

 

 

Influência da vogal tônica sobre a da sílaba anterior

vomo

 

elisão condicionada

 

 

Desaparecimento de vogal final quando o vocábulo seguinte começa por vogal.

num (< em um) elisão ou

 

Vocalização das palatais

 

 

Mutação fonética que consiste na aproximação articulatória entre um fonema consonantal e um vocálico. Via de regra, dá-se no contato com a vogal palatal /i/.

chucaiá ( < chocalhar) palatização vocálica como recuperação de forma antiga

A forma de que derivaria chocalhar é chocalho[9] (choca + -alho[10]). Por sua vez, o grupo lh- teria sido resultado da evolução do grupo ly- (SILVEIRA, op. cit) /lJ/, conforme filyu > filho, palea > *palia > palha. Portanto, a forma chucaiá, denota a recuperação do /J/ da forma latina /lJ/.

falso aportuguesamento

 

 

Recusa de padrões aparentemente alheios ao do português.

toco [] > toque

A semelhança do tema em -e com galicismos, como nuance, vedete, etc.) motiva a recusa de vocábulos com este tema e promove a adaptação ao padrão geral (temas em –a e –o) da fala popular.

Apócope

 

 

Supressão de fonema no final do vocábulo

istei (= esteios) – documenta a prevalência do modelo paroxítono (grave) da língua portuguesa e o conseqüente apagamento da sílaba átona final.

 

Neste caso o apagamento é acentuado pela sistemática recusa da marcação redundante do plural em sintagmas nominais como os istei (< os esteios).

Quadro 3 – Fatos dialetais

Fato lingüístico

Exemplos

textuais

Comentário e abonações

Exclusão da marcação redundante[11] do plural:

 

 

O uso popular e o caipira tendem a reduzir a marcação do plural. Para tais falantes, basta marcar uma forma, geralmente o determinante.

dos ano; dos camin (= dos caminhos); as patra (= as pátrias); contas lũa (= quantas luas); dos coro (= dos couros); os outro ; os istei (os esteios); c’as voiz (= com as vozes); dos truvão; muitos mili (= muitos mil); nos alto céus

1. A marcação da flexão nos sintagmas segundo a norma padrão se faz redundante. Segundo a regra geral, em um SN, determinante(s) e determinado devem estar no mesmo gênero e número.

 

2. Há um uso específico para formas do plural de substantivos como trevas, céus, ares, cuja significação não é a de número (os nomes designam coisas incontáveis), mas de amplitude. (cf. Câmara (CÂMARA JR., 1973: 82.)

 

EXCEÇÕES: dos véus / nos alto céus / homes maus/

Nestes sintagmas o plural se realiza no modelo padrão; é ícone da retomada da fala formal, imitando o texto bíblico, ouvido nos ofícios litúrgicos.

Redução do –ndo[12] do gerúndio

 

 

Síncope do /d/ por força da nasal que evolui da condição de travador para a de inicial de silaba complexa aberta, recuperando o padrão geral: cV (consoante + vogal).

prissiguino; ritirano; abaldonano; vino

Redução da marca morfêmica do gerúndio –nd para n- (escreveno por escrevendo); (MATOS E SILVA, 1997: 57)

Opção pela variante –im

 

 

Coexistem historicamente no português as formas –inho e –im oriundas da forma latina –inu.

camin

Nos usos caipira e regional nordestino prevalece a forma –im.

Perda do travador consonantal vibrante velar /R/

 

 

A atuação da lei do menor esforço (cf. COUTINHO, 1974: 173,§ 191) promove a queda de fonema complicador da pronúncia.

dá - isperá – passá – chucaiá – julga formas verbais

Os usos popular e caipira tendem a enfatizar a tonicidade da vogal, apagando o travador vibrante alveolar /r/.

dô (= dor); lugá (= lugar) substantivos

Registro gráfico da neutralização das vogais média e alta

 

 

O uso não padrão apresenta a tendência à anulação da oposição fonológica entre /E/ e /i/ bem como entre // e /u/, em posição pretônica, realizando-se um arquifonema /I/ ou /u/, conforme o caso.

1. pru - cum – chucaiá - truvão

 

2. qui - isperá - ritirano – ritirante - ritirano – prissiguino

 

Lexicalização

 

 

Processo de produção involuntário de criação de unidades novas pela coalescência de palavras habitualmente reunidas no discurso, conforme (ASSUNÇÃO JR., 1986: 129).

Tal processo pressupõe necessariamente uma construção sintática que lhe serve de base. A documentação do fenômeno se dá diante da coexistência no mesmo estágio da língua da forma nova com o sintagma que lhe dera origem.

vai-num-torna

A expressão vai-num-torna, presente no refrão do texto em estudo, demonstra uma lexicalização complexa onde formas verbais se combinam com o advérbio nãografado num – e geram uma forma substantiva correspondente à noção de morte, fim.

Quadro 4 – Criação poética

Neologismo prosódico:

 

 

Alteração da posição do acento tônico, criando uma forma paralela para o vocábulo em benefício da rima.

ispirito

(= espírito)

Escrita sem acento gráfico para indicar mudança de prosódia por necessidade rítmica.

 

3.3. A propósito da iconicidade das formas

Observados o levantamento e o comentário das formas lingüísticas do texto, torna-se possível perceber que o estudo dos textos não se resume a uma classificação gramatical dos termos de cada enunciado. Ao texto subjazem conteúdos socioculturais vastíssimos que devem ser considerados durante e leitura, pois deles depende a construção do sentido textual.

Por isso, venho perseguindo um raciocínio mais amplo que o gramatical, o semiótico, focalizando os signos que se combinam na superfície dos textos como produto de escolhas pessoais orientadas por dados epistemológicos de alta relevância. Isto porque a produção sígnica – antes da textual – é resultado de operações mentais complexas que se fazem representar nos textos em níveis diversos. São ícones, índices e símbolos que se manifestam nas seleções lexicais, por exemplo.

Em se tratando de texto que traz à cena a representação particular de uma paisagem conhecida por estereótipos, cumpre que o autor eleja formas bastante significativas dos traços que deseja ressaltar, caso contrário, a imagem estereotipada abafará o quadro pretendido, e a interpretação do texto será empobrecida. Para que se construa um textocom cores fortes” é preciso produzir iconicidade no mapeamento dos signos na superfície textual. Isto decorrerá da seleção e combinação estratégicas de unidades léxicas que funcionarão, em princípio, em três níveis: a) icônico – produzindo imagens no plano da captação; b) indicial – gerando pistas indutivas no plano da reflexão; c) simbólico – produzindo generalizações metafóricas ou metonímicas, no plano da sistematização.

Na presente análise, apontarei apenas marcas lexicais icônicas, pois esta explnação se mostra extensa em relação à sua natureza: uma comunicação acadêmica de 15 minutos. Então, as unidades lexicais consideradas ícones são:

a)      da religiosidade: Deus / Anjo da Morte / vai-num-torna / fregela / fome / peste / morte / dô / céu istralô / voiz dos truvão / Rei da Guerra / Rei da Glora / mili anjo / alto céus / Terra / Rubin trombetêro / véus

b)      da sertanidade: sorte / corte dos camin / ritirano / sertão / chuva / lũa / ispirito errante / cavêra ritirante / coro / fome / peste / morte / dô / irirmão

Observe-se que fome / peste / morte / dô são conjunto interseção entre os dois eixos temáticos, promovendo assim a coesão textual e garantindo a orientação do leitor até a mensagem básica do texto: o retirante e as mazelas do seu penar na direção da vida eterna.

A escolha dos textos de Elomar pela abundância de fatos lingüísticos depreensíveis na superfície textual (para além das questões gráficas), materializa fatos fônicos, mórficos, sintáticos, semânticos e estilísticos e propicia um passeio produtivo pelo vernáculo. Fatos que ficam restritos a comentários de natureza diacrônica vêm à tona num texto contemporâneo, demonstrando que a mutabilidade é um fato constante nas línguas vivas.

Veja-se o excerto:

Não há, afirma Rui Barbosa, língua definitiva e inalteravelmente formada. Todas se formam, reformam e transformam continuamente. Quem o não sabe? Que homem de medianas letras hoje o ignoraria? (In Barbosa, Rui, "Réplica". Imprensa Nacional, Rio, 1904.)

Reações às mudanças lingüísticas que ocorrem quer por força da dialetação quer por entrada de novas formas (neologismos, empréstimos, etc.) não têm cabimento, pois a língua é símbolo da trajetória humana pela vida e pela cultura. Logo, a língua retrata as mutações provocadas pelo espírito dos tempos.

Creio ser possível concluir este ensaio, asseverando a qualidade textual da página analisada, e supondo ter podido sugerir uma forma a um tempo rica e compacta de estudarem-se pontos complexos da língua portuguesa, aliando sincrônico e diacrônico na tentativa de uma análise universalizante do fenômeno lingüístico. Ao lado disso, foi possível fazer algumas incursões históricas que demonstram a igual importância dos domínios lingüístico e enciclopédico para a produção textual.

BIBLIOGRAFIA

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Bíblia Sagrada (A). Ed. rev. e corr.. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

CÂMARA Jr. J. M. da. Estrutura da língua portuguesa. 4ª ed. Petrópolis: Vozes.

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CUNHA, Antonio Geraldo da. Índice analítico do vocabulário de Os Lusíadas. 2a ed. Rio de Janeiro: Presença/INL-MEC, 1980.

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SILVA, Ademar da. Alfabetização: a escrita espontânea. São Paulo: Contexto, 1991.

SIMÕES, Darcilia. Fonologia em nova chave. Texto-base para a Especialização em Língua Portuguesa do Instituto de Letras – UERJ, 2002.

SILVEIRA, Sousa da. Lições de Português, 9ª ed. Rio de Janeiro: Presença/Pró Memória/INL/UFF, 1983.


 

[1] Quanto ao termo sertaneza, recomendo a leitura de outro estudoElomar e a língua sertaneza – apresentado no V SENELP – Seminário Nacional de Língua Portuguesa – URI - Campus de Erechim/RS, ago/02.

[2] Gravado no Auditório do Centro de Convenções da Bahia em dez/1980– AFCD 700412 – Participação da Orquestra Sinfônica da Bahia e Regência de Lindebergue Cardoso. Edição: Fundação Cultural do Estado da Bahia.

[3] substantivo feminino1. Rubrica: ortografia. - conjunto de regras estabelecidas pela gramática normativa que ensina a grafia correta das palavras, o uso de sinais gráficos que destacam vogais tônicas, abertas ou fechadas, processos fonológicos como a crase, os sinais de pontuação esclarecedores de funções sintáticas da língua e motivados por tais funções etc. {Houaiss, s.u.}

[4] dialeto. Rubrica: filologia, lingüística. Diacronismo: obsoleto. língua que, embora tenha literatura escrita, não é língua oficial de nenhum país (p.ex., o catalão, o basco, o galego etc.) 5.Rubrica: filologia, lingüística. Diacronismo: obsoleto. {Houaiss, s.u.}

variedade regional de uma língua cujas diferenças em relação à língua padrão são tão acentuadas que dificultam a intercomunicação dos seus falantes com os de outras regiões (p.ex., siciliano, calabrês)

[5] querubim - lat. cherùbim ou cherùbin 'espírito celeste de primeira hierarquia', pl. de chèrub, do heb. kerúbim, pl. de kerúb; f.hist. sXIII cherubin, sXIV cherobim, sXIV cherubijs, sXIV cherubym, sXIV cherubyys. {Houaiss, s.u.}

[6] Sousa da Silveira, op. cit., p. 116. O – ll- representam o –l- palatizado, como em villa, stilla.

[7] Assim o –r- de estrela provém da analogia com astro. cf. Coutinho, op. cit. p. 154, § 248.

[8] (...) o redobro da sílaba inicial ou da sílaba tônica é fonte em português de expressividade afetiva: 1) na antroponímia ()...) formações essas que se podem referir a pessoas tanto do sexo masculino quanto do feminino; a documentação literária é rica, iniciada no sXVI e em intensificação desde então, aparentemente mais fecunda no Brasil que em Portugal 2) paralelamente, o vocabulário comum acusa, em menor intensidade, o mesmo tipo de formação, para a linguagem infantilizante e infantil, para eufemismos ligados ao corpo e suas secreções ou excreções, para afins tabuísticos em geral - cacá, cocô, quiqui, pipi, popô, pupu, babá, bebê, bebé, bubu, bumbum, dadá, mãmã, memé, pumpum, fiofó, gugu, lamelame, naná, papá, papaio, dandá, titi, titio, titia, venvém - quando ocorrem formas muito próximas, por vezes, de onomatopéias ou meros estímulos articulatórios. (HOUAISS, s.V.)

[9] -alho. terminação - de diversas form., não raro do lat. -aculu- ou -aliu-, ocorre com caráter sufixal: 1) em vocábulos de etim. ainda obscura ou não óbvia para o usuário sem senhorio metalingüístico: almalho, assoalho/soalho, bisalho, bugalho, camalho, caralho, carvalho, cigalho, frangalho, gastalho, mexoalho, negalho, orvalho, pacalho, paspalho, pirralho, sangalho, sarrabalho, tarangalho, tragalho, trangalho, trogalho, zangaralho; 2) em que o caráter sufixal é evidente, em função da evidência tb. do rad. de base, quando conota diminutivos, aumentativos (p.ex., ramalho), outra coisa, isto é, conexão com o derivante de tipo comparativo mas com indicação de outro referencial: bandalho, barbalho, borralho (soborralho), cabeçalho, cascalho (cruzamento), chocalho, cibalho, ciscalho, escovalho, escumalho, esfregalho/esfregão (troca de sufixos), espantalho, mangalho, migalho (migalha), mimalho, miuçalho (miuçalha), parvoalho, pendericalho/penderucalho/penduricalho/pendurucalho, podricalho, politicalho, ramalho, rebotalho, remoalho, rengalho, rimalho, vergalho, viscondalho; 3) como suf. eufêmico para evitar pal. tabu: dialho. (HOUAISS, s.v.)

[10] Para José Oiticica, o sufixoalho é uma variante masculina de –alha, que indica, coleção, quantidade, grandeza (muralha, limalha, batalha) e tem, às vezes, sentido pejorativo: gentalha, parentalha. cf. Coutinho, op. cit. p. 167-8, § 290.

[11] É possível encontrar-se não nas composições de Elomar, como na de outros sertanejos e na fala geral popular alguma oscilação entre a marcação/não-marcação redundante do plural. Um motivo foi dado: a imitação da fala religiosa, ao repetir expressões típicas do texto bíblico, por exemplo. Outro motivo pode ser o desejo inconsciente de adquirir o modelo de prestígio, representado na fala dos professores, pastores, padres, pessoas de maior poder aquisitivo, etc.

[12] Esta tendência não se reduz ao gerúndio, ocorre também em outras classes. Vemos em outras letras do mesmo poeta: Foi cuano ia atravessano a rua (In “Chula no terreiro”); isso se deu cuano moço (In “Cantiga do Estradar”); Cuano a amada e esperada trovoada chega (In “Campo Branco”), etc.