Pasolini
- reflexões
sobre
uma
tradução
intersemiótica
(TI)
Carlos da Silva Sobral
A
discursividade
problemática
e a
perspicácia
do
delito,
inscritas no Decameron,
através
de
um
elenco
do
universo
medieval,
são
reescritas
por
Pasolini, jogando
com
algo
provocador na
esteira
semiológica.
Observando o
conjunto
de
signos
freqüentes
na
narrativa
de Giovanni Boccaccio, rearticulados na
tradução
fílmica pasoliniana, examinamos,
pelo
corte
semiológico,
algumas
ocorrências
textuais
e fílmicas e especulamos
sobre
a
inter-relação
entre
as duas
formas
narrativas.
A
análise
contrastiva
entre
texto
literário e o
texto filmico
mostra
que a
velha
oposição –
que
caracterizava as
disputas
tradicionais no
estudo das
duas
formas
narrativas –
tende a transformar-se
cada
vez
mais numa
relação de
reversibilidade e de
homologia.
Arnold Hauser notou
como a
literatura
passa a
sofrer uma
profunda
influência da
arte
cinematográfica
em
emergência no
início do
século XX (HAUSER,
1996). As
argumentações
apresentadas a
partir do
surgimento do
cinema tendem
a
considerar o
fato de
este
ser uma
forma de
expressão
artística
mais realista
e
mais
naturalista,
pois, ao
invés de
ter
que
descrever
ambientes,
paisagens e
sua
dinâmica,
poderia
apenas
mostrá-las.
Complementando estas afirmações
Adorno (ADORNO,
1980: 269)
nos diz
que:
Do
mesmo
modo
que a
fotografia
tirou da
pintura muitas
de
suas
tarefas
tradicionais, reportagem e os
meios da
indústria
cultural –
sobretudo o
cinema –
subtraíram
muito do
romance. O
romance
precisou concentrar-se naquilo
que o relato
não dá
conta.
Só
que,
em
contraste
com a
pintura, a
linguagem
lhe põe
limites na
emancipação do
objeto,
pois esta
ainda o
constrange à
ficção do
relato: Joyce foi
conseqüente
quando
vinculou a
rebelião do
romance
contra o
realismo a uma
rebelião
contra a
linguagem
discursiva.
O
cinema
certamente
contribuiu
para
que a
literatura contasse
com
mais
um
aspecto narrativo,
sobretudo
quando se
pensam os
roteiros,
mas
primeiramente
tendeu-se a
refugiar
no
que constituía
a
própria
essência da
literatura,
isto é, a
linguagem,
pois aquela,
pelo
menos
até
certo
ponto,
poderia
manter-se protegida
contra as
influências,
ditas “nefastas”, do
cinema.
Tal
aspecto
já podia
ser
observado
em Joyce,
Proust e
outros
autores
que
possivelmente tiveram
um
contato
apenas
superficial
com a
arte
cinematográfica,
dado
que viveram
apenas o
seu
período
inicial.
É presumível
que
tal
como ocorrera
anteriormente
com a
literatura, o
cinema
também devesse
encontrar
sua
própria
linguagem,
sem se
preocupar
em
ser
mais
literário
ou
menos
literário
para
adquirir o
estatuto de
uma
obra de
arte. Teria sido
esse,
inclusive,
um dos
caminhos
trilhados
pelos
cineastas (por
exemplo,
Godard). E
exatamente o
hábito de
alguns
cineastas
realizarem “adaptações”
de
obras
literárias constituiu o
fato
que levantou
reações
críticas ao
cinema,
que o
classificavam
como
algo
menos
artístico,
em comparação
com a
literatura,
sem
levar
em
conta as possibilidades
inter e intra-relacionais de
signos de
diferentes
campos
semióticos.
Hoje,
seria inadequado
encarar
o
problema
da
relação
cinema-literatura unicamente
com
a
atenção
voltada
para
a
prática
das transposições. Será
necessário
tentar
ler
o
cinema
e
ver
a
literatura,
partindo do
jogo
dialético de
estruturas
contrastantes
capaz
de
superar
as
diferenças
tradicionais
entre
essas duas
formas
específicas, favorecendo o
surgimento
de
mecanismos
efetivadores do
material
fabulístico
disponível
no
arsenal
sígnico,
tanto
para
o
filme
quanto
para
a
literatura.
Quando
se
fala de "adaptação"
(aqui
vista
sob a
possibilidade de
inserção
prismática de uma
tradução
intersemiótica) de
um
romance
para o
cinema,
não se procede
somente de uma
mera
substituição
da
linguagem
verbal
para uma
linguagem
absolutamente
não-verbal,
mas de uma
interpretação/inferência
dos
signos
verbais
por
meio de
sistemas de
signos
não
verbais. Nesse
viés
reivindicamos uma
ampliação das
possibilidades e procedimentos, fazendo
referência à
tradução
intersemiótica mencionada
por Roman
Jakobson,
isto é, a
tradução
que consiste
na "transmutação" "de
um
sistema de
signos
para
outro,
por
exemplo, da
arte
verbal
para a
música, a
dança, o
cinema
ou a
pintura"
(PLAZA, 2001: 11).
Observe-se
ainda
que o
espectro do procedimento
da
operação
poético-tradutória
não contempla
necessariamente a
plena
fidelidade ao
evento e à
sincronicidade:
A
operação
tradutora
como
trânsito
criativo de
linguagens
nada tem a
ver
com a
fidelidade,
pois
ela
cria
sua
própria
verdade e uma
relação
fortemente
tramada
entre
seus
diversos
momentos,
ou seja,
entre
passado-presente-futuro, lugar-tempo
onde se
processa o
movimento de
transformação de
estruturas e
eventos.(2001:13)
É
importante
considerar a
peculiaridade
do
cinema,
que oferece
um
arsenal de
instrumentos
articuladores sígnicos, contemplado
por
imagens (fotografia
em
movimento/
imagem
em
movimento),
verbo,
música,
som,
cor,
bem
como uma
série de
outros “suportes”
que viabilizam
projetos
criativos ao
operador de
incontestável
requinte e
infinitas possibilidades.
O processo decodificante na tradução
interlingual realiza-se no mesmo meio, porém em uma língua diferenciada,
tendendo a despertar sentidos latentes na língua de partida. Na Tradução
Intersemiótica, como tradução entre diferentes sistemas de signos, tornam-se
relevantes as relações entre os sentidos, meios e códigos. Quando pensamos na TI
como transcrição de formas, visamos penetrar pelas entranhas dos diferentes
signos, buscando iluminar suas relações estruturais, pois, segundo Plaza (op.
cit, p. 71), são essas as relações que mais interessam
quando se trata de focalizar os procedimentos que regem a tradução:
A
Tradução
Intersemiótica se
pauta,
então,
pelo
uso
material dos
suportes,
cujas
qualidades e
estruturas
são os
interpretantes
dos
signos
que absorvem,
servindo
como
interfaces.
Sendo
assim, o
operador
tradutor,
para
nós, é
mais do
que a “interpretação
dos
signos
lingüísticos
por
outros
não-lingüístiscos”.
Nossa
visão diz
mais
respeito às
transmutações intersígnicas do
que
exclusivamente
à
passagem de
signos
lingüísticos
para não-lingüísticos.
(2001:67)
Ao pensarmos no
caráter
literário, na
inter-relação
sígnica e nas possibilidades tradutórias do
texto, notamos
que
desde os
primórdios o
texto
literário
mantém uma
intensa
relação
com a
imagem. Se
nos reportamos
às
inscrições
rupestres,
encontradas nas
cavernas,
podemos
verificar
que os
desenhos
já se
encontravam organizados numa
estrutura
narrativa
linear, constituindo
um
sistema de
linguagem,
que objetivava
contar uma
história. O
advento da
escrita e,
por
conseguinte, a
utilização de
signos exige
um
novo
esforço
organizacional
para a
composição de
uma
história
ou
unidade de
sentido;
justificado
pelo
fato de a
imagem
ter possibilidades de
construção
narrativa de
caráter
sintético,
enquanto a
escrita,
analítico.
É
patente,
contudo,
que a
validade do
texto depende
do
seu
potencial de
traduzibilidade,
isto é, de
decodificação e
reorganização
em
outros
sistemas
com
realização
em
significados
relacionados
válidos.
Quando
movemos o
foco de
nossa
atenção e
fazemos uma
reflexão
sobre a
característica da
tradução
poética, vemos
que é
pertinente
observar
que
o
ponto de
partida do
tradutor
não é a
linguagem
em
movimento,
matéria
prima do
poeta,
mas a
linguagem
fixa do
poema. (...)
Sua
operação é
inversa a do
poeta:
não se
trata de
construir
com
signos
móveis
um
texto
inamovível,
mas de
desmontar
os
elementos
desse
texto,
pôr os
signos de
novo
em
circulação e
devolvê-los à
linguagem
(OCTAVIO
PAZ,
apud
PLAZA, op. cit., 97)
Na
medida
em
que a
criação encara
a
história
como
linguagem, no
que diz
respeito à
tradução,
podemos
estabelecer
um
paralelo
entre o
passado
como
índice,
como
tensão
criativo-tradutora,
como
momento
operacional e o
futuro
como
símbolo,
isto é, a
criação à
procura de
um
leitor.
Então é
possível
ver a
tradução (forma
privilegiada de
recuperação da
história)
como uma
trama
entre
presente-pasado-futuro. Dependendo da
direção do
nosso
olhar, a
relação se
modifica
pela
proeminência
de
um dos
pólos.
Então, na
primeira
relação (passado
como
ícone), o
vetor é do
passado
para o
presente (a
tradução). Na
segunda
relação (o
presente
como
índice), a
tradução
como
presente determina
seu
original,
seu
passado. Na
terceira
relação (o
futuro
como
símbolo), do
presente
para o
futuro, a
tradução
determina
seu
leitor.
Neste
ponto é
pertinente
trazer o
exemplo da TI
do Decameron de Giovanni Boccaccio realizada
por Pasolini,
uma
operação
tradutória
poética, de
caráter
sincrônico,
que referencia
o
passado e
nos propõe uma
visão
que aponta
para
um
palimpsesto
espectral,
com
ecos na
referência
praziana (PRAZ, 1972.) ao libro libresco.
·
Decameron
boccacciano
Escrito
entre
1349 e 1351, o Decameron de Giovani Boccaccio configura-se
como
um
painel
capaz
de
simbolizar
as
fantasias
que
orquestraram o
imaginário
cotidiano
daquela
época.
A
obra
– precursora da
narrativa
realista no
cenário
das
letras
italianas – constrói
um
verdadeiro
mosaico
cultural do ‘300, reforçando o
significado
de
rapsódia,
por
entendermos
que
no Decameron –
sob
a
estratégia
de
diferentes
pólos narradores –
homem
e
contexto
cultural estão tematizados
em
todos
os
seus
vícios,
paixões,
astúcia,
inteligência
e gentileza.
Segundo
Salvatore Battaglia,
nenhum
outro
texto
soube
transmitir
com
tamanha
precisão
a
representação
da
existência
como
o Decameron:
Boccaccio concede ai suoi protagonisti un’essenzialità e insieme un’agiatezza d’espresione
che
sono
nuove nella letteratura europea. Soprattutto
per
l’equilibrio tra
natura
e società, tra educazione e istinto (BATTAGLIA,
1968: 63-5)
Ainda
na
opinião
de Battaglia, o
realismo
articulado
por
Boccaccio consegue
atingir
a
verdade
objetiva
de
seus
personagens,
efetivada numa
dialética
que
conjuga
natureza
e
civilização,
impulso
e
reflexão.
Dessa
forma,
Boccaccio será o
responsável
pela
inserção
do
realismo
no
cenário
literário
do
Ocidente.
No Decameron,
como
tentativa de afastamento
de
um
quadro
social
fúnebre e
caótico,
um
grupo de
dez
jovens
procura
refúgio no
campo.
Esse
mesmo
grupo será
reportado
mais
tarde
em
demais
produções
boccaccianas,
através das
presenças de
Pampinea, Elissa, Emilia, Neifile, Fiammetta, Filomena, Lauretta, Filostrato,
Panfilo e Dioneo. Na
composição
cotidiana
desses
personagens o
talento
humano
busca
em
exata
medida a
expressão
sígnica da
ironia, da
trapaça, da
persuasão, da
tolice, da
vaidade etc.
O
tempo da
epopéia
mercantilista
cronometra
um
desdobramento narrativo enovelado ao
longo de duas
semanas. A
partir de uma
eleição
diária
um “rei”
ou uma “rainha”
assumiam a
voz do
narrador.
Apesar de
compreender o
espaço de duas
semanas, a
narrativa
dispõe de
um
total de
dez
dias,
já
que na
sexta-feira e
no
sábado
não havia
relatos (por
respeito à
morte de
Cristo e
por se
tratar de
um
dia dedicado
aos
cuidados
pessoais).
Caberia ao “rei”
ou à “rainha”
a
determinação
do
tema das
histórias a
serem contadas. Nesse
contexto, o
único
que
tinha o
privilégio
artístico de
fugir ao
tema
estabelecido
era Dioneo.
Cada
jornada é
aberta
com a
descrição dos
alegres e
ingênuos
passatempos do
grupo. A
primeira
jornada –
que
estabelecerá o
modelo discursivo –
não tem
um
tema
específico.
Comportamento
que se
repetirá na
nona
jornada.
Alguns
estudiosos da
obra
boccacciana,
como Vittore
Branca,
esclarecem
que
grande
parte da
história
social da
Itália e da Europa (no
período
que vai do
século
XI ao XIV) é
posta
em
cena
pelo “Decameron”,
através do
resgate do
cenário feudal
nos
seus
aspectos
rudes e
guerreiros,
como
também,
nos
seus
ambientes
aristocrático e
galante.
Branca
considera
que o
texto de
Boccaccio
mostra a
luta das
regiões
contra o
Império,
além de
enfocar as
rixas
municipais, os
feitos dos
pontífices e
dos
imperadores,
constituindo
um
verdadeiro
mosaico,
onde,
naturalmente,
as
sociedades
napolitana e
florentina
são aquelas
que
melhor estão
retratadas,
já
que
constituíam
lugares
familiares ao
próprio
escritor.
A TI realizada
por Pier Paolo
Pasolini, contemplada na
chamada “Trilogia
della vita”, concentra os
filmes
Decameron (1971), Racconti di Canterbury (1972) e
Il fiore delle Mille e
una
notte (1974) e
usa o
texto
literário
como
um
referente
para a
realização do
seu
projeto
estético.
Pasolini,
especialmente
no Decameron, consegue
inserir
em
um
quadro
vivo
todos os
elementos
que davam
vida à
sociedade
medieval
através da
profusão de
corpos,
territórios,
lendas,
fatos da
memória,
geografia da
imaginação,
arquivos da
narrativa,
músicas,
espaços
fabulatórios,
sensações,
texturas e
cromatismos de
afrescos
diversos,
conduzido
pelos
estímulos do
texto de
partida,
garimpando intra e intersigno, relacionando
novas
combinações e
ampliando
sob
foco dirigido
relações
sígnicas, declaradamente impregnadas de
intenções
políticas.
O
conceito
pasoliniano de
escritura
cinematográfica
não concebe a
realização do
cinema
sem a
presença
concreta dos
constituintes
da
realidade. Os
suportes
para a
constituição
de uma
nova
realidade
que represente
o
real
simbolizado,
segundo
Pasolini, devem
ser incluídos e
incorporados
pela
língua,
ou seja, o
código
representativo. A
não
inclusão desses
elementos,
para o
cineasta,
seria
tão
absurda
quanto
querer expressar-se
lingüisticamente
sem
usar as
consoantes e
as
vogais,
isto é, os
fonemas (matéria
específica da
segunda
articulação).
Movendo
um
esforço de
revisão dos
princípios
semiológicos,
Pasolini
quer
designar
todos os
objetos,
formas
ou
atos da
realidade
permanentes no
imaginário
cinematográfico
pelo
nome de
cinèmi
por
analogia a
fonemi. Os cinemi teriam
ainda,
para o
cineasta,
várias subclassificações, de
acordo
com as
funções
que
desempenham num
conjunto
impregnado de significação.
A
cinematografia defendida
por Pasolini
se constrói
através da
experiência
viva.
Em
última
instância, o
que vai
parar nas
telas é a
própria
vida, na
complexidade de
suas
ações. Dessa
compreensão
nasce
um
cinema
natural e
vivo,
reproduzindo,
assim, o
mecanismo
lingüístico da
língua
oral,
em
seu
momento
natural
ou biológico.
Viver é
representar e
também ver-se
representar,
ou seja,
vivendo,
nós
nos
representamos, ao
mesmo
tempo
em
que assistimos
à
representação
dos
outros.
Segundo
Pasolini, a
realidade do
mundo
não é
nada
mais do
que essa
dupla
representação,
na
qual somos
simultaneamente
atores e
espectadores,
teatralizando
um
happening
gigantesco.
O
cineasta
italiano explica
que o
processo de
representação
por
imagens segue
o
mesmo
procedimento utilizado
pela
oralidade,
ou
pela
língua
escrita.
Ainda
sob essa
ótica,
pensar lingüisticamente
implica
um
processo
silencioso
que acontece
no
nosso
próprio
interior,
utilizando
palavras
estenográficas,
em
seu
estado
bruto, num
ritmo
extremamente
rápido e
acima de
tudo
altamente
expressivas,
embora
não
articuladas. Da
mesma
forma
que concebemos
a
construção do
discurso
silencioso,
podemos
admitir
também a
possibilidade de
construir no
nosso
interior
um
monólogo
cinematográfico,
constituído
pelos
mecanismos do
sonho e da
memória,
que podem
acontecer de
modo
involuntário
ou,
até
mesmo,
por
desejo
próprio.
Trata-se,
portanto, dos
esquemas
primordiais de
um
código
cinematográfico,
entendido
como
reprodução
convencional
da
realidade.
Quando
colocamos
em
prática o
aparato
imagístico da recordação, projetamos no
interior de
nosso
cérebro
seqüências
fílmicas
pequenas
ou
grandes,
contínuas
ou
entrecortadas, sinuosas
ou
lineares,
que objetivam
representar
imagisticamente a
realidade. Dessa
forma, pode-se
dizer
que
tais
arquétipos de
reprodução da
linguagem da
ação, ou melhor, da
realidade (que
em
última
instância é
sempre a
ação) estariam amalgamados
num
meio
mecânico e
comum: o
cinema.
Através dessa
ótica, pode-se
afirmar
que o
cinema
representa
não
apenas
um
momento
scritto de uma
língua
natural e
total,
mas a
ação da
realidade. O
cinema é a
linguagem da
ação, o
signo
dinâmico,
um
código
comunicativo
que segue a
mesma
mecânica de
representação
utilizada
pela
língua
escrita
em
contraponto à
língua oral.
Apesar de o
vetor (texto
original)
exercer
impulso
expressivo
sobre o
operar tradutório,
várias
circunstâncias
interagem impedindo a
reprodução de
cunho
meramente
imitativo. O
operador está
sujeito a diversas
interferências
no
momento de
concepção do
texto. Pondera
e avalia as
perdas e
ganhos
impostos pelas
circunstâncias
vigentes
durante a
realização do
trabalho. As
dúvidas e
constantes
consultas de Pasolini a Roberto Rossellini dão uma
prova disso.
Tanto é
verdade
que a
Associazione Fondo Pasolini
conserva
vários
documentos,
muitos deles
não
publicados,
relativos a
perplexidades e
dúvidas
peculiares às
fases de
criação. O
fragmento de
uma dessas
cartas a
Rossellini,
aqui
transcrito, pode
ilustrar
um dos
pontos de
hesitação:
Caro
Rosellini, portando a termine la lettura del Decameron e maturandolo, la
prima
idea del film
si
è modificata. Non
si
tratta più di scegliere tre, quatto o cinque novelle di
ambiente
napoletano, ossia di
una
riduzione di tutta l’opera a
una
parte
“scelta da
me”:
si
tratta piuttosto di scegliere il maggior numero possibile di racconti (in questa
stessura
sono
quindici)
per
dare quindi un’ immagine
completa
e oggetttiva del Decameron. Va
previsto
dunque un film di almeno tre ore (PASOLINI,
1991: 247).
As
relações
entre
o
filme
e o
texto
literário
exigem, na
nossa
contemporaneidade,
um
exercício
de
revisão
à
luz
de uma revigorada
noção
da
ciência
narrativa,
que
impõe
esse
reexame
dos
diferentes
estatutos
semânticos
exibidos pelas duas
artes,
no
sentido
de
verificar
a
permanência
da
vocação
fabulatória
comum
a ambas.
O
filme
com
tantas
histórias
se
torna
um
coral,
mas
nem
por
isso
pretende
ser
um
filme
em
episódios.
O
seu
real
protagonista
é o
mundo
napolitano
com
personagens
que
mudam, se alternam, se substituem, desaparecem,
mas
o
mundo
napolitano
permanece
sempre
o
mesmo.
Pasolini declara
ter
feito
"um
filme
sobre
o
povo,
de
povo,
mas
também
para
o
povo"
(PASOLINI, 1991: 248)
A
obra
de Boccaccio
que
baliza
o
produto
cinematográfico
de Pasolini se inscreve
como
fonte,
longe
de se
tornar
roteiro,
dada
a
característica
de
cada
obra.
No
texto
boccacciano
além
da
urdidura
artesanal
da
narrativa,
é
evidente
a
escolha
rítmica dos
signos
verbais
em
tensão
e
distensão.
No texto-fílmico pasoliniano
muitos
dos
aspectos
singulares
que
caracterizam o
texto
boccacciano,
como
a
função
dos narradores, a
antecipação
temática
demarcadora,
já
mencionados
anteriormente,
ora
foram abandonados,
ora
referidos
através
da
fragmentação
de uma das
novelas
e da
eventual
inserção
de
um
trovador
popular.
Porém
o
ambiente
e os
personagens
estão vinculados a
um
realismo
intrínseco
que
é
apreendido,
rearticulado, tensionado
sob
a
égide
de eros e expandido
sob
o
foco
político.
Contudo,
as possibilidades combinatórias
são
infinitas.
Elas
continuam pulsando, instigando-nos a
novas
operações
tradutórias.
Pasolini hesitou, consultou
amigos,
arrependeu-se, ousou e propôs o
seu
Decameron,
álibi
para
dizer
o
que
nele
não
pode
calar.
Uma
projeção
de
leitura
singular.
O
jornal
Corriere della Sera publicou,
poucos
dias
antes da
morte de Pier Paolo, o
seguinte
ato de
renúncia,
movido
pelos
ataques
feitos à
Trilogia
della vita:
Io abiuro dalla
Trilogia della
vita, benché non
mi penta di
averla fatta. Non posso infatti negare la sincerità e la necessità che
mi hanno
spinto alla rappresentazione dei corpi e del
loro simbolo
culminante, il sesso.
Tale sincerità e necessità hanno diverse
giustificazioni storiche e ideologiche.
Prima di tutto
esse
si inseriscono
in quella lotta
per la
democratizzazione del “diritto a esprimersi” e
per la
liberazione sessuale, che erano due momenti fondamentali della tensione
progressista
degli anni Cinquanta e Sessanta. In secondo luogo, nella
prima
fase della crisi culturale
e antropologica cominciava
verso la fine
degli anni Sessanta – in cui cominciava a trionfare l’irrealtà della
sottocultura dei “mass
media” e quindi della comunicazione di
massa –
l’ultimo baluardo della realtà parevano essere gli “innocenti” corpi con l’arcaica,
fosca, vitale
violenza dei
loro organi
sessuali(...)
Ora tutto
si è
rovesciato (PASOLINI, 1976b: 71-2)
Pasolini, nesta abjuração, indica
alguns
procedimentos justificantes
para
as
escolhas
representativas
que
põem
em
foco
a
realidade
e a
potência
conotativa da corporeidade
erótica,
desvinculadas das
máculas
de
caráter
consumista
que
passaram a
dominar
nossa
época.
É
também
curioso
observar
como
os
fatos
periféricos
oriundos
do
operar
criativo
em
jogo
no
processo
dessa TI interagem simetricamente no
eu
civil
pasoliniano,
pois
o
cineasta
referenciando o
texto
de Giovanni Boccaccio
como
estímulo
criativo,
ou
por
algum
tipo
interferência
incitante
ou
por
coincidência,
repete a
mesma
ação
de
renúncia
a
própria
obra,
como
fez o
poeta
trecentista
nos
últimos
anos
de
vida.
A
tradução
poética
tem
por
característica
o
infinito
combinatório e,
como
bem
diz Plaza, apresenta
questões
que
só
podem
ser
reveladas ao
nível
da
arte,
pois
esta é
produto
da
gangorra
entre
interpretantes,
dada
a impossibilidade de
delimitar
um
interpretante
final.
O
texto
original
ou
referente
é
matéria
de
tradução
no
momento
em
que
o
poeta
o
lê
e reprocessa, relacionando, combinando e associando
signos
ligados a
campos
semióticos
múltiplos,
numa
teia
interminável
de possibilidades.
Contudo,
o
resultado
da
tradução
proposta,
a
segunda
narração,
constitui
um
novo
produto,
obra
de
arte
que
adquire plasticidade
característica
e
status
independente.
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