AULA DE LEITURA: E ALTERIDADE
Fernanda Paradela (UERJ)
1 Introdução
Esta comunicação, com base na pesquisa “Marcas de alteridade no discurso pedagógico” desenvolvida por Gurgel (2001), objetiva apresentar um estudo[1] que trata do discurso sobre a prática pedagógica, explicitando as formas marcadas passíveis de apreensão do outro - as não-coincidências do sujeito consigo mesmo (Authier Revuz, 1998). Objetiva, também, com base nos elementos que constituem a comunicação - locutor, enunciador, alocutário -, analisar as várias perspectivas enunciativas que o locutor assume em seu discurso, através do estudo dos dêiticos (Ducrot, 1987).
2 Quadro teórico
Authier-Revuz (1998) chama heterogeneidade mostrada as formas lingüísticas de representação do sujeito. São formas que inscrevem o outro na seqüência do discurso (discurso direto, aspas, formas de retoque ou de glosa, discurso indireto livre, ironia). Articulando à noção de dialogismo bakhtiniano a de “heterogeneidade constitutiva” da linguagem, ressalta o fato de o sujeito, enquanto parte de um corpo histórico-social, interagir com outros discursos. É o discurso como produto do interdiscurso. Nesse sentido, Authier-Revuz evidencia, como pistas do interdiscurso, as formas marcadas da heterogeneidade mostrada que se opõem a uma aparente linearidade do discurso.
Ducrot (1987), baseado na teoria polifônica bakhtiniana e tendo como objeto de análise enunciados nos quais é possível identificar várias vozes, ressalta que só há polifonia quando é possível distinguir, em uma enunciação, dois tipos de personagem: o enunciador que, apesar de não falar, apresenta seu ponto de vista, e o locutor, aquele que é responsável pelo discurso.
O locutor é o agente da enunciação, é o ser a quem fazem referência o eu e as marcas de 1a pessoa (excetuando-se o discurso direto). Já os enunciadores são os personagens apresentados no enunciado como realizadores dos atos do discurso. Pode-se dizer, então, que a enunciação do locutor é atribuída à um enunciador.
Com isso Ducrot estabelece a diferença entre enunciadores e locutores, distinguindo o locutor do sujeito falante empírico, e o locutor do enunciador. Ele diz que, assim como o narrador se distingue do autor, o locutor se diferencia do sujeito falante empírico. Nesse sentido, o locutor é um ser do discurso, pertencente ao sentido do enunciado, diferentemente do sujeito falante empírico. Já o enunciador distingue-se tanto do locutor quanto do sujeito falante, visto que é caracterizado como figura da enunciação que representa a pessoa da qual os acontecimentos são apresentados.
A questão do enunciado é para Ducrot uma representação da enunciação para indicar outros aspectos desta. Desta maneira, o enunciado assinala a superposição de diversas vozes.
Ducrot, ao tecer sua teoria polifônica, baseado na teoria de Bakhtin (Volochinov, 1929), exclui a noção de historicidade do texto como é visto em Bakhtin, reduzindo ao momento da realização do enunciado, que não existia antes de ser dito, e que não existirá mais depois.
Faz-se importante este estudo uma vez que, através dele, é possível reconhecer, na materialidade lingüística, atos no enunciado representantes das diversas vozes que nele estão mascaradas.
3 O corpus da pesquisa
Os dados foram coletados através de uma entrevista semidirigida com uma professora de língua portuguesa de 7a série do ensino fundamental e de ampla experiência com leitura; de uma escola federal do município do Rio de Janeiro.
A entrevista foi gravada em áudio e transcrita para a análise do discurso da prática pedagógica.
4 Análise dos dados
Os dados foram organizados abordando o discurso da prática pedagógica através da análise dos dêiticos (Ducrot, 1987), com base nos elementos da comunicação (locutor, enunciador, alocutário) e através das não-coincidências do sujeito consigo mesmo (Authier-Revuz, 1998). Utilizou-se, para a transcrição dos dados, o sistema sugerido por Marcuschi (1991) com algumas adaptações, de acordo com os objetivos dessa pesquisa. As modificações no sistema foram as seguintes: optou-se, ao invés dos sinais propostos por Marcuschi, pela pontuação da escrita formal, para facilitar a leitura dos dados transcritos. A colocação dos pontos, repetidos ou não, para o alongamento da vogal foi substituída pela repetição da letra Conservaram-se os parêntesis duplos para o comentário, a letra P para a fala do professor e a E para a fala do entrevistador.
4.1 Os dêiticos
Através da análise dos dêiticos pode-se verificar a polifonia, as várias perspectivas enunciativas que o locutor assume ora como:
» sujeito no discurso:
Situação 1
P: ...eu começo por exemplo trabalhando com livros de literatura infanto-juvenil, é dando a eles a opção. eles escolhem né? na minha aula não existe no primeiro momento o livro único (...) então eles escolhem, eu levo, eu faço freqüentemente a biblioteca de classe e eu sinto que eu ganho aí, que o meu curso, que a minha aula de leitura cresce muito quando eu levo os livros pra eles...
Através dos pronomes possessivos minha, meu, o locutor apresenta sua opinião sobre a aula de leitura utilizando o espaço e o tempo da aula para o momento da sua fala na entrevista.
» profissional do ensino, de forma impessoal
Situação 2:
P: ...há muitos anos em sala de aula eu venho tentando todas as técnicas, metodologias, acertando, errando mas a gente não pode desistir. evidentemente que nós acreditamos que a leitura é o passaporte né? pra outros conhecimentos (...) é complicado trabalhar leitura principalmente no ensino fundamental ...
Percebe-se que o locutor interrompe o fio discursivo ao modificar do eu para o a gente/nós, quando assume a perspectiva do professor, falando deste lugar, de forma impessoal.
» observador crítico das atitudes do professor
Situação 3
P: ...o tempo inteiro ele deve trabalhar numa linha muito tênue entre o que o aluno quer ler e o que o aluno gosta de ler sim, ele tem desejo pela leitura, é só entregar pra ele, é oferecer pra ele textos que sejam naquele momento textos interessantes do ponto de vista do aluno, do leitor...
Ressalta-se que, ao mesmo tempo em que o locutor se exclui como professor, ele declara a sua experiência na aula de leitura.
» entrevistador na pesquisa
Situação 4
P:...bom se eu sei que eu vou perder, se eu sei que alguns vão resistir àquele tipo de texto, por que eu insisto nisso? seria a pergunta que você faria e que eu também já me fiz anteriormente. é eu insisto porque eu coloco pra eles e debato com eles da importância de se conhecer outros tipos de textos...
O fio discursivo é interrompido, no ponto de vista da linearidade, quando o locutor passa do eu entrevistada para o eu entrevistadora.
Na situação 4, temos um discurso imaginário, quando a professora pergunta e responde no interior de sua própria fala.
» membro do grupo de professores na aula de leitura
Situação 5
P:...agora, há dois caminhos, ou nós ficamos lá naquela leitura que não acrescenta nada, porque as linguagens dos livros são muito coloquiais, uns textos muito próximos à linguagem, ou nós vamos ousar e vamos ter trabalho né?...
» analista da proposta pedagógica do livro didático
Situação 6
P:...na avaliação do grupo, a proposta das autoras ((refere-se ao livro didático)), ela estava bem parecida com a proposta do programa né? do colégio, do programa de língua portuguesa do colégio, então nós ((membro do colégio Pedro II)) vimos, a parte textual estava boa, vimos que a parte de língua estava atendendo às expectativas curriculares (...) e isso facilitava a vida...
Como analista, o professor coloca-se como membro do grupo de professores do colégio onde atua.
A heterogeneidade mostrada: as palavras do outro no discurso do locutor
Observamos que a heterogeneidade mostrada se faz quando o locutor:
» ironiza, trazendo para o seu discurso o outro
Situação 7
P: ...o professor precisa ser um artista pra ter quarenta alunos e articular todas as nuances, todas as situações de sala de aula...
Neste caso, de acordo com Ducrot, a fala irônica é para o locutor expressar na enunciação a posição do enunciador. O locutor parece, desta forma, exterior à situação de discurso, estabelecendo uma distância entre ele mesmo e a sua fala. Este distanciamento do locutor de sua própria fala, o torna, segundo Ducrot, um alocutário.
Authier Revuz diz que a ironia é o próprio discurso outro, visto que o locutor se afasta do enunciador.
» traz o discurso outro, do entrevistador, para o seu discurso
Situação 8
P: ...na minha aula não existe no primeiro momento o livro único como você citou anteriormente...
» traz o outro para o seu discurso, interrompendo o fio discursivo
Situação 9
P:...a escola deve ser o lugar do crescimento, é o lugar da dor como diz Bartolomeu, mas é o lugar do crescimento...
» verbaliza um discurso outro
Situação 10
P: ...quando eu fiz o trabalho, é o último trabalho com o “Fantasma da Ópera”, claro tenho consciência de que alguns não gostaram do que leram, mas continuaram dizendo pra mim, porque eu dou liberdade pra dizer não gostei...
Em “não gostei”, o locutor simula a voz do outro, reproduzindo a fala do aluno. Aqui , com base nos dêiticos, em um único enunciado, são apresentados dois locutores diferentes, o primeiro é refere-se a professora e o segundo aos alunos.
» insere em seu discurso uma voz do senso comum
Situação 11
P:...houve um tempo, quando eu comecei a trabalhar que eu pegava o livro didático e seguia piamente aquilo ali obedientemente aquilo ali, porque não tinha domínio, não tinha experiência, não tinha ousadia de não cumprir o que seu mestre mandava...
Na Situação 11, o locutor evoca o livro didático através de uma não-coincidência entre a coisa, livro didático, e a palavra, mestre.
» utiliza formas de retoque para explicar seu discurso
Situação 12
P:...e eu comecei a fazer perguntas a respeito de homem chorar, se homem chora? se homem não chora? essa visão machista, essa ideologia, essa visão estereotipada de que só mulher pode chorar, que o homem é forte. e de repente eles começaram a se animar e a falar do Kleber, do bam-bam. enfim, lá foi a aula toda né?
Observa-se, que através do discurso indireto, o trecho é extraído de uma enunciação outra, exterior em relação ao momento em que o discurso está sendo realizado. O locutor traz ainda para o seu discurso, o outro, Kleber, que era chamado de bam-bam, evocando, assim o desenho dos Flinkstons, e também o próprio programa de televisão Big Brother Brasil.
Presente em muitas situações da fala, tem-se ainda o né?, como marca lingüística utilizada para persuadir o outro, o interlocutor.
5-Considerações finais
Tendo como base a Análise de discurso de linha francesa, o estudo aqui apresentado, foi desenvolvido com base na análise dos dêiticos, através da qual se verificou que o locutor pode ocupar várias posições no discurso, caracterizando a alteridade discursiva. E, abordou-se, também, os discursos já constituídos historicamente, as não-coincidências do discurso consigo mesmo, através das diversas vozes que podem ser apreendidas implicitamente ou explicitamente quando o locutor utiliza um discurso outro.
Este trabalho não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas sim de proporcionar um estudo reflexivo sobre as diversas formas de apreensão do outro no discurso.
Referências bibliográficas
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Trad. de Pfeiffer, C.R. e outros. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1998.
DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.
GURGEL, Maria Cristina Lírio. Marcas de alteridade no discurso pedagógico. II Simpósio Internacional sobre Análise do Discurso: Discurso, Ação e Sociedade. UGMG, 2002 ( no prelo).
________________________.Aula de leitura: o discurso pedagógico e suas crenças. Tese de doutorado. PUC/São Paulo, 1997 (Inédita).
[1] Este estudo integra a pesquisa O discurso pedagógico e suas crenças: aula de leitura no 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries) do ensino fundamental , que desenvolvi como bolsista de Iniciação Científica, sob a coordenação da Prof. Dra. Maria Cristina Lírio Gurgel.