As Categorias Semântico-Lexicais
no
âmbito das Linguagens de Especialidade

Leandro Zanetti Lara

 

LÉXICO EM ESTUDO

A linguagem de especialidade escolhida para ser examinada neste trabalho foi a da Análise Sensorial Enológica, que constitui uma técnica da Enologia, por sua vez, subárea da Agronomia.

A Enologia se vale de duas técnicas de controle no decorrer do processo de produção e posterior avaliação do vinho: a Análise Química e a Análise Sensorial. A Análise Sensorial é uma investigação analítica das sensações que o vinho suscita através das impressões sensoriais do olfato, paladar e visão humanos, sensações estas que são reconhecidas e catalogadas (em outros termos, categorizadas). No subdomínio da Análise Sensorial, no decorrer do desenvolvimento da ciência enológica, desenvolveu-se uma grande quantidade de termos técnicos para que se pudessem exprimir os variados juízos acerca do estado e da qualidade de um determinado vinho analisado. Tais termos estão relacionados a três análises que, em conjunto, constituem a Análise Sensorial, a saber: a análise visual, a análise olfativa e a análise gustativa.

Para fins de análise, selecionamos apenas os termos da Análise Visual, cuja categorização constituirá objeto de investigação da presente análise. Ou seja, observaremos como se dá a categorização no âmbito terminológico, concentrando a análise pontualmente no léxico especializado das cores, que será, na seqüência, comparado ao léxico das cores em língua comum. O corpus a ser analisado foi extraído do banco de dados terminológicos do Projeto INTERCON/UFRGS – constituído através de tratamento automático das fontes documentais[1] – e corresponde a 38 termos do domínio da Análise Sensorial Visual Enológica.


 

LÉXICO DAS CORES: A PROPOSTA DE TAYLOR (1995)

Segundo Taylor (1995), a terminologia das cores constitui excelente campo de pesquisas para a teoria da categorização. Lingüistas e antropólogos concordam que as categorias não têm base perceptual nem tampouco base no mundoreal”. A realidade é um continuum difuso, e as categorizações da mesma são convenções. As categorias que percebemos (por, exemplo, os diferentes tipos de cores) não estão no mundo objetivamente. Antes, foram-nos impostas pelas categorias lingüísticas presentes na nossa língua. Se categorização depende de fatos lingüísticos, então, diferentes línguas apresentarão diferentes categorizações para um mesmo conjunto de entidades.

Analisando dados provenientes das pesquisas de outros estudiosos da lingüística cognitivista, tais como Eleanor Rosch e Berlin & Kay, Taylor aponta para a variedade de categorização através das línguas. Por exemplo, o russo não tem um termo genérico para azul, subdividindo esta porção do continuum do espectro das cores em duas categorias: azul claro e azul escuro. outras línguas, como o Zulu e alguns dos dialetos do sul da Itália, não diferenciam verde e azul. Possuem um termo, uma categoria, diferenciando os objetos de diferentes tonalidades dessa cor como verde como a grama ou verde como o céu. A multiplicidade de formas de categorização das cores nas diversas línguas sobressai ao analisarmos certas línguas africanas, como o Dani da Nova Guiné, que tem apenas dois termos para cores: preto e branco (branco corresponde a toda uma gama de cores quentesvermelho, laranja, amarelo, rosa e púrpura – e preto engloba todas as cores friastais como, preto, cinza, verde e azul). Dada tanta variação, resta saber se há uma lei geral de categorização subjacente ou não.

A fim de resolver esta questão, Taylor parte da visão saussureana de categorização das cores. Na abordagem estruturalista, temos que:

a)     Todas os termos para as cores têm um status igual. Alguns podem ser usados mais freqüentemente do que outros, mas, uma vez que o valor de cada termo é determinado por sua relação com todos os outros termos do sistema, nenhum termo pode ter um status privilegiado.

b)    Todos os referentes de um termo para cor têm status igual. A visão estruturalista prevê, entretanto, cores fronteiriças.

c)     único objeto legítimo dos estudos lingüísticos é o sistema lingüístico, não os termos individuais num sistema. Nem se pode comparar, legitimamente, itens lexicais isolados através das diferentes línguas.

Porém Taylor não assume a visão estruturalista. Baseando-se nos estudos de Rosch e Berlin & Kay acerca da noção de cores focais, Taylor proporá uma nova interpretação para a questão da categorização. Testes de cunho cognitivista empreendidos pelos estudiosos supracitados verificaram que os falantes de diferentes línguas, quando indagados a respeito de cores básicas tendem a apresentar a mesma série de itens lexicais. Logo, nesse espectro contínuo, parece haver pontos de referência específicos, como que cores básicas ou focais. Essas cores focais seriam no mínimo duas (branco e preto), nas línguas que apenas têm dois termos para cores, e no máximo onze (preto, branco, vermelho, amarelo, verde, azul, marrom, cinza, laranja, púrpura e rosa). Dada a característica focal nas categorias de cores, Taylor propõe que:

a)     As categorias de cores têm um centro e uma periferia. Isto significa que, ao contrário da visão estruturalista, membros de uma categoria não têm o mesmo status. Um termo denota, antes de mais nada, a cor focal e somente pela generalização dos exemplares focais que os termos das cores adquirem sua extensão denotacional plena.

b)    Devido à referência focal, os termos de cores não formam um sistema no sentido saussureano. A referência focal de uma cor, por exemplo, vermelho, é independente do fato de amarelo, laranja ou púrpura serem lexicalizados numa dada língua. A adição de um novo termo neste sistema, tal como laranja, pode fazer com que toda a extensão denotacional de vermelho se reduza, mas o centro da categoria vermelho permanece intacto.

Assim sendo, a terminologia das cores acaba tornando-se muito menos arbitrária do que os estruturalistas pensavam.


 

ANÁLISE DO LÉXICO

A teoria da categorização focal

no âmbito das linguagens de especialidade

A partir do estudo de Taylor acerca da categorização das cores nas línguas, passemos à análise dos dados do corpus a fim de observarmos se a categorização proposta por Taylor para as línguas comuns é aplicável à linguagem de especialidade em estudo. Na tabela abaixo, estão dispostos os 38 termos constituintes do corpus:

 

TABELA 1:

ESPECTRO DAS CORES NO LÉXICO ENOLÓGICO

1.        BRANCO

1.        TINTO

2.        branco-papel

2.        vermelho (termo genérico)

3.        branco com reflexos amarelados

3.        vermelho-violáceo carregado

4.        branco com reflexos esverdeados

4.        vermelho-violáceo

5.        amarelo com reflexos esverdeados

5.        vermelho-rubi com reflexos violáceos

6.        amarelo-palha

6.        vermelho-rubi-violáceo

7.        amarelo-limpo

7.        vermelho-claro

8.        amarelo-nítido

8.        vermelho-rubi

9.        amarelo-dourado

9.        vermelho-púrpura

10.     amarelo-âmbar

10.     vermelho-granada

11.     amarelo-âmbar tendente ao marrom

11.     vermelho-granada com reflexos amarelos

12.     amarelo-âmbar tendente ao moreno

12.     vermelho-rubi com reflexos alaranjados

1.        ROSADO

13.     vermelho-rubi-escuro

2.        rosa-pálido

14.     vermelho-granada

3.        rosa-claro

15.     vermelho-granada com reflexos alaranjados

4.        rosa

16.     vermelho-alaranjado

5.        clarete

17.     vermelho-tijolo

6.        rosa-antigo

18.     vermelho-moreno

7.        rosa-cereja

19.     vermelho-desbotado

Analisemos a categoria vermelho. Se optássemos pela visão estruturalista da categorização das cores, deveríamos considerar que, no âmbito do léxico especializado sensorial, as cores constituem um sistema lingüístico muito diverso daquele observado na língua comum. No caso do Português Brasileiro (doravante PB), contamos com uma categorização tripartida para a categoria vermelho: vermelho, vermelho-claro e vermelho-escuro (talvez possamos acrescentar vermelho-vivo ou vermelho-sangue). Porém, seja qual for o número exato de subcategorias para vermelho em PB, está longe de ser 19, como acontece na linguagem enológica.

Dentro desta abordagem, para a interpretação dos dados enológicos, analogamente à comparação de duas línguas (dois sistemas lingüísticos) exposta por Taylor, deveríamos comparar dois sistemas lingüísticos distintos: o especializado e o comum. Pelos postulados estruturalistas, o item lexical vermelho-claro, por exemplo, não teria no léxico enológico o mesmo status que tem na língua comum, dado que, na linguagem enológica, tal termo partilha a categoria vermelho com mais 18 termos, enquanto que, na língua comum, partilha a mesma categoria com dois ou três outros itens lexicais. Porém, verificamos que vermelho-claro corresponde basicamente ao mesmos referentes em ambos os sistemas. A diferença está, como aponta Taylor, no fato de a extensão denotacional deste termo ser distinta nos léxicos especializado e comum.

Logo, os dados conduzem para corroboração da interpretação proposta por Taylor para a categorização. Assim, devemos considerar a linguagem enológica e o PB não como sistemas de categorização distintos. Nãocategorias rígidas nas quais possamos separar os itens lexicais de forma estanque. Pois se introduzíssemos o termo vermelho-granada com reflexos alaranjados no PB, teríamos um rearranjo das extensões denotacionais dos demais itens lexicais, que, no entanto, continuariam a ser centro de categoria (exemplo: a noção básicaou focal – de vermelho, continuaria a mesma). Ou seja, as linguagens de especialidade, que apresentam um conjunto muito mais amplo de itens lexicais do que a língua comum num dado domínio do conhecimento, verificam, de forma cabal, a relevância da teoria da categorização focal, uma vez que a função de especificação de sentidos é inerente às linguagens de especialidade.

 

Níveis de categorização focal

Uma análise mais detalhada dos itens lexicais da Tabela 1 nos revela uma questão que não consta nos estudos de Taylor (1995). Na linguagem enológica, que nível devemos considerar para a categorização focal? Devemos considerar termos focais apenas a tríade branco rosado – tinto, ou devemos considerar focais as 12 categorias de branco, as 7 de rosado e as 19 de tinto? Se seguirmos a proposta de Taylor, temos de considerar as categorias branco, rosado e tinto como termos focais (centro de categoria) e as várias subcategorias de branco, rosado e tinto como a periferia das categorias referidas. Entretanto, este não é o caso, pois temos, na verdade, os 19 termos referentes à escala do vermelho (e os 12 de branco e os 7 de rosado) formando uma série de termos focais. Ao contrário do que se passa na língua comum, em que vermelho-granada e vermelho-tijolo são apenas tons de uma categoria, passíveis de serem intercambiados, estes termos nunca serão confundidos pelos especialistas em Enologia, pois constituem termos focais, muito específicos, que caracterizam o vinho precisamente, opondo-o às demais 17 categorias de vermelho (fato que podemos corroborar ao sublinhar-se que cada uma das 19 categorias de vermelho corresponde a uma determinada idade do vinho, ou seja, a escala de cores está, termo a termo, vinculada aos estágios de envelhecimento – portanto vermelho-granada é categoria focal e distintiva). Chegamos a um impasse, pois nos deparamos com um duplo eixo de categorias focais. Não podemos optar por um ou outro, visto que a natureza focal de ambos está comprovada.


Faz-se necessário, então, reformular a proposta de Taylor para a categorização, estabelecendo que as categorias focais nas linguagens de especialidade podem estar dispostas em vários níveis, hierarquizados conforme o seu grau de especificação. O esquema abaixo representa a categorização focal das cores na linguagem enológica distribuídas em vários níveis:

 

A cada nível, novas distinções são inseridas, adicionando-se novas categorias focais sem causar alteração nos níveis superiores. A hierarquização proposta mais uma vez comprova a categorização focal em detrimento da categorização sistêmica.

 

CONCLUSÕES

A categorização é um dos temas centrais na pesquisa lingüística; seja no nível semântico, sintático, morfológico ou fonológico, sempre estamos lidando com categorias. No nível lexical, a categorização assume maior relevo ainda, pois os itens lexicais têm por função básica a denominação das entidades da realidade, ou seja, têm por finalidade categorizar as experiências.

As cores sempre foram alvo dos estudos da categorização, dada a variabilidade de suas categorizações através das línguas. Dentre as propostas de interpretação, destacam-se a concepção estruturalista – categorização sistêmica – e a concepção cognitivista, proposta por Taylor (1995) – categorização focal. Taylor analisou as duas propostas no léxico comum, enquanto que o presente trabalho procurou analisá-las no nível terminológico.

A análise do corpus nos levou a corroborar a validade da proposta de Taylor para o léxico especializado, com a ressalva de que, no nível terminológico devemos ampliar a categorização em vários níveis hierarquizados Cabe ressaltar que esta estrutura de categorização hierárquica traduz que os léxicos comum e especializado apresentam diferenças substanciais no que tange às suas propriedades semântico-lexicais.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AMARANTE, J.O.A. Vinhos do Brasil e do Mundo para Conhecer e Beber. São Paulo: Summus Editorial, 1983.

BURTIN-VINHOLES, Dicionário de Francês Francês-Português Português-Francês. São Paulo: Globo, 1998.

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CATALUÑA, E. As Uvas e os Vinhos. Publicações Globo Rural - Rio de Janeiro: Globo, 1988.

LARA, L. A Representação Sintático-Semântica dos Verbos Denominais na Linguagem Enológica in KRIEGER, M.G. & ROCHA, M. A., Iniciação Científica: Caminho, Descoberta e Criatividade. Porto Alegre: UFRGS, 2001.

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PONTES, A. L. Terminologia Científica: o que é e como se faz. Revista de Letras. V. 19 – No.1/2 – jan./dez.1997.

RATTI, R. Como Degustar os Vinhos - Manual do Degustador. Bento Gonçalves: AEB Latino Americana, 1984.

RONDEAU, G. Introduction à la Terminologie. Paris: Gaetau Morin, 1984.

TAYLOR, J. R. Linguistic Categorization. Nova Iorque: Oxford University Press, 1995.

SCHROEDER, O. B. Iniciação ao Vinho. [Florianópolis]: UFSC, 1985.


 

[1] As fontes documentais do corpus selecionado para a presente análise correspondem a Amarante (1983), Cataluña (1988), Lona (1996), Ratti (1984) e Schroeder (1986).