AS
FRASES
FEITAS
NO
NORDESTE
Um
estudo
onomasiológico
Tadeu Luciano Siqueira Andrade
(UNEB)
INTRODUÇÃO
Na
sociedade
letrada, há
pessoas
que, ao
ouvirem
expressões do
gênero
seguir
como
pau
na
correnteza;
andar
como
bosta
nágua, acham-nas estranhas.
Por
que
isso ocorre?
É
exuberante e
rica a
linguagem
popular. No
pitoresco de
suas
comparações,
metáforas,
símbolos
entre
outros
recursos
semânticos, a
língua reflete
fielmente a
sua
alma e o
potencial
criador.
O
que ocorre
além do
preconceito é o
desconhecimento
de
que algumas
expressões
consideradas “erradas”
já foram
usadas
por
escritores
clássicos de
nossa
literatura,
tais
como Gil
Vicente, Camões e Pe. Vieira.
Os
grupos
sociais
distinguem-se
pelo
grau de
cultura
que
apresentam.
Em todas as
regiões, a
sociedade oferece diversas
camadas
desde as
mais
“detentoras do
saber”
até as
menos
favorecidas
pelo
conhecimento.
Toda
língua é
um
produto
social.
Por
assim
ser,
ela é
condicionada ao
falante e à
sociedade
em
que está
inserida, uma
vez
que todas as
camadas
sociais se
utilizam
um
recurso
comum:
“a
língua
traço
de
união
entre
os
membros
da
comunidade,
forma
lingüística
ideal
que
se impõe a
todos
os
indivíduos
de
um
mesmo
grupo
social.”
(Palhano: 1958).
É
impressionante
o
poder
criativo da
língua. No
falar nordestino, está
bem
nítida a
riqueza da
criatividade
lingüística.
Encontramos
expressões
que,
em poucas
palavras,
dizem
contrastes,
cúmulos,
ironia,
ênfase,
entre
outros.
São os
mil
aspectos
que,
através deles,
a
sabedoria
popular
transforma a
língua
em
estruturas
sintéticas e variadas no
conteúdo,
isto é, o
que
quer
dizer e na
forma,
ou seja, o
como
dizer.
Esta
pesquisa
consiste num
estudo
semântico de
expressões
populares do
Nordeste,
observando a onomasiologia.
Foram coletadas
em
conversas
informais,
pesquisa
bibliográfica (Antenor
Nascentes,
André Cabral, Leonardo
Mota) e
pesquisa de
campo,
realizada
em algumas
cidades do
Nordeste.
REFERENCIAL
TEÓRICO
Para Baldinger (apud
Cavalcante, 1998) “no
estudo
do
léxico,
importa
considerar a
semasiologia (ou
polissemia)
que
é o
estudo
do
significante
e dos
significados
e onomasiologia (ou
sinonímia), o
estudo
do
significado
e
seus
significantes.”
O
estudo do
léxico de uma
língua
não se resume
no
estudo a
palavra
isolada na
sua
estrutura
mórfica,
mas a
palavra
contextualizada,
ou seja, as
palavras
que formam as
expressões de
uma
determinada
região.
Eugênio Coseriu (apud.
Pereira: 2000)
considera as
expressões
como
perífrases
léxicas.
Elas estão
inseridas no
nível
lingüístico do
sintagma e
cuja
interpretação
está no
nível do
léxico.
A
língua
real é aquela
que está
centrada no
uso do
povo. É o
meio do
qual o
homem dispõe
para
fazer
analogia,
para
falar de
sua
vida,
para
interagir no
processo
social.
Não é uma
língua
diferente, é
uma
língua
viva
que
não se
entregou ao
progresso
científico,
conserva,
em
suas raízes, a
história de
seu
povo.
Sá (1998) diz
que “o
Nordeste
não
fala
uma
língua
diferente.
Longe
disso.
Mas
os nordestinos temperam a
sua
conversa
com
expressões
que
fogem do
alcance de
pessoas
de outras
regiões”.
Esses
temperos
são as
metáforas, as
analogias, as
sinonímias
entre
outros.
O nordestino,
sem
conhecê-las, as
usa
para
dar
mais
vida ao
seu
léxico.
Não há
freios
para a
língua.
Por
isso, as
frases
feitas no
Nordeste estão
cada
vez
mais
distantes dos
glossários, da
norma
culta e das
gramáticas,
porque a
língua
falada
nos
bares da
vida, nas
ruas e na
lutas
pela
sobrevivência
está
sempre
adiante
daqueles
que desejam a
padronização.
Há
expressões
que se mantêm
em
determinadas
áreas, emigram
para outras
devido à
movimentação de
grupos
sociais, de
trabalhadores
que
vão à
busca de
melhoria de
vida.
Essas
expressões
podem
ser esquecidas
pelo
contato
com as
formas do
dizer do
novo
ambiente
ou podem
ser mantidas,
como,
por
exemplo, a
feira de
São Cristóvão
no
Rio de
Janeiro.
O
grau de
vitalidade de
um
povo pode
ser avaliado
pelo
seu
poder
criativo.
A
linguagem
popular
sobretudo
reflete magnificamente a
imensa
caudal
da
sensibilidade
e da
fantasia,
as
manifestações
espontâneas da
alma
e da
raça
em
épocas
diversas,
frutos
da
experiência
acumulada
de várias e sucessivas
gerações.
(PALHANO: op.cit).
ANÁLISE DAS
PERÍFRASES
LÉXICAS
O
estudo
onomasiológico das
frases
feitas está
centrado
em
cinco
expressões
muito
conhecidas
não
só
Nordeste
como
em
todo o Brasil.
Foram pesquisadas
pelo
professor
Pereira
(UERJ),
Câmara
Cascudo, Leonardo
Mota
entre outras.
São
elas:
1. Cagado e cuspido;
2.
Onde
o
diabo perdeu as
botas;
3.
Sofrer
que
só
cego
em
porta
de
igreja;
4.
Pensar
que
o
céu
é
perto;
5.
Toco
de
cachorro
mijar.
Neste
estudo,
percebe-se o
poder da
língua,
através das
metáforas, o
jogo
lingüístico e
a
forma de
cada
um
expressar-se, dizendo,
em
suas
palavras, o
mesmo
significado
para o
significante,
daí o
processo
semântico da
onomasiologia,
que consiste
no
estudo da
série
sinonímica apresentada
por
um
determinado
léxico.
1. cagado e cuspido:
1.1.
Ele
é cagado e cuspido o
pai.
1.2.
Ele
é a
cara do
pai.
1.3.
Ele
é
tal
qual
o
pai.
1.4.
Ele
é o
pai
em
carne
e
osso.
Essas
expressões
fazem
referência à
expressão
cuspido e escarrado.
A
expressão
cagado e cuspido é uma desfiguração de esculpido
em
Carrara, usada
para
indicar
pessoas de
fisionomias
parecidas
ou
com
notável
semelhança
física.
XAVIER (2000:175) diz
que o
“termo
esculpido (talhado
a
cinzel
ou
escopro)
não
é
familiar
à
gente
iletrada,
foi
logo
trocado
por
um
mais
conhecido:
cuspido.”
O
termo
cagado, acredita-se
que tenha
surgido da
expressão
em
Carrara (cidade
da Itália,
conhecida
pela
excelência de
seus
mármores.)
Há
outra
variante
para
tal
expressão
esculpido e
encarnado,
como se o
rosto e o
espírito de
alguém
estivessem entranhados no
rosto
ou no
corpo de
outra
pessoa.
2.
Onde
o
diabo
perdeu as
botas:
Essa
expressão é
usada
quando se faz
referência a
lugares
distantes,
pouco
habitados e de
difícil
acesso.
Leonardo
Mota
(1991:325) cita
como
sinônimos:
2.1.
Onde
o
diabo perdeu as
esporas;
2.2.
Nos
cafundós
do Juda;
2.3.
Onde
o
vento fez a
curva;
2.4. No
oco do
mundo;
2.5 .Onde
o
diabo perdeu as
botas -
(Alberto Bessa
apud.
Mota);
2. 6 .No
calcanhar
de
Judas;
2. 7.
Nos
confins
de
Judas;
2. 8. No cu de
Judas.
(Perestrelo
apud
Mota).
PEREIRA
(1999), justificando o
valor
semântico da
expressão, diz
que
“Judas
sendo
um
personagem
malquisto
não
se pode
imaginar
que
tenha escolhido
em
seu
mais
profundo
desespero
um
lugar
bonito
e
agradável
para se
enforcar.”
Daí o
valor
semântico da
expressão.
3.
Sofrer
que
só
cego
em
porta
de
igreja
(Mota
op cit): faz
alusão ao
sofrimento
excessivo de
alguém.
Encontramos,
paralelas a
expressão
que
só,
as
seguintes
locuções:
como,
usado
por uma
minoria de
falantes, e
que
nem,
usada
pela
maioria.
Nas
conversas
com várias
pessoas,
encontramos as
seguintes
expressões:
3.1.
Sofrer
que
só
couro de
pisar
fumo;
3.2.
Sofrer
que
só
anão
para
crescer;
3.3.
Sofrer
que
só
suvaco de
aleijado;
3.4.
Sofrer
que
só
suvaco de
muleta;
3.5.
Sofrer
que
só
bode embarcado;
3.6
Sofrer
que
nem
burro
velho.
4.
Pensar
que
o
céu
é
perto:
no Adagiário
Brasileiro,
Leonardo
Mota
registra o
uso de
tal
expressão
quando se
supõe
que uma
coisa é de
fácil
realização.
O
autor diz
que
tal
expressão é o
mesmo
que:
4.1.
Pensar
que
babado
é
bico;
4.2.
Pensar
que
sebo
de
tripa
é
gordura;
4.3.
Pensar
berimbau
é
gaita;
4.4.
Pensar
que
mijo de
padre
é
Santos
óleos.
Ainda
encontramos as variações:
1. Pensando
que
beiço
de
jegue
é
arroz
doce;
2. Pensando
que
foucinho de
porco
é
tomada.
5. No
linguajar do
povo
nordestino, os
homens
baixos
não fugiram
das
metáforas.
Mota ( op.cit)
registra:
1.
Toco
de
cachorro
mijar;
2. Priquitinha de
meia
carga.
Registramos
além dessas,
as
seguintes
variantes:
5.1.
Tamborete
de
forró;
5.2.
Escada
de
tirar
maxixe;
5.3.
Pintura
de
rodapé;
5.4.
Bufa
de
anão;
5.5.
Toco
de
amarrar
jegue.
Essas
analogias
ocorrem
graças às
metáforas
que o
povo constrói,
estabelecendo uma
relação
semântica,
como
por
exemplo,
o
tamborete
de
forró,
espécie de uma
cadeira (tamborete)
em
que sentam os
sanfoneiros no
Nordeste. O
maxixe é uma
planta
rasteira,
por
ser
assim,
não é
necessário
escada
para colhê-lo; o
rodapé (base
da
parede) é uma
espécie de
barra
pintada de uma
cor
escura
que os
mestres de
obra
costumavam
fazer no
rodapé das
paredes de uma
casa.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
As
frases
feitas
são
construções
frasais
cristalizadas na
forma e no
sentido
pelo
uso
generalizado.
Num
idioma
como o
português, permeado de
frases
feitas, seria
difícil
elencar
todas, uma
vez
que,
através do
processo de
analogia, a
fraseologia
popular
desenvolve-se e
disputa
com a
coerência e
lógica. A
seiva de
que se nutre o
linguajar do
povo é a
expressividade.
O
estudo das
frases
feitas na
língua
portuguesa é uma das
mais
importantes
campos da
língua
que está
para se
desbravar.
Ao
longo dos
tempos, muitas
expressões
entram
em
uso, outras
desaparecem.
Esse
caráter
dinâmico faz o
léxico
desenvolver-se.
Não há
freios
para a
língua.
A
sociedade, na
velocidade
supersônica,
ainda
não conseguiu
ir
além da
evolução
lingüística.
A
evolução
não ocorre
nos
grandes
livros
nem
nos
compêndios
gramaticais,
pois
esses
registram uma
determinada
modalidade da
língua. A
evolução está
na
boca do
povo,
pois
já dizia
Manuel
Bandeira:
“A
vida
não
me
chegava
pelos
jornais
nem
pelos
livros.
Vinha
da
boca
do
povo
na
língua
errada do
povo.
Língua
certa
do
povo.
Porque
ele
é
que
fala
gostoso o
português do
Brasil.” (Evocação
do
Recife).
Ao
lado da
língua
erudita,
geralmente
cristalizada nas
grandes
obras, o
povo possui
uma
língua
falada e
viva. É
com essa
língua
que os
grupos
humildes se
constituem
como
sujeito da
história e do
processo
social.
Estudar a onomasiologia
das
frases
feitas no
Nordeste é
viajar
pela
criatividade
do
homem,
observando a
sua
opulência
semântica; é
registrar uma
parcela do
patrimônio
lingüístico-cultural
que o
tempo liquida
sem
piedade.
O
espaço
geográfico
mais adequado
à
preservação e
a
criação de
frases
feitas é
aquela
comunidade
calma
com
ritmos de
vida
serenos
em
que a
meditação e a
reflexão
ainda se fazem
com
intensidade.
Falar
em
Nordeste, no
seu
panorama
lingüístico, é
lembrar do
ritmo da
viola
nordestina; do
jogo
lingüístico do
repentista; é
ouvir o
aboio do
vaqueiro,
consolando a
rês; é
sentir a
necessidade de
o
caboclo
usar o
dialeto nas
terras
distantes,
lembrando da
sua
terra
natal,
berço
que
tanto amou e
serviu-lhe
de
palco
para as
lutas da
vida; é
ler o
olhar dos
bonecos de
Olinda, balançando-se à
voz de Capiba;
também é
lembrar de
Zé Dantas;
das
sextilhas de
Juvenal Galeno; é
ouvir a
língua do
povo
falada
por
Patativa do
Assaré e
cantada
por Luiz
Gonzaga.
É
assustador no
limiar de
um
novo
século,
marcado
pelo
progresso
científico,
em
que os
homens
tornam-se
mais
próximos,
ainda sintamos
o
preconceito
em
relação ao
falar,
especialmente
o nordestino.
O
falar do
Nordeste é do
pé - de -
serra
para o
universo da
língua.
São
expressões
sentidas na
pele
queimada
pelo
sol;
são
ensinamentos
minados
nos
leitos
secos dos
rios, nas
conversas ao
redor das
cacimbas
nos
engenhos e nas
lutas
diárias
pela
sobrevivência.
São os
repentes de
meio de
feira,
denunciando as
mazelas
sociais. É a
polifonia de
um
povo
que clama
por
justiça,
usando a
língua
como
liberdade, e
não
como
opressão.
Nas
reminiscências
de nossas
vidas, devemos
lembrar do nordestino
não
como
um
falante
deficiente
porque
fala
diferente das
demais
regiões do
Brasil,
mas
com
um
falante
diferente
(c.f. Magda
Soares,
a
diferença
não
é
deficiência).
Se
nada
mais
me
restar a
fazer, retomarei
meus
estudos,
lembrando o nordestino,
não
como o
“caipira
de FHC”, e
sim
como
aquele
homem
que,
enfrentando as
atrocidades da
vida, buscou,
na
esteira do
tempo
resgatar, e
conservar as
suas raízes.
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