ÀS
MARGENS
DOS
SERTÕES
Maria Lucia Mexias Simon
(USS e
UVA)
No
ano
em
curso,
lembramos o
centenário da
grandiosa
obra de
Euclides da
Cunha.
Publicado
cinco
anos
depois dos
episódios
descritos (a
guerra dos
Canudos),
permanece
como
monumento,
obra
fundamental
para
que
deseja “sentir”
o Brasil e os
brasileiros.
Ainda
mais:
diante do
cenário de
violência
em
que se
encontram as
grandes
cidades
brasileiras, é
impossível
não
traçar
paralelo
entre os
“excluídos”
urbanos de
hoje e os “desvalidos”
sertanejos de
Euclides.
Nos
últimos
momentos da
luta, na
terra arrasada,
com a
definitiva
recusa de
rendição,
quando os
Canudenses eram capturados aos
montes,
não restava
outra
solução a
não
ser abatê-los
sumariamente.
Para
isso,
procurava-se
um
local
mais
ou
menos afastado
e “agarravam a
vítima
pelos
cabelos,
dobrando-lhe a
cabeça,
esgargando-lhe o
pescoço e,
francamente
exposta a
garganta,
degolavam-na”. Podia
ocorrer
também
falta de
tempo
para
muitos
preparativos.
Nesse
caso “o
processo
era
mais
expedito:
varavam a
vítima a
facão.
Um
golpe
único,
entrando
pelo
baixo
ventre.
Um
destripamento
rápido (...)
aquilo
não
era uma
campanha,
era uma
charqueada.”
se o
mal
estava
com os
canudenses, viu-se o
mal
ser extirpado,
não importa à
custa de
quantas
vidas humanas,
não se sabendo
mais
porque
tanto
mal.
Se a
execução
sumária,
com
requintes de
crueldade
não foi
privilégio do
episódio de
Canudos, a
indignação do
autor vem do
fato
que os
agentes da
lei,
que
lá foram
enviados
para
manter a
ordem,
comportavam-se
como tomados
da
volúpia de
matar,
como
assassinos
desenfreados.
Assim agiam na
certeza de
que “a
história
não chegaria
lá”. Se
não houvesse
Euclides,
com
sua
pena
mais do
que inspirada,
provavelmente saberíamos
pouco desse
furor
homicida,
como
pouco sabemos
de
outros
episódios.
Também
nos
porões da
Ditadura,
acreditava-se
que
a
história
não
chegaria
lá.
O
sertão,
ainda
hoje
inóspito,
em 1897 o
era
muito
mais. A
localidade de
Canudos,
árida,
difícil,
pobre,
distante,
rodeada de
montanhas
era o
perfeito
Couto. Os canudenses, na
sua
vida modesta,
severa,
pouco teriam
despertado
atenção,
não se
tivessem de alguma
forma organizado, se
não tivessem
um
líder
reconhecido, acatado e
um
arremedo de
governo
constituído.
A
fusão e
confusão
entre as
forças da
lei e
aqueles
que devem
ser
por
elas tolhidos
não é
fato
novo. A
execução
tanto
cruel
quanto
desnecessária a
mutilação a
tortura
não
são
fatos
novos. Partem
de
vários
pontos.
São
mais
apavorantes
quando
seus
atores se
organizam, têm uma
hierarquia, uma
tática e,
até
mesmo,
um
linguajar próprio.
A
literatura tem,
com
freqüência,
passeado
por
esse
tema. Vitor
Hugo transformou
para
sempre
em
referenciais os
seus Quasímodo
e Jean Valjean.
Também o
fizeram Dostoievsky e
tantos
outros. A
abordagem,
porém
muito difere.
Não é
em
vão o
protesto dos
indivíduos da
raça
negra
contra
Pai
Tomás. O
homem
simples
é apresentado
por
demais
simples. O
homem-objeto foi
por
demais
coisificado, mostrado
como
nulamente
senhor do
seu
destino e,
ainda
mais,
apresentado
como
padrão de
boa conduta.
No Brasil,
também tem-se
discorrido
sobre os
“excluídos”,
com diversas
abordagens:
o
pobre de
Aluísio de Azevedo é
produto, é
predestinado;
o
pobre de
Graciliano
Ramos é
petrificado;
o
pobre de
Monteiro Lobato é
apático;
o
pobre de
Lima Barreto é
ressentido, desenvolve uma
ira
patológica;
o
pobre de
Guimarães
Rosa é,
sobretudo, poético;
o
pobre de João
Antonio é
boêmio.
Ainda teríamos
a
considerar a
visão de José
Lins do
Rego, Simões Lopes
Neto e
tantos
outros.
Em
geral, falam
os
autores
sobre o
desvalido,
numa
visão
externa; seja
por
destino, seja
pela
maldade dos
homens, seja
pela
própria
incompetência, a
pobreza é
tida
com
irremediável,
não se apontam
soluções.
Visando à
indignação,
visando à
simples
descrição,
não se apontam
causas
removíveis
para as
situações
apresentadas.
São
ficções
românticas,
com alguma
base
verídica,
mas
sempre
românticas.
Outro
enfoque é o
falar de
dentro
como o fez
Euclides.
Dentro
geograficamente,
por
estar a
escrever no
próprio
cenário dos
acontecimentos;
dentro
historicamente,
por
estar a
escrever ao
mesmo
tempo
em
que os
fatos ocorrem.
Dentro
socialmente,
pela
sua
fascinação
claramente
assumida,
ante a
natureza-cenário, e o homem-ator.
Depois de
Euclides,
expressões
como
estouro da
boiada,
sertões
nunca
mais tiveram a
mesma
carga de
expressividade, tornando-se
até
intraduzíveis
pelo
que
representam
social,
econômica e
mesmo
afetivamente.
Nascida
como
série de
reportagens
para
O
Estado
de
São
Paulo, a
obra despertou
interesse
desde o
lançamento,
por
seu
estilo
imaginoso,
brilhante e
pelo
assunto. No
momento,
não podemos
considerá-la
sucesso de
vendas
nem de
público. Uma
das
razões
apresentadas
para
tão
importante
trabalho
ter,
atualmente,
pequeno
número de
leitores é
ser a
obra
quase
tão
inacessível,
tão
impenetrável,
quanto o
próprio
sertão. Foi
acusada de
pomposa e
grandiloqüente,
até
mesmo
pedante.
Grandiloqüente o foi,
para fazer-se
ouvir
em
meio ao
vozerio do
litoral.
Rebuscada
também o foi,
como
meio de
atingir a
exatidão
narrativa.
Euclides é
exceção no
panorama da
literatura
brasileira
por
ser
um nomeador.
Os
elementos da
fauna e da
flora, os
utensílios
recebem
seu
nome
específico,
onde
outros
autores
diriam,
simplesmente,
árvore,
pássaro,
arma,
sacola.
Enquanto o
discurso do
narrador é “uma
combinação do
vazio vozeante
do
litoral e do
silêncio
clamoroso dos
sertões”, o
discurso dos
personagens
raramente se
mostra; nessas
raras
aparições vem
reduzido a
monossílabos:
-
Sei
não.
-
É
lá.
Neste
falar
lacônico,
Euclides
encontra
energia a
par de
altivez,
indiferença. O
leitor
encontra
forte
contraste
entre a
concisão
extrema do
sertanejo e o
luxo vocabular
do
autor. Na
obra aparecem
o
eufemismo ao
lado do
termo
técnico, o
regionalismo
ao
lado do
arcaísmo. O
uso de
termos
científicos
torna a
linguagem
concisa ,
precisa,
confere
maior
veracidade à
narrativa,
torna a
obra
multidisciplinar.
Euclides tem
formação
científica
singular.
Cursou
Escola de
Engenharia,
depois
Escola
Militar.
Por
esses
caminhos e
por
suas múltiplas
leituras,
chegou às
idéias de
Comte,
primeiramente,
e, a
seguir, Darwin, Marx,
Lombroso e Taine.
Era,
enfim,
um
homem do
seu
tempo,
com a
visão de
seu
tempo, o
que pode
explicar algumas
posições
que
hoje seriam
tidas
como
“politicamente incorretas”.
Na
intenção de
oferecermos ao
leitor
trilhas
para
penetrar ‘Os
sertões’ (de
Euclides e
outros),
estamos empenhados, no
momento, na
elaboração de
glossário,
visando à
definição de
termos
constantes da
obra,
que,
como
já se disse,
envolvem
arcaísmos,
regionalismos
e
tecnicismos e
mesmo
criações do
autor.
Utilizamos a
edição Ática,
São Paulo,
2000,
com
revisão e
notas de
Walnice
Nogueira
Galvão. Dessa
edição
constam,
também,
variantes, o
histórico das
edições
anteriores,
com
suas
discrepâncias
e os
critérios de
uniformização ortográfica. Trata-se,
portanto de
edição
cuidada, de
interesse
filológico.
Citamos
aqui
um
pequeno
trecho,
como
exemplo do
trabalho
desenvolvido:
Correra
nos
sertões
um
toque de
chamada...
Dia a
dia chegavam
ao
arraial
singulares
recém-vindos,
absolutamente
desconhecidos.
Vinham ‘debaixo
do
cangaço’: a
capanga
atestada de
balas e o
polvarinho
cheio; a
garrucha de
dous
canos
atravessada à
cinta, de
onde pendia a
parnaíba
inseparável; à
bandoleira, o
clavinote de
boca de
sino.
Nada
mais. Entravam
pelo
largo,
sem
que
lhes
indagassem a
procedência,
como se fossem
antigos
conhecidos.
Recebia-os o
astuto João
Abade
que,
pleiteando-lhes
parelhas na
turbulência,
tinha a
ascendência de uma
argúcia
rara e uns
laivos de
superioridade
mental,
graças
talvez à
circunstância
de
haver estudado no
liceu de uma
das
capitais do
Norte, de
onde fugira
após
haver assassinado a
noiva,
seu
primeiro
crime. O
certo é
que os
dominava e disciplinava. ‘Comandante
da
rua’,
título
inexplicável
naquele
labirinto de
bitesgas,
sem
abandonar o
povoado exercia-lhe
absoluto
domínio
que estendia
pela
redondeza, num
raio de
cinco
léguas
em
volta,
percorrida continuamente pelas
rondas
velozes dos
piquetes. (p.
259).
Observamos o
uso de
singulares,
por
pessoa
só; os
nomes das
armas,
específicos
ou
por
metonímia (garrucha,
Parnaíba, clavinote); bitesgas (de
etimologia
não
localizada)
por
trilhas.
No
decorrer das 486
páginas da
obra, nessa
edição,
não
falta
material a
garimpar. Espera-se
não
prejudicar a
fruição de
sua
primeira
leitura, aos
leitores
emocionados. “No
relevo de
suas
circunvoluções
expressivas estão as
linhas
essenciais do
crime e da
loucura.
Que a
ciência diga a
última
palavra”. (p.
498).
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escrita e os
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On-line.
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