CAMPOS CONCEPTUAIS, CAMPOS LEXICAIS
CAMPOS SEMÂNTICOS
DA COGNIÇÃO À SEMIOSE

Cidmar Teodoro Pais (USP/UBC)

Introdução

Este trabalho propôs-se a examinar alguns aspectos relevantes do processo de produção discursiva, particularmente das diferentes etapas do percurso da enunciação e de seus resultados no enunciado. Para tanto, torna-se necessário relembrar, preliminarmente, um dos grandes avanços teóricos da lingüística pós-moderna e da semiótica, a clara distinção entre texto e discurso, que, de modo geral, eram confundidos ou considerados equivalentes, sinônimos ou quase-sinônimos, no ‘estruturalismo clássico’.

Com efeito, entende-se discurso, nas teorias mais atuais, como um processo de produção e texto, como o resultado, o produto do discurso. De maneira mais precisa, o discurso, enquanto processo, é uma microssemiótica. Contém o discurso, por sua vez, dois processos de enunciação, o processo da enunciação de codificação, realizado pelo sujeito-enunciador, e o processo da enunciação de decodificação, realizado pelo sujeito-enunciatário. Desses dois processos de enunciação resultam dois textos-enunciados o texto-enunciado do sujeito-enunciador e o texto-enunciado do sujeito enunciatário (Pais, 1993: 454-521; 1995a; 1995b).

Por outro lado, convém assinalar as relações que se estabelecem entre o processo discursivo e o sistema que o autoriza. Numa concepção dinâmica ou dialética de sistema e estrutura, o sistema não é algo imanente mas subjacente aos discursos. O sistema, assim concebido, é a instância de competência que autoriza a produção do discurso. O discurso manifestado, a seu turno, produz significação - objetos semióticos, dotados de um plano do conteúdo e um plano de expressão -, funções semióticas e/ou metassemióticas; produz, ainda, informação - recortes culturais -; produz, também, uma reformulação parcial, em maior ou menor grau, da ideologia sustentada, da ‘visão do mundo. Assim, um discurso em parte reitera sinificações e informações geradas em discursos precedentes, em parte produz significação e informação nova. Assim, a produção de um discurso manifestado é parcialmente recuperada pelo sistema ou pela competência, determinando sua auto-regulagem ou, se preferirmos, um novo estágio do sistema, da competência, que autoriza o discurso subseqüente. Configura-se, assim, o processo histórico do complexo sistema x discurso dialeticamente articulados, ou seja, de um processo semiótico, sustentado por duas forças ou tendências contrárias, conservação x mudança (Pais, 1993: 525-533).

Parece, pois, adequado situar nesse quadro teórico o processo da produção discursiva e examinar as diferentes patamares, etapas e/ou transformações que se dão no percurso do processo de enunciação de codificação, do nível mais profundo da conceptualização, ao da semiose, enquanto produção da significação, observável no texto manifestado. Por limitação do espaço, não se tratará, aqui, do percurso da enunciação de decodificação.

Percurso da enunciação de codificação, da percepção à conceptualização

Em princípio, todo discurso ocorre como uma análise de uma vivência, ou de uma experiência, que se dê na relação entre um sujeito e o mundo exterior, ou que se realize no seu imaginário. De fato, uma vivência ou experiência se torna inteligível para o próprio sujeito, na medida em que seja discursivizada.

A primeira condição, pois, para desencadear-se um discurso, é a percepção de uma experiência. Não importa que essa percepção seja a de um evento que põe em relação o sujeito e o mundo exterior, ou que o mesmo seja vivenciado no imaginário do sujeito, como um simulacro construído em função de sua experiência anterior. De toda maneira, tal percepção se realiza por meio dos sentidos de que dispõe o corpo humano. Entretanto, não acontece, nesse momento, uma percepção biológica, neutra e ‘objetiva’, como a que se supõe que ocorra com os animais. Os seres humanos distinguem-se dos outros animais do planeta, por sua diversidade lingüística, cultural, social e histórica. Cada comunidade lingüística e sociocultural sustenta, assim, nos processos semióticos verbais, não-verbais e sincréticos, uma ‘visão do mundo’, um mundo semioticamente construído. Nessas condições, embora as potencialidades biológicas dos seres humanos sejam as mesmas, as pessoas que nascem numa comunidade são ensinadas a ‘pensar o mundo’, tal como se constrói na língua, na cultura, na sociedade, nas semióticas não-verbais e sincréticas. Daí resulta que a percepção biológica é culturalmente filtrada. Assim, por exemplo, a maioria dos brasileiros espera o verão, para banhar-se no mar, ao passo que alguns noruegueses não querem mais mergulhar, no começo da primavera, porque “não é mais refrescante!”.

Uma vez realizada a percepção de uma vivência, segue-se o complexo processo de conceptualização, ou seja, da análise semântico-conceptual da experiência, realizada por meio de traços semântico-conceptuais, a sua conversão em conjuntos de semas conceptuais, atributos semântico-conceptuais e suas redes, no nível da semântica cognitiva.

É necessário distinguir, nesse patamar, três tipos de atributos dos ‘objetos do mundo’, as latências, as saliências e as pregnâncias (Pottier, 1992: 52-78). São consideradas latências os traços semântico-conceptuais potenciais, possíveis, na semiótica natural; são chamadas saliências os traços que se destacam por si mesmos, ainda na semiótica natural; as pregnâncias são traços semântico-conceptuais ou atributos que resultam de uma escolha do sujeito-enunciador individual e/ou coletivo.

A combinação desses três tipos de traços conduz à construção de um protótipo (Dubois, 1990: 29-100), ou seja, um núcleo noêmico, uma espécie de minímo semântico. Os protótipos autorizam a construção de conceptus, um conjunto de traços semântico-conceptuais, ou um conjunto noêmico, um semema conceptual que equivale a um ‘modelo mental’ (Rastier, 1991: 73-114; Pais- 1993: 546-553; 562-568). Esse ‘modelo mental’ articula-se dialeticamente a um recorte cultural, um designatum.

Esse processo de conceptualização, ou de cognição compreende uma rede complexa de vários tipos de conceptus, que configuram um metassistema conceptual, instância de competência pré-semiótica e trans-semiótica que preside o funcionamento de todas as semióticas verbais, não-verbais de uma mesma comunidade lingüística e sociocultural, isto é, uma macrossemiótica (Pais, 1993: 543-554; 556-562; 1995 a e b; 1997, 1998).

Por outro lado, esse ‘modelo mental’, mais precisamente, o conceptus lato sensu, no nível semântico cognitivo, tem uma estrutura complexa. Compreende: a) o conceptus stricto sensu, subconjunto dos traços semântico-conceptuais ‘biológicos’ ou ‘universais; b) o metaconceptus, subconjunto dos atributos culturais, ideológicos; c) o metametaconceptus, subconjunto dos traços modalizadores, manipulatórios; d) o arquiconceptus, subconjunto-intersecção, que autoriza as transcodificações multilíngües e trans-culturais (Barbosa, 2000). Temos:

Classes de Noemas / conceptus Caracterização semântico- conceptual Natureza
Noemas ‘universais’ Universais’ semânticos hiperprofundos Mecanismos básicos cognição
Conceptus Atributos semântico-conceptuais culturais Pregnâncias/escolhas
Metaconceptus Atributos culturais ideológicos Pregnâncias/ideologia
Metametaconceptus Atributos modalizadores manipulatórios Pregnâncias/ideologia
Arquiconceptus Atributos multiculturais, multilingüísticos Intersecção conceptual

Figura 1: Classes noemáticas e conceptuais

Esse patamar semântico-cognitivo contém, ainda, outro tipo de construto, o complexo conceptual. Um conceptus pode ser a configuração semântico-conceptual de um ‘objeto no mundo’, como por exemplo, <<cão>> ou <<vaso>>; pode corresponder a um processo que se dá entre dois ‘objetos’, como <<quebrar>>; pode, enfim, ser o semema conceptual de um atributo, um atributo de ‘objeto’, como <<feroz>>, ou um atributo de processo, como <<ferozmente>>. Assim, o complexo conceptual estabelece relações entre ‘objetos no mundo’, processos e atributos. Essas relações são de dois tipos básicos, o da atribuição e o da transformção.

No primeiro caso, um traço semântico conceptual é atribuído ao semema conceptual da base, como em

<<cão>> ¬ <<feroz>> O ¬O

<<cão>> ¬ <<animal>> O ¬•

No segundo caso, um ‘objeto no mundo’1 é causa de transformação de um ‘objeto’2, que passa do estado a ao estado b. Tem-se, na formalização modular de Pottier (1987: 59-96):

a

A <Causa> B ¯ ou O ® O

b

como em <<cão>> <<quebrar>> <<vaso>>

Nesses termos, qualquer um desses complexos conceptuais é suscetível de sofrer uma conversão, ou seja, ser semiotizado e atualizar-se em discurso manifestado, seja numa semiótica verbal, seja numa semiótica não-verbal (pintura, escultura, etc.), seja, ainda, numa semiótica sincrética (teatro, circo, cinema, televisão, etc.).

Tomando por base modelo anterior nosso (Pais, 1978, 1979, 1980), construímos um novo modelo teórico que procura dar conta da produtividade sistêmica e discursiva, da produção, reiteração, transformação dos recortes e das significações que os manifestam em discurso, da modificação da competência, decorrente da produtividade discursiva, ao longo do processo histórico, numa dinâmica configuradora de processo semiótico (Pais, 1993: 330-346. 405-419). Explica-se, assim, o processo de produção do discurso, a partir do sistema - a competência autoriza o desempenho -; a produção, reiteração, transformação dos recortes e das significações que os manifestam em discurso; a produção de novo estágio do sistema, modificação da competência, decorrente da produtividade discursiva, ao longo do processo histórico da sociedade, em seu todo, como em cada um de seus membros, numa relação dialética.

Essa produção, reiniciada e reiterada em cada enunciação, conduz à (re)constituição de um metassistema conceptual - ‘léxico’ e ‘sintaxe’ -, disponível para atualização em qualquer semiótica-objeto de determinada comunidade, caracterizando-se como uma pancronia (funcionamento e mudança). Articulam-se dialeticamente conceptus e recortes culturais, ou designata, que funcionam como 'referentes', como 'objetos do mundo’ semioticamente construído da cultura e da sociedade envolvidas.

Importa salientar nesse modelo, pois, de forma mais minuciosa, alguns aspectos das relações entre o fazer do sujeito da cognição e o fazer do sujeito da semiose.

Em cada processo discursivo, desenvolve-se o fazer persuasivo do sujeito enunciador do discurso, através dos patamares da percepção, da conceptualização, da semiologização, da lexemização, da atualização, da semiose (Pais, 1995a, 1995b, 1997, 1998, 2001). Verifica-se que, na enunciação de codificação e a partir da percepção biológica - culturalmente filtrada em função dos comportamentos e condicionamentos adquiridos, ou, noutros termos, do ‘aprendizado’ de uma comunidade - dos dados da experiência, desencadeia-se no patamar da conceptualização, a produção de modelos mentais - conceptus - e recortes culturais - designata -, que leva em conta a prévia detecção e escolha de atributos semânticos conceptuais, das pregnâncias dos 'objetos', dos processos e atributos da semiótica natural e sociocultural.

Essa produção, sempre reiniciada e reiterada em cada enunciação, conduz, por geração, acumulação e transformação, à construção de um 'léxico' conceptual - protótipos e conceptus - e de uma 'sintaxe' conceptual, ou, noutras palavras, de um metassistema conceptual disponível para atualização em qualquer semiótica-objeto de determinada cultura e sociedade.

Dessa forma, comporta-se o metassistema conceptual como sistema de matrizes sígnicas - dialeticamente articuladas aos recortes culturais, como vimos - da produção de funções semióticas e metassemióticas lato sensu.

Semiologização, semiotização, semiose

No processo de produção discursiva, correspondente ao processo de enunciação de codificação, ou ao fazer persuasivo do sujeito-enunciador, segue-se à conceptualização, já examinada, a semiologização, enquanto processo de conversão dos atributos dos conjuntos noêmicos em atributos semânticos pré-semióticos, trans-semióticos, e de (re)ordenamento de campos semânticos, os tópoi (Pais, 1993: 114-137).

O universo semiológico pré-existente ao discurso em causa é, então, alterado, em maior ou menor grau. Uma modificação no modo de conceber uma estrutura social, uma inovação política ou um avanço científico ou tecnológico podem levar à subdivisão de um campo semântico em dois, transferir um elemento de um campo semântico a outro, e assim por diante.

A semiotização configura-se como outro nível que depende da escolha - consciente ou não - da semiótica-objeto - verbal (uma língua natural), não-verbal ou sincrética -, em operação na macrossemiótica de uma cultura.

Insere-se, nesse patamar do processo de enunciação de codificação, o percurso gerativo da enunciação, tal como formulado por Greimas (Greimas e Courtés, 1979: 157-162). O percurso gerativo da enunciação de Pottier (1987: 59-96) já incluía a conceptualização.

Compreende a semiotização o nível da lexemização, entendida, por sua vez, como processo de conversão dos conceptus, das matrizes noêmicas, em funções semióticas (grandezas signos) de uma semiótica-objeto e/ou em funções metassemióticas dessas grandezas, ou seja, da geração e/ou transformação de designationes, relacionadas a determinado conceptus e seu correspondente designatum.

Convém observar que um conceptus pode corresponder a uma ou a várias unidades lexicais, numa língua natural. Dessa maneira, parassinônimos, em nível de língua, podem ser denominações de um único conceptus, no nível conceptual. Ao contrário, homônimos, semelhantes quanto ao plano de expressão, remetem, por seu plano de conteúdo, constituem denomiações de conjuntos semântico-conceptuais distintos.

Nas línguas naturais e seus discurso, por exemplo, importa distinguir, na etapa da atualização, o nível do sistema e o das normas. No sistema, caracterizam-se as unidades lexicais, enquanto designationes, por um semema polissêmico, denominado sobressemema. Sofre esse semema uma restrição sêmica, quando de sua inserção numa norma, no plano diatópico e/ou diastrático e, sobretudo, num universo de discurso. Desse modo, a um sobressemema, ao nível do sistema, correspondem vários sememas específicos, caracterizadores de normas discursivas. Nesse momento teórico, uma unidade lexical de língua assume uma função vocábulo ou uma função termo, em determinado universo de discurso técnico-científico, nas linguagens de especialidade (Barbosa, 2000).

A combinatória semêmica produz-se na atualização do enunciado manifestado, entre o plano do conteúdo das funções semiótica e/ou metassemióticas, levando à semiose, à construção de um significado específico do texto produzido pelo sujeito-enunciador.

Esquematicamente, tem-se o que se mostra na figura 2, na página seguinte.

Algumas condições da produtividade discursiva

Observa-se, pois, que uma designação, em nível de sistema ou de norma discursiva corresponde, por um lado, a um conceptus, do metassistema conceptual, constituindo sua denominação; por outro lado, enquanto designação, remete a um designatum, ‘objeto no mundo’. O texto, por sua vez, apresenta um simulacro de mundo semioticmente construído, que é a sua ‘referência”.

Nessa perspectiva, a produção, acumulação e transformação do saber sobre o 'mundo' somente ocorrem no processo de enunciação do discurso, concomitante e indissociavelmente da produção, armazenagem, e recuperação, durante o processo de produção da significação e da informação semioticamente construída. O discurso é o único lugar da semiose. Esse percurso sustenta-se, pois, dentre outros aspectos, num contrato de cooperação entre sujeito enunciador - sujeito da enunciação de codificação - e sujeito enunciatário - sujeito da enunciação de decodificação -, sem o qual não são viáveis a produção cognitiva e a produção de significação, concomitantes e articuladas. Vale a pena conferir as propostas de Courtés (1991), sobre relações enunciado/enunciação.

A combinatória particular das unidades no enunciado de determinado discurso manifestado, em função das relações intratextuais, intertextuais, intradiscusivas, interdiscursivas, conduz, dialeticamente a uma ampliação do epissemema dessas unidades, nesse discurso, de que resulta o processo da semiose, do ponto de vista do sujeito enunciador, com a produção de significação e informação novas, específicas do discurso em causa e dotadas de valor de comunicação. Verifica-se, na verdade, que as mesmas relações entre sistema, normas e discurso manifestado ocorrem nas semióticas não-verbais e sincréticas, mutatis mutandis.-

Processo de enunciação de codificação

Percepção biológica, culturalmente filtrada

Conceptualização - Cognição - episteme

latências

saliências

pregnâncias

 

Protótipo (núcleo noêmico)

metametaconceptus

Conceptus conceptus ¨ designatum

‘modelo mental’ metaconceptus recorte

(conjunto noêmico) cultural

Semiologização ‘referência’

Reordenamento dos topoi

Campos semânticos

Semiotização designação

lexemização

denominação

Campos lexicais

função semiótica ou

metassemiótica de

uma semiótica-objeto1 designatio

f.s. ou m.f.s. de

de uma semiótica-objeto2 designatio

Semiose Texto

Figura 2: Percurso da enunciação de codificação

 

Em síntese, cumpre distinguir diferentes relações. A conceptualização estabelece o percurso entre a percepção e a construção do ‘modelo mental’, conceptus, dialeticamente articulado a um recorte cultural; a denominação configura a etapa pela qual um conceptus é lexemizado, ou, se preferirmos, é convertido em ‘lexema’ de determinada semiótica-objeto, estabelecendo-se a relação conceptus-denominação; a designação define a relação entre a função semiótica e/ou metassemiótica lato sensu e o designatum, o recorte cultural, a referência qualifica-se como relação de implicação entre o significado (excepcionalmente, também, o significante, na ‘função poética’) construído no texto e o mundo semioticamente construído, que para os sujeitos enunciador-enunciatário, naquele universo de discurso, equivale à uma ‘visão do mundo’, apoiada na rede de designata, de recortes culturais.

Ao fazer do sujeito enunciador correspondem, no fazer interpretativo do sujeito enunciatário, os patamares da percepção do objeto semiótico concreto (texto), da reatualização ou do reconhecimento (da semiótica-objeto e dos elementos manifestados), da re-semiotização, da re-semiologização, da reconceptualização, conducentes à realimentação e a auto-regulagem do metassistema conceptual. De maneira sumária, pois, podemos considerar em conjunto o fazer persuasivo do sujeito enunciador e o fazer interpretativo do sujeito enunciatário, inseridos e articulados no percurso da enunciação do processo discursivo. Como dissemos no início, não examinaremos mais minuciosamente, aqui, o percurso da enunciação de decodificação.

Entrementes, o conceptus lato sensu e, particularmente, o arquiconceptus constituem critérios de julgamento de equivalências, no nível da estrutura hiperprofunda, ou seja, funcionam como um tertius comparationis, que determina o grau de aceitabilidade e permite avaliar a relativa ‘precisão’ das equivalências propostas nos atos metalingüísticos, no rediscurso, nas transcodificações intratextuais, intertextuais, intradiscursivas, interdiscursivas, intersemióticas e transculturais.

Nesse sentido, considerados, por exemplo, dois processos discursivos, concomitantes (em paralelo) ou subseqüentes - cada um com suas enunciações de codificação e de decodificação - e seus textos - do enunciador e do enunciatário -, enquanto discursos manifestados de semiótica-objeto verbais, não-verbais e sincréticas, o conceptus (intracultural) e, sobretudo, o arquiconceptus (transcultural) asseguram que tais discursos sustentem - no nível hiperprofundo, semântico-cognitivo, do processo de enunciação de codificação e de decodificação -, as mesmas ‘isotopias’ conceptuais, trans-semióticas e transculturais, determinando relações de interdiscursividade (entre processos) e de intertextualidade (entre textos-enunciados).

Com efeito, entende-se a interdiscursividade como a relação que se estabelece entre dois discursos, enquanto processos de produção, que apresentam, por sua vez, dois processos de enunciação, o da codificação e o da decodificação, com todos os patamares acima considerados; entende-se a intertextualidade como o conjunto das relações suscetíveis de estabelecer-se entre dois ou mais textos-enunciados.

Sabemos, igualmente, que os discursos só significam numa relação de interdiscursividade, os textos só significam numa relação de intertextualidade. Dessa maneira, o arquiconceptus, define as ‘isotopias’ conceptuais - no processo discursivo - e determina, ipso facto, isotopias semânticas equivalentes em textos de diferentes discursos manifestados, de semióticas-objeto distintas.

Desse modo, são os elementos do patamar semântico-cognitivo que autorizam as relações interdiscursivas e intertextuais e viabilizam os diferentes processos de transcodificação. Se tomarmos dois discursos e seus textos, observaremos que têm em comum o modelo dos percursos da enunciação e, mais ainda, semelhantes ‘isotopias’ conceptuais, com intersecções diferentes de zero.

Considerados vários discursos manifestados - de várias semióticas-objeto verbais, não-verbais e sincréticas, intraculturais ou transculturais - e seus textos-enunciados, torna-se possível formalizar duas noções relevantes, as do arquidiscurso e do arquitexto, esta última inspirada inicialmente na proposição de Rastier (2000).

O arquidiscurso, a nosso ver, resulta da neutralização das especificidades de vários discursos manifestados, mantidos o processo de produção discursiva, de enunciação, e as ‘isotopias’ conceptuais, que constituem sua intersecção não-vazia.

Em nossa concepção, o arquitexto decorre, da mesma forma, da neutralização das especificidades de vários textos enunciados, mantidos os conceptus e recortes culturais subjacentes, os sistemas de valores sustentados em semântica profunda, as isotopias semânticas decorrentes das ‘isotopias’ conceptuais determinantes das primeiras, que constituem a intersecção não-vazia entre os mesmos textos.

O sujeito semiótico enunciador/enunciatário do discurso possui uma competência lingüística, semiótica, sociocultural e um ‘saber sobre o mundo’ que resultam dos discursos anteriores por ele codificados ou decodificados, ou, se preferirmos, do seu processo histórico individual e/ou coletivo. Detém, ainda que de forma intuitiva, a experiência e o conhecimento que lhe permitem reconhecer em cada processo discursivo e nos seus textos, o(s) universo(s) de discurso, o arquidiscurso, o arquitexto, e estabelecer relações interdiscursivas e intertextuais, assim como as ‘isotopias’ conceptuais que dão significado ao discurso e ao texto em causa.

Nessas condições, o arquidiscurso caracteriza-se como ‘modelo mental’ e intersecção entre processos discursivos (discursos); o arquitexto, como ‘modelo mental’ e intersecçao entre textos-enunciados (textos). Essas intersecções são variáveis, no sentido matemático (maiores que zero e menores que um), segundo as culturas, as sociedades, as diferentes normas regionais, de classe social, de grupo profissional, dentre outros aspectos. De toda maneira, arquidiscurso e arquitexto constituem modelos e parâmetros que asseguram, respectivamente, a produtividade discursiva e a intelecção/interpretação de textos.

Conclusão

Observaram-se redes léxico-semântico-conceptuais, referenciais, pragmáticas, da cognição à semiose. Verificou-se que relações de significação, rede de oposições, no plano lingüístico/semiótico, pressupõem transformações na rede de ‘modelos mentais’, no nível conceptual e interdiscursivo. Formalizaram-se conjuntos de traços semântico-conceptuais, os conceptus, relações entre estes e sememas lingüísticos frásticos e transfrásticos co-ocorrentes, entre estes últimos, designata e referências, relações que conduzem a uma releitura, um reordenamento léxico-semântico-conceptual. Conclui-se que, da neutralização de textos no processo de intertextualidade, decorre o arquitexto; da neutralização interdiscursiva, o arquidiscurso, modelos mentais transfrásticos que dirigem os processos de produção discursiva e de seus textos. Explicam-se, também, processos de significação, de metalinguagem, de rediscurso, de reelaboração do mundo semioticamente construído, do imaginário coletivo, do saber compartilhado sobre o mundo.

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