CONSERVAÇÃO E
MUDANÇA
DO
PARTICÍPIO
PRESENTE NO
LATIM
TARDIO
E
SEUS
REFLEXOS
NO
PORTUGUÊS
Jaciara Ornélia
Nogueira
de
Oliveira
(UNEB)
Introdução
Nesta
comunicação
pretendemos
apresentar o
resumo a as
conclusões da
nossa
dissertação de
Mestrado,
apresentada e
aprovada
com
distinção no
Programa de
Pós
Graduação
em
Letras e
Lingüística do
Instituto de
Letras da
Universidade
Federal da
Bahia,
em
dezembro/2001,
na
qual, a
partir de
um
estudo
comparado das
formas
participiais
constantes no
texto
original
latino:
Sancti Bernardi sermones ad laudem Virginis Matris,
datado do
século XII, e
de
sua
tradução
para o
português
contemporâneo, analisamos
a
conservação e
mudança do
particípio
presente no
latim
medieval e
seus
reflexos no
português, à
luz dos
princípios da
teoria
funcionalista.
Descrição
do
trabalho
Sabemos
que
entre as
fases
mais antigas e
mais
recentes do
latim
não há uma
língua de
separação,
mas uma
continuidade, sendo a
relação
entre a
unidade e a
diversidade do
latim, a
chave da
origem das
línguas
românicas.
Se o
latim
representa
um
momento de
transição
entre o
indoeuropeu e as
línguas
românicas, devemos
lembrar,
também,
que
entre o
latim
clássico e as
línguas
românicas existe o
latim
medieval.
O
latim
literário da
Idade
Média ocupa
um
lugar
importante na
constituição
das
línguas
românicas,
principalmente
porque
representa
um
ponto de
contato
entre a
língua
popular e o
padrão
clássico.
A
história do
português tem de
começar
por
ser uma
história do
latim. De
fato, é o
latim o
principal
componente
lingüístico do
português, incluindo-se
nessa
história a
produção
literária
durante a
Idade
Médias,
cuja
cultura
era
substancialmente
eclesiástica.
Por
isso,
escolhemos
para
constituição
do
Corpus
desta
pesquisa a
versão
escrita
em
latim
tardio de
Sancti Bernardi sermones ad laudem Virginis Matris e
sua
tradução
para o
português
contemporâneo de
Frei Ary
Pintarelli, editada
por
Vozes
em 1999,
com o
título
Sermões
para as
festas
de
Nossa
Senhora.
Trata-se de
seis
grupos de
sermões
escritos
por Bernardo
de Claraval,
monge,
político-eclesiástico e
literato da
Idade
Média,
em
torno de 1124,
justamente no
período
que antecede a
formação das
línguas
românicas.
O
texto
latino foi
tomado da
edição
bilíngüe
latim/espanhol,
editado
pela
Biblioteca
de
Autores
Cristianos
em 1984.
Utilizamos no
Tomo I –
Trados (2), os
sermões
sobre a
perícope da
Anunciação
em Lucas,
também
conhecidos
por Super
Missus
que constitui
em
torno de 40%
do
corpus
coletado. No
Tomo III,
cinco
grupos de
sermões
em
louvor à
Virgem Maria
para variadas
ocasiões.
Este
trabalho é de
natureza
descritivo-interpretativa e funda-se
nos
princípios da
lingüística
funcional
nos
termos de
Heine, Hopper, Traugott, Castilho,
Neves,
Martelota e Givón.
Tomando
como
base o
estágio
lingüístico do
latim da
Idade
Média, observamos a
conservação e
mudança do
particípio
presente
em
relação ao
latim
clássico e
seus
reflexos no
português
contemporâneo, procurando
interpretar os
dados à
luz da
gramaticalização, tendo
em
vista
que a
compreensão da
mudança
lingüística tem sido
revigorada
pelo
estudo desse
processo, considerado
como
um dos
aspectos da
própria
mudança.
Para a
análise dos
dados,
procedemos a uma
abordagem
quantitativa,
contabilizando o
total de
ocorrências de
particípios no
texto
latino e
qualitativa,
procurando
verificar
em
qual
sentido a
gramaticalização dessas
formas operou
na
passagem do
latim
para o
português.
Iniciamos a
análise do
Corpus
por
um
momento de
descrição do
particípio no
texto
latino,
em
seguida
fazemos
um
confronto das
formas
participiais latinas
com as
correspondentes
na
tradução
portuguesa;
por
fim fazemos a
interpretação
dos
dados à
luz dos
processos de
gramaticalização.
Análise
dos
dados
No
texto
latino
levantamos 500
ocorrências de
particípios
presentes de
281
diferentes
verbos.
Estes
verbos estão
distribuídos nas
quatro
conjugações
latinas, sendo a
maior
incidência de
verbos da
primeira.
Não
abandonamos as
formas
repetidas na
mesma
situação
morfo-sintático-semântica
porque a
repetição
comprova a
freqüência do
uso.
Quantificadas as
ocorrências as
distribuímos
em treze
grupos
iniciais,
tendo
em
vista a
correspondência
do
particípio
presente
latino
com a
tradução
portuguesa.
Das
formas
quantificadas 11% fogem de
qualquer
tradução
que possa
ser
padronizada o
que se deve
justificar
por se
tratar de uma
tradução
livre,
pela
ausência,
muitas
vezes, de
equivalentes
exatos, e
ainda,
pelo
próprio
processo da
mudança
operada nas
formas do
particípio
presente na
passagem do
latim
tardio ao
português
contemporâneo.
Após a
análise de
cada
um dos treze
grupos
detectamos
que,
conservado
com
valor
real de
particípio,
ou seja,
com
valor
verbo-nominal, encontramos
apenas uma
ocorrência:
Nimirum iacens in praesepio, in
virginali gremio cubans, in
monte
praedicans, in oratione pernoctans, aut imperans, sed in cruce
pendens, in
morte pallens,
líber inter
mortuos et in
inferno etiam
tertia die resurgens et Apostolis loca clavorum victoria
signa
demonstrans, novissime coram
eis
secreta
conscedens. (H2. 430-24,30)
Ei-lo
deitado
no
presépio,
recolhido no
regaço
virginal, pregando na
montanha,
passando a
noite
em
oração,
ou
pendente
da
cruz,
pálido na
morte,
livre
entre os
mortos e
senhor
nos
infernos,
mas
também
ressuscitando ao
terceiro
dia e
mostrando aos
Apóstolos o
lugar dos
cravos
como
sinal de
vitória e
por
fim subindo
aos
céus
diante deles.
(89-6,12)
Observamos
que, no
contexto
em
que está
inserido, “pendente”
vem
em uma
seqüência de
outras
formas
verbais:
particípios
passados e
gerúndios,
traduzindo
também
particípios
presentes
latinos,
evidenciando o
caráter
verbal de “pendente”
que
poderia
ter sido traduzido
por pendendo
ou
pendurado; a
nosso
ver é uma
recuperação
que faz o
tradutor deste
valor
participial: estilisticamente
quebra a
seqüência de
gerúndios e
particípios
passados dando
maior
leveza ao
parágrafo;
por
outro
lado
parece-nos
que, neste
caso, o
particípio
presente tem uma
conotação
mais
precisa,
mais
exata.
Em
outra
situação o
mesmo
particípio no
acusativo está
traduzido
por uma
oração
adverbial:
[...] vidit miracula facientem, vidit demum in
crucem pendentem, [...] (H6 408-31,2)
[...] viu-o
quando fazia
milagres,
viu-o
novamente
quando
pendia da
cruz, [...]
(199-16,7)
As
demais
ocorrências
foram reagrupadas
em
quatro
categorias de
gramaticalização:
·
Nominalização
·
Recategorização: Reanálise
·
Sintaticização
·
Reanálise:
Particípio/Gerúndio
A
nominalização
Consiste na recategorização do
particípio
presente
em
adjetivo e
substantivo.
Hopper e Traugott
quando tratam
da gramaticalização propõem
três
categorias de
palavras e
indicam
haver
entre
elas uma
transição
gradual,
observando o
seguinte
continuum:
Categoria
maior (nome
e
verbo) >
categoria
mediana
(adjetivo,
advérbio) >
categoria
menor (pronome,
preposição,
conjunção).
O
que observamos
no
uso do
particípio
presente é
sua
recategorização
em
adjetivo,
portanto a
passagem da
classe
maior
para a
mediana,
porém
observamos
também,
que, uma
vez
recategorizado
em
adjetivo,
em
alguns
casos,
passa a
ser usado
substantivamente;
este
fato contraria
o
princípio da
unidirecionalidade defendida
por
vários
lingüistas
entre os
quais Heine,
Claudi e Hünnemeyer,
quando
sustentam
que as
estruturas
menos
gramaticais
tornam-se
mais
gramaticais,
porém,
não o
contrário. Há
ainda a
recategorização
direta de
particípio a
substantivo,
ou seja,
dentro da
mesma
categoria.
Castilho considera
como
gramaticalização.
Nesse
grupo
incluímos,
ainda, a
recategorização
em
advérbio
em
processo
similar ao da
recategorização
em
adjetivo.
Comprovamos
que esta
recategorização
já
vinha
acontecendo no
latim da
Idade
Média.
Este
fato está
atestado
não
só
pela
subordinação
do
particípio a
um
substantivo,
de
que se
torna
predicativo
ou
adjunto;
mas
também
por terem sido
encontrados no
grau
comparativo e
superlativo e,
ainda,
por servirem
de
base à
formação de
advérbios.
·
[...] et quibus volebat
sapiens apparebat;
quando volebat
sapientior,
quando et
quibus sapientissimus quamquam in se nunquam esst nisi sapientissimus.
(H1 626-4,6)
·
Pane vox
turturis, quae tam viventi quam mortuo. (H2. 436-28)
·
[...] sed quia ipse, Qui non solum
potenter, sed etiam sapienter quaecumque voluit fecit [...] (H1.
630-3)
A
recategorização: Reanálise
A
mudança
lingüística
que envolve a
transformação do
particípio
presente
em
preposição é
também
um
caso
típico de
recategorização: o
verbo
como
palavra
principal,
portanto
menos
gramaticalizada,
passa a
preposição,palavra
gramatical,
estabelecendo
um continuum
de
unidade
independente localizada
em
construções
menos
ligadas, a
unidades
dependentes.
Porém esta
recategorização considerada
por
Neves
como as
instâncias
prototípicas da gramaticalização, implica,
também, na
reanálise do
sintagma
em
que o
particípio
aparece. Trata-se de uma
palavra
funcional
originada de uma
palavra de
conteúdo
lexical.
A
mudança do
particípio
em
preposição
envolve
desgaste do
material
semântico e
sintático-categorial.
·
Hoc verbum
mediante
te,
caro fiet,
[...] (H2 430-7,8)
Por
teu
intermédio,
esse
verbo se fará
carne [...] (FNS
88-20)
Sintaticização
São agrupados
nesta
categoria os
casos
em
que o
particípio
presente está
desenvolvido
em
orações
substantivas, adjetivas e adverbiais. Ocorre a
mudança de
um
modelo
mais
pragmático
para
um
menos
pragmático
ou
sintático,
que resulta
numa
estrutura
complexa
com
orações
subordinadas.
Esta
mudança tem
características
similares à da
recategorização, se considerarmos o
valor
adjetivo,
substantivo e
adverbial dessas
orações.
·
Femina itaque circumdans
virum, virgo est concipiens Deum. (H1 626-20)
Portanto a
mulher
que
envolve o
homem é a
virgem
que
concebe a
Deus. (FNS
44-35)
·
[...]
id est
transmigrationis, quia
nascente
Christo, illa omnia transierunt, [...] (H1 606-2)
[...]
porque
quando
Cristo
nasceu, desapareceram todas as
coisas
que lembrei
acima. (FNs
31-13,4)
·
Nec potest docere nisi a donante,
nec potest addisci nisi a suscipiente. (H1 664-35,6)
Só pode
ser explicado
por
quem
o realiza e
só pode
ser compreendido
por
quem
o recebe. (FNS 69-30)
Reanálise:
Particípio/Gerúndio
Fato
singular no
processo de
gramaticalização do
particípio
presente é,
sem
dúvida, a
sua
transformação
em
gerúndio;
não se
trata,
absolutamente,
da
evolução da
forma de
particípio
para a
forma do
gerúndio,
mas na
total
substituição
de uma
forma
pela
outra.
Ao
ser nominalizado o
particípio
presente, é o
gerúndio
que detém
mais
forte o
valor
verbal e vai
se introduzindo
nos
sintagmas,
em
cujo
padrão
sintático-semântico caberia o
particípio. No
corpus,
o
gerúndio está,
quase
sempre,
substituindo
formas
nominativas,
ou seja,
aquelas
que exercem
função
predicativa
ou de
adjunto
adnominal. O
desmoronamento
da
fronteira
que separava
no
particípio
presente as
funções
verbais e
nominais
permite a
invasão do
gerúndio na
esfera
participial.
Até
que
ponto o
fato de
um
gerúndio,
como
forma
verbal,
estar sendo usado
em
substituição
ao
particípio na
língua
portuguesa constituir-se
um
processo
simples de
gramaticalização é
um
tema
para
estudos
mais
profundos (que,
aliás,
nós propomos
fazer na
ampliação
desta
pesquisa),
mas a
gramaticalização do
particípio
presente, enfraquecendo o
seu
valor
verbal e
cedendo
lugar à
ampliação do
uso de
construções
gerundiais, é
fato
notório.
·
Sive ergo latens in utero,
sive vagiens in praesepio, sive iam grandusculus interrogans
doctores in
templo, sive
iam perfectae aetatis docens in populo. (H1 624-23,4)
·
Quer escondido
no
seio,
quer
chorando no
presépio,
quer
maiorzinho interrogando os
doutores no
templo,
quer na
idade
madura
ensinando o
povo [...]
Considerações
finais
Pelo
exposto,
podemos
afirmar
que o
particípio
presente,
embora se
conserve
ainda no
latim
medieval, vem,
desde
aí, passando
por
processo de
gramaticalização
que se
consolida no
português
contemporâneo,
já
que,
dentre as
ocorrências do
corpus,
apenas uma
está traduzida
como
particípio
propriamente
dito. As
demais se
encontram recategorizadas
em
adjetivo,
substantivo,
advérbio e
locução
prepositiva,
ou
reanalisadas
em
orações
adverbiais, substantivas completivas e subordinadas adjetivas,
ou,
ainda,
substituídas
por
gerúndio. Na
análise
quantitativa
constatamos uma
maior
incidência de
sintaticização, seguindo-se a nominalização, a reanálise
particípio/gerúndio
e,
por
fim,
em
número
menor, a
recategorização
em
preposição.
Sabemos
que há
condições
que propiciam
a gramaticalização na
diacronia.
O
estudo do
particípio
presente no
latim
tardio e no
português
contemporâneo
constituiu-se
em uma
evidência
para uma
abordagem
pancrônica da
conservação e
mudança
morfo-sintático-semântica
através das
distintas
sincronias.
Numa
visão
funcionalista,
processos de
gramaticalização
que
hoje se
consolidam na
língua
portuguesa
já se
manifestavam no
uso do
latim da
Idade
Média.
Na
nossa
opinião,
talvez, a
indeterminação,
a
ambigüidade do
particípio
presente
como
forma
híbrida
que detém
características
de
verbo e de
nome, tenha
propiciado a
sua
recategorização. A
abordagem
tradicional admite
limites
nítidos de
sentido,
porém,
em
alguns
casos, podemos
ainda
perceber o
caráter
fundante de
verbo
como
em “temente
a
Deus”.
Apesar de
termos
verificado o
quase
desaparecimento
do
particípio
presente
como
forma
verbal no
português
contemporâneo,
não podemos
esquecer
que o
uso da
palavra é
livre e esta
só existe
encaixada
em
um
determinado
contexto;
assim
como
encontramos na
tradução de
Pintarelli o “pendente
da
cruz”,
podemos, no
dia a
dia,
nos depararmos
com
ocorrências
similares.
Assim é
que, lembrando
Cecília Meireles, na comemoração do
seu
centenário,
escolhemos
para
epígrafe deste
trabalho, duas
estrofes de
poemas de
sua autoria do
livro
Mar
Absoluto,
datado de
1945, nas
quais os
particípios
presentes
nos aparece
com
valor
verbal,
em
versos de
indizível
beleza:
Leve é o
pássaro
E
sua
sombra
voante
Mais
leve
Estarei,
um
tempo
divino
Como
árvore
em
quieta
semente
Dobrada na
noite, e
dormente.
REFERêNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS[1]
ALI, M Said.
Gramática
histórica
da
língua
portuguesa. 3. ed. aum.
Revisão,
notas e
índices
por Maximiano
de
Carvalho e
Silva.
São Paulo:
Melhoramentos, 1964.
BASSOLS DE CLIMENT,
Mariano.
Sintaxis
latina.
Madrid: Garcia Norato, 1956.
BASTARDAS PARERA, Juan.
Particularidades
sintacticas Del latin
medieval.
Barcelona: Escuela de
Filologia,
1953.
BERNARDO DE CLARAVAL,
São.
Sermões
para as
festas
de
Nossa
Senhora.
Introdução,
tradução e
notas de
Frei Ary
Pintarelli. Petrópolis:
Vozes, 1999.
DIAS,
Augusto
Epiphanio da Silva. Syntaxe
histórica
portuguesa. 5. ed. Lisboa:
Clássica,
1970.
OBRAS
COMPLETAS DE
SÃO BERNARDO.
Edición bilingüe,
preparada
por
los monjes cistercienses de España. Madrid:
Biblioteca de
Autores
Cristianos, 1983.