Gramaticalização de “porém
uma
abordagem funcional

José Mario Botelho (UERJ)

 

INTRODUÇÃO

Numa análise gramatical, de natureza sincrônica, do elemento de ligaçãoporém” e suas posições na estrutura lingüística do português atual, é fato consumado a sua classificação como conjunção, cuja função é “ligar palavras ou orações que estabelecem oposição, contraste, compensação, ressalva” (Bechara, 1983, p. 160), uma vez que tal afirmação constitui-se uma unanimidade entre os nossos gramáticos.

Todavia, se for feito um estudo diacrônico, preocupado com as mudanças semânticas de “porém desde a sua origem (per + ende), suas várias formas e posicionamento na estrutura lingüística do português, a simplicidade daquela definição de nossas gramáticas e da descrição sugerida por elas passa a dar lugar a uma complexidade fundamentalmente bela e interessante.

O objetivo deste trabalho é o de discutir o processo de mudança semântica do advérbioporém”, que se gramaticaliza como conjunção adversativa.

O material de investigação constitui-se de 240 exemplos, retirados de O Cancioneiro da Ajuda (CA) e de outras 60 Cantigas Trovadorescas (CT) avulsas – textos do português arcaico do séc. XIII–; de A Demanda do Santo Graal (DSG) – texto do português arcaico do séc. XIV –; e de Os Lusíadas (OL) – texto do português moderno do séc. XVI. Do CA foram registrados 38 exemplos; do OCT foram registrados apenas 11 exemplos; da DSG foram registrados 157 exemplos; e de OL foram registrados 34 exemplos.

A partir destes 240 exemplos foi feita uma análise de cada elemento, determinando seus contextos de realização e suas semânticas.

O universo explorado abrangeu as relações intrafrasais e as interfrasais, que o objetivo principal deste trabalho é observar o processo de gramaticalização do elemento em estudo, e posterior discursivização, processo que se efetiva paralelamente àquele com o qual concorre até os dias atuais.

A orientação teórica básica fundamenta-se no funcionalismo lingüístico de Votre (1994), que corrobora Heine et al (1991) e Hopper & Traugott (1993). O modelo utilizado é o de Martellota, Votre e Cezário (1996).

 

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O Paradigma da Gramaticalização, segundo Votre et alii

Votre, emUm Paradigma para a Lingüística Funcional” (1996), fala sobre a ênfase que os estudos do uso da língua vêm dando aos usuários, os quais são concebidos como responsáveis pelo estado e forma da língua. Sobre as propriedades cognitivas do usuário, suas potencialidades e restrições e a busca dos princípios universais de produção e recepção lingüística recai o foco de interesse da lingüística funcional de orientação em Givón e seus seguidores, cujo princípio central é o da iconicidade, a qual prevê motivação na relação entre forma e significado.

O autor afirma que os humanos agem de forma intencional em termos lingüísticos, apesar de não se poder precisar a intenção de cada ato verbal. Vários são os motivos que levam à gramati-calização de seus atos verbais.

Votre, não deixa de admitir que nem tudo na língua é icônico, pois partes em que é opaca e aparentemente arbitrária a relação entre forma e significado, quando um dado item perde parcial ou totalmente o seu significado original, como é o caso do “porém”, que deixou de expressar a noção conclusivo-explicativa, como advérbio ( num estado avançado, que não convém comentar neste momento) para assumir a noção de adversativo, como conjunção.

(01) “¾ Quanto pouco ora eu temo vossas ameaças! disse Moordret. E, per boa , por êsse despeito, ante vós a matarei porém.”  (DSG. Cap. 265, pág. 397) – circunstância adverbial conclusivo-explicativa (= por isso, por este motivo)

(02) “Ser com amores mal afortunado, / Porém não que perdesse a esperança / De inda poder seu Fado ter mudança.” (OL. Canto Nono, pág. 390) – elemento de ligação adversativo (= mas)

Votre afirma que a linguagem usual é essencialmente metafórica, pois não se criam novas formas, mas novos significados estão sendo criados constantemente para as formas existentes. Por definição, toda metáfora (processo de transferência semântica) é icônica, que se fundamenta num grau de semelhança ou comportamento semântico entre o significado primitivo e o significado secundário deslizamento semântico.

No caso de “porém”, o significado primitivo deslizou progressivamente de conclusivo-explicativo para adversativo, sob um paradigma de gramaticalização, cuja trajetória de significado respeita o princípio de iconicidade e postula a unidirecionalidade da mudança que progressivamente abstrai o significado. Segundo a proposta de Closs-Traugott (In Traugott & Heine, 1991) para a trajetória de deslizamento do significado, as formas associam-se a novos significados, partindo da noção de espaço, passando ou não pela noção de tempo, e chegando ao texto, conforme esquema abaixo:

Retângulo de cantos arredondados: espaço > (tempo) > texto

 

 

 


 

Assim, observa-se que gramaticalização e discursivização constituem processos de mudança lingüística. Naquela os itens lexicais e estruturas sintáticas assumem funções referentes à organização interna do discurso elementos interfrásticos –; na discursivização os itens assumem a função de marcadores discursivos – elementos intrafrásticos. Ou seja, na gramaticalização o item pode tornar-se mais gramatical e assumir posições mais fixas na cláusula, com uso mais previsível, enquanto na discursivização o item torna-se menos gramatical e assume funções relacionais e/ou interativas, com posicionamento livre na cláusula e perde as restrições gramaticais primitivas.

Logo, trata-se de processos distintos, mas não estanques, pois a discursivização é um processo pós-gramaticali-zação que pode ou não ocorrer.

 

A NATUREZA DE “PORÉM”: QUESTÕES GERAIS

No séc. XIV, segundo Mattos e Silva (1984) o itemporém” sofria um processo de mudança semântica, difundindo-se como conjunção adversativa no séc. XVI. Para tratar fundamentalmente da mudança semântica do item em estudo, que compunha o inventário dos instrumentos gramaticais da gramática do português arcaico, é mister que se considerem os meios de expressão do pensamento conclusivo-explicativo (noção primitiva do “porém”) daquela época, a constituição das construções sintáticas e as formas morfológicas naquela fase da história do português.

 

Origem do “porém

Segundo a literatura específica, “porém” é forma reduzida de “por ende”, que também aparecia na forma de “porende”, que, segundo Vasconcellos (1922) e Said Ali (1960), se origina do sintagma circunstancial latino, constituído da preposição “pro” e o advérbio pronominal “inde” ou como sugere J. J. Nunes (1960) “per + inde”.

Segundo Machado (1973), “inde” significava: “de ”, “deste lugar”; “dali”, “de isso”, “donde; “a partir de então” e originou a forma “ende” que manteve os mesmos significados e assumiu o de “por este motivo”, “motivo”, “razão” (como observa Vasconcellos em se Glossário do Cancioneiro da Ajuda, 1922) e ocorria no português arcaico (séc. XIII) em forma contracta de “en”, conforme se pode verificar nos seguintes exemplos:

(03) “e tenho m’end’ as coitas por pagado.” (Joan Coelho. CA)

(04) “(...) nom uos tem prol / Esso que dizedes, nem / Mi prax de o oyr sol, / Ant ey noi e pesar en, / Ca (...)” (D. Dinis. OCT)

Anteposto pela preposiçãoper oupor”, “ende” significava “por este motivo” e, conforme demonstra Vasconcellos (1922) concorria compor êsto” oupor esso” no CA. Também se observa a sua ocorrência sem preposição, significando “por este motivo”.

(05) “/ mas agora , por me mais coitar, / por ende me disse / que a nunca visse / en lograr estar /” (um desconhecido. CA)

(06) “/ en lograr estar / que lh’ eu non gogisse, / e que a non visse, / por [én] me matar.” (um desconhecido. CA)

No final do séc. XIII, na DSG, a semântica de “ende” é bastante complexa e de difícil distinção. Verifica-se que em dados contextos indica lugar (“daí”); conseqüência (“a respeito disso”), no exemplo abaixo:

(07) “Vós me meteste tam gram pesar no coraçom, que jamais mom sairá ende. (Magne, 1944, III, 183)

em outros significa “por este motivo”, concorrendo compor ende” e “porém”, que são predominantemente conclusivo-explicativos,  para os quais perde o lugar, até desaparecer da língua.

(08) “Véspera de Pintecoste, foi grande gente assüada em Camaalot, assi que podera homem i veer mui gram gente, muitos cavaleiros e muitas donas mui bem guisadas. El-rei, que era ende mui ledo, honrou-os muito e feze-os mui bem servir” (DSG. Cap. 1, pág. 3)

no séc. XVI, em Camões, a forma “ende” não existe mais. O curioso é que a formaporém”, que antes concorria com “ende”, “por êsto” e “por esso”, significando “por este motivo”, se apresenta com um novo significado e funciona como elemento de ligação com posição fixa na estrutura lingüística conjunção adversativa introduzindo uma oração coordenada.

(09) “Nós Húngaro o fazemos, porém nado / Crem ser em Lotaríngia os estrangeiros.” (Canto Oitavo, pág. 332. OL)

Em OL se observam exemplos de “porém” funcionando como marcador discursivo, no início da cláusula. Isto é, esvaziado semanticamente, funcionando como elemento anafórico de ligação entre períodos ou parágrafos.

(10) “Era algüa profunda profecia. Porém tanto o tumulto se moveu, / Súbito, na divina companhia, /” (Canto Sexto, pág. 273)

Também esvaziado semanticamente, foram encontrados apenas dois exemplos de “porém” co-ocorrendo commas”. Neste caso, compõem um todo adversativo.

(11) “Mas porém, quando as gentes Mauritanas, / A possuir o Espérico terreno, / Entraram pelas terras de Castela, / Foi o soberbo Afonso a socorrê-la.” (Canto Terceiro, pág. 170)

 

DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Embora no português atual o elementoporém” seja classificado como conjunção coordenativa adversativa, e como tal liga a oração coordenada que introduz a outra também coordenada, estabelecendo uma noção de oposição, seus usos e posições na cláusula caracterizam-no também ora como advérbio, ora como marcador discursivo. O que sugere uma análise que extrapole um estudo etimológico. Não basta demonstrar a sua origem; é preciso descrever a sua trajetória (de “ende” a “porém”), considerando os aspectos semântico-pragmáticos de sua transformação e elucubrar eventuais mudanças semântico-pragmáticas. Para isto, adotou-se o seguinte esquema: espaço > discurso, em função do valor espacial da forma primitiva que se evidencia na anáfora referente a um elemento anteriormente mencionado; passa a ocupar outra posição - no início de cláusula -, ganha um novo significado (de conclusivo-explicativo para adversativo) e se fixa no início de cláusula, gramaticalizando-se; e, por fim, esvazia-se de seu significado adversativo e passa a funcionar como elemento discursivo anafórico, devido à sua posição fixa na cláusula, sem que esteja ligando duas orações coordenadas.

 

Ocorrências de “porém em CA e OCT

O corpus do CA que será analisado constitui-se dos 38 exemplos sugeridos por Vasconcellos em seu Glossário do Cancioneiro da Ajuda, e o corpus de OCT avulsas constitui-se de apenas 11 exemplos encontrados nas 65 cantigas reunidas dos diversos Cancioneiros.

Foram registrados os usos de “ende”, “en”, “por ende”, “porende”, “por én”, “poren” e “porem”.

 

Os Contextos de “ende” e variante

Foram registradas 10 ocorrências no CA e 2 em OCT. Sob a forma “ende”, 6 vezes; sob a forma contracta “en”, 6 vezes.

Em todos os casos, o elemento é adverbial e significa ora “daí”, oramotivo”, ora “a respeito disto”, segundo Vasconcellos (1922). Sua posição na cláusula é livre.

(12) “e o que m’ende guardar non pude” (Vaasco Praga de Sandin)

(13) “E senhor, muito me praz én!” (Nuno R. de Candarey. CA)

 

Os Contextos de “por ende” e variantes

Foram registradas 23 ocorrências no CA e 7 em OCT. Sob a forma apocopada “por én”, 21 vezes; sob a formapor ende”, 5 vezes; sob a forma “porem”, 2 vezes; sob a forma “poren”, apenas 1 vez e sob a forma “porende”, apenas 1 vez.

Em todos os casos, seu valor é conclusivo-explicativo. Ocorre normalmente em posições diversas como advérbio, mas se verificam ocorrências no início da cláusula como conjunção e como operador discursivo. Co-ocorre também 4 vezes com “e”.

(14) “por ende me disse” (um desconhecido. CA)

(15) “que lhe queira valer por én.” (Joan Soaires Somesso. CA)

 

Ocorrências de “porém” na DSG

O corpus da DSG que será analisado constitui-se de 74 exemplos dos 117 observados entre os capítulos 1 e 269 (todo o volume 1); e entre os capítulos 269 e 310, do volume 2.

Foram registrados os usos de “ende”, “porende e “porem”. Não ocorrência de “en”, nem de “poren”, mas ocorrências de “em” (equivalente a “én” do CA).

 

Contextos de “ende” e variante

Foram registradas 40 ocorrências. Das quais sob a forma de “em”, de difícil identificação por ser semelhante à preposição homógrafa, foram registradas 6 ocorrências. Na maioria dos casos o elemento é adverbial e significa “por este motivo”, “a respeito disso”, “daí”; pode ser simplesmente complemento de natureza pronominaleste motivo”. Sua posição é livre e tem caráter anafórico.

(15) Teu irmaão jaz em na pena e na ardura do purgatório, e jará ainda i três anos, ante que (...)” (Cap. 188, pág. 269)

 

Contextos de “porende” e “porém

Foram registradas 28 ocorrências, apenas 7 das quais em forma longa “porende”. Seu valor é predominantemente conclusivo-explicativo. Ainda ocorre em posição de advérbio, mas em forma de “porém” ocorre freqüentemente no início da cláusula sempre co-ocorrendo com “e” (11 vezes, das 21 registradas).

(16) “¾ Quanto pouco ora eu temo vossas ameaças! disse Moordret. E, per boa , por êsse despeito, ante vós a matarei porém.”  (Cap. 265, pág. 397)

 

Contextos de “porém em OL

O corpus de OL constitui-se de 27 exemplos em toda a obra. Nesta fase, somente a formaporém” ocorre e sempre como conjunção, no início da cláusula, estabelecendo uma relação anafórica a um elemento citado anteriormente, ao qual se opõe; o valor é definitivamente adversativo. Há somente duas ocorrências com a anteposição de “mas” e várias em que se pode analisá-lo como marcador discursivo (quando inicia um período).

(17) “Dom Sancho vai  cercar em Santarém; / Porém não lhe sucede muito bem.” (Canto Terceiro, pág. 163)

 

CONFRONTO DAS OCORRÊNCIAS

DE “ENDE” E VARIANTES E “PORÉM” E VARIANTES

ITEM

CA

OCT

DSG

OL

ende

6

-

60

-

en

4

2

-

-

em

-

-

6

-

porende

-

1

7

-

por ende

4

1

-

-

por én

19

2

-

-

poren

-

1

-

-

porem

-

2

44

27

por esto

5

1

32

-

por esso

-

-

8

-

per êsto

-

1

-

-

por isso

-

-

-

7

Totais

38

11

157

34

 

Análise da Diacronia Semântica de “porém

A partir dos dados do item anterior, é possível afirmar que a formaporém” do português atual passou por uma transformação semântico-pragmática complexa desde os primeiros documentos escritos em língua portuguesa (ou melhor, galaico-portuguesa), as cantigas trovadorescas - poesia medieval -, e cujos textos se encontra a forma primitiva “ende”, com a qual estabelece uma relação etimológica.

Apesar da pequena semelhança (quase nenhuma) mórfico-fonética (resultado de transformações explicadas por regras morfofonêmicas) e da acentuada diferença semântica entre “ende” e “porém”, uma análise da diacronia semântica de “porém”, seguindo o modelo de Closs-Traugott (1.1) que analisa a trajetória de deslizamento do significado de uma dada forma que se associa a novos significados, partindo da noção de espaço, podendo passar pelo tempo, e chegando ao texto, conforme o seguinte esquema: espaço > (tempo) > texto, pode tornar clara a etimologia de “porém em “ende’.

Confrontando os dados obtidos no CA e OCT com os dados de DSG e de OL, podemos propor o seguinte esquema evolutivo de “ende”:

 

Ende (espacial)

(advérbio e pronome – polissêmico)

 

                       

Ende (dêitico espacial)
(
advérbio circunstância de lugar)
Ende (dêitico)
(advérbio circunstância de causa/conseqüência)

Por ende (dêitico)
(loc. adv. –
circunstância de conclusão)

Porém (dêitico)
(conjunção adversativa)

Ende (dêitico)
(Pronome equivalente a isto, motivo, razão)

Por ende (dêitico)
(loc. adv. –
circunstância de conclusão)

Este esquema ilustra o processo de gramaticalização de “porém como conjunção coordenativa adversativa elemento sujeito a restrições gramaticais –, desde o “ende” arcaico.

Observa-se que o “ende” arcaico era elemento polissêmico (vários significados). Na fase inicial da língua (até o século XIV), além de ser usado como advérbio, expressando uma circunstância de lugar: “daí”, “daqui” e outras circunstâncias: “a respeito disso”, “sobre isto” (neste caso, pode ser simplesmente um complemento de natureza nominal: “isto”), pode também ser usado como complemento de natureza nominal (pronome ou nome): “motivo”, “razão”, “isto”, “de isso”; ou a respeito disto.

Nesta fase da língua, ainda, a preposição (“por ouper”) foi anteposta a “ende”, na formação de uma locução adverbial que tornou mais clara a semântica de “ende”.

De acordo com os compêndios etimológicos, pode-se inferir que o “ende” da locução adverbial que surge é o advérbio anafórico de valor consecutivo. Entretanto, a tradição gramatical ensina que uma locução adverbial é formada por preposição e palavra de natureza nominal (pronome ou substantivo). Daí, as linhas pontilhadas do esquema acima levantar a hipótese de ser o pronome anafórico “ende” e não o advérbio a base da locuçãopor ende”.

A locuçãopor ende” e suas variantes (“porende”, “por én”, “porén”, “porem” e “porém’) que era anafórica e expressava circunstância de conclusão (mais especificamente conclusivo-explicativa) concorria ainda com o polissêmico “ende”, embora tivesse um uso mais efetivo com esse valor semântico.

Como no final do séc. XIII o uso de “ende” tornava-se ainda mais ambíguo e o de “porém” (forma mais incidente na DSG: 44 ocorrências contra 7 de “porende”) mais específico, pois tinha valor de conclusivo-explicativo e se colocava no início da cláusula, fazendo o papel de elemento anafórico de ligação, é possível afirmar que num primeiro estágio “ende” e “porém” têm o mesmo valor semântico (de conclusivo-explicativo), conforme a sua etimologia, e o mesmo status ligüístico; num segundo estágio “ende” é menos usado como aquele valor semântico, ao contrário de “porém”, que é mais usado com esse valor semântico, e apresenta características de conjunção, pois é incidente o seu uso no início de cláusula, mormente como reforço adverbial de “e” e se verificam indícios de idéia adversativa (advindas da cláusula queporém” inicia, não exatamente dele).

(18) “que Deus, que m’esto foi mostrar, / por én me leixa de matar /” (Roy Fernandes. CA)

Neste estágio, se pode perceber que estava havendo uma gramaticalização de “porém”, que se especificava como um elemento de circunstância adverbial conclusivo-explicativa. Ou seja, o espacial “ende”, sofrendo alterações mórfico-fonéticas após o acréscimo da preposiçãopor” (ende > por ende/ por én > porende/porén > porém), passa a ser usado no texto como advérbio conclusivo-explicativo, posicionando-se no início da cláusula com maior freqüência e se distingue do polissêmico “ende”, o qual mormente por ser ambíguo começa a cair em desuso (embora não se pode comprovar na DSG, a hipótese se refere a textos do séc. XV, que não foram pesquisados a fundo).

Mais tarde, em OL não mais a ocorrência de “ende” e a formaporém não tem mais valor semântico de conclusão, semântica que é expressa por outros elementos (do tipopor isso”, o que ocorria no CA e em OCT e na DSG). O valor semântico de “porém” nesta fase é essencialmente adversativo e, embora ocorra em diferentes posições como advérbio, fixa-se no início da cláusula, ligando-a a uma idéia expressa anteriormente (normalmente uma oração independente), estabelecendo uma oposição.

Assim, poder-se-ia representar este processo de mudança do final do séc. XIII até o atual século da seguinte forma:

 

Ende    Porém

  Polissêmico   +   Ø
E1 Conclusivo-explicativo

+

  + (CA e OCT)
  Adversativo   Ø   Ø
           
  Polissêmico   +  
E1 Conclusivo-explicativo   + (DSG)
  Adversativo   Ø  
           
  Polissêmico   Ø   Ø
E1 Conclusivo-explicativo Ø   Ø (OL)
  Adversativo   Ø   +

Logo, completa-se, por conseguinte, o processo de gramaticalização de “porém”, que deixa de ser advérbio com valor conclusivo-explicativo e liberdade de colocação na cláusula para ser conjunção coordenativa adversativa, fixando-se no início da cláusula mais comumente.

Entretanto, a sua etimologia lhe confere uma certa liberdade na cláusula, e seu caráter dêitico anafórico lhe possibilita exercer a função de operador discursivo, que se pode observar em estruturas atuais principalmente, e no material que foi analisado. Nestas estruturas, o “porém não liga duas orações independentes, como uma conjunção, mas cumpre o papel de operador discursivo. Isto caracteriza o processo de discursivização de “porém”, que não será desenvolvido aqui por não ser o objetivo principal do presente trabalho.

 

CONCLUSÕES

Apesar de o assunto acerca da diacronia semântica do “porém ter ficado claro neste trabalho, que não constitui propriamente uma contradição aos estudos etimológicos existentes, pelo fato de ter explicado a atual forma de “porém”, o seu emprego de conjunção e seu valor adversativo como resultado de um processo de gramaticalização à luz de uma abordagem funcional, não se pretendeu aqui esgotar o assunto.

Algumas conclusões, contudo, surgiram com a pesquisa:

1.      Na língua portuguesa arcaica, o pensamento conclusivo-explicativo era expresso por meio de mais de um elemento adverbial, entre os quais se destacam os elementos “ende”, “porém” e “por êsto”.

2.      Anteposto pela preposiçãopor”, “ende” formou a locuçãopor ende”, que mais tarde se transformou emporém”, mantendo as mesmas características semântico-pragmáticas do elemento formador, com o qual concorre até aproximadamente o séc. XV.

3.      O elemento “ende”, que era polissêmico, desaparece da língua antes do séc. XVI e, por conseguinte, a noção de conclusivo-explicativo passa a ser concorrida porporém” e “por êsto”.

4.      Mais tarde, no séc. XVI, em “Os Lusíadas”, de Camões, a noção de conclusivo-explicativo é expressa predominantemente porpor isso” (variante de “por êsto”) e “porém passa a expressar a noção adversativa e assume as características de elemento de ligação entre orações independentes (classificando-se como conjunção coordenativa adversativa) ou entre períodos distintos, ou esvazia-se semanticamente, funcionando como operador discursivo.

Logo, a gramática de uma língua está em constante formação, e, por isso, estou certo de que muito nos resta pesquisar neste âmbito de estudo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Várias cantigas reunidas, fotocopiadas dos diversos cancioneiros.

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