ORDENAÇÃO DE ADVÉRBIOS LOCATIVOS
UMA PROPOSTA DE ABORDAGEM FUNCIONAL

Mariângela Rios de Oliveira (UFF)

INTRODUÇÃO

Nossa pesquisa faz parte do Projeto Integrado Ordenação de advérbios no português escrito: uma abordagem histórica, coordenado por Mário Martelotta (UFRJ). Também participam da pesquisa Maria Maura Cezario (UFRJ) e Victoria Wilson (UERJ). Trata-se de uma investigação desenvolvida no âmbito do Grupo de Estudos Discurso & Gramática, comunidade acadêmica de orientação funcionalista norte-americana que vem, ao longo de mais de uma década, dedicando-se à investigação das estruturas lingüísticas em uso no português do Brasil.

Iniciamos o estudo da ordenação de advérbios locativos no português escrito, com ênfase na comparabilidade da fase contemporânea com a fase arcaica, com o objetivo de detectar o que houve de mudança em relação à distribuição desses elementos na cláusula e o que houve de estabilidade no que diz respeito aos processos de natureza cognitiva e de natureza pragmático-discursiva que regulam suas tendências de ordenação. O estudo também prevê uma comparação entre diferentes tipos de textos brasileiros da fase contemporânea, como narrativas recontadas e experienciais, relatos de procedimento e de opinião, descrições de espaços interno e externo, entre outros, a fim de detectar diferenças no uso dos advérbios locativos na sincronia atual que possam ser associadas a estratégias relacionadas à estruturação de cada tipo de discurso.

Estamos investigando constituintes circunstanciais tais como aí, aqui, ali, lá, cá, abaixo, acima, adiante, atrás, entre outros, bem como termos locativos arcaicos, como hi, acá, aló, allo e hu. Nesses primeiros dois anos de estudo, tratamos apenas dos itens locativos, para, numa próxima etapa, nos debruçarmos sobre as locuções e demais expressões de valor adverbial locativo. Essa opção visa tornar nossa proposta viável e exeqüível, em compatibilidade com os objetivos propostos, dada a multiplicidade funcional dos itens em análise, a variedade de corpora a serem investigados e as distintas tipologias em observação.

Nossa pesquisa focaliza três aspectos dos usos dos advérbios locativos que são aparentemente distintos, mas que uma análise mais atenta revela estarem bastante relacionados: as suas tendências de ordenação, a polissemia que caracteriza seus usos e o fenômeno da gramaticalização.

Observar a ordenação dos diferentes tipos de locativos implica analisar a colocação desses constituintes, já que a categoria maior em que se inserem - a adverbial, é composta por termos de variada natureza, o que a torna mais híbrida em relação às demais do português. Além disso, observar o comportamento específico dos elementos adverbiais implica examinar a polissemia que caracteriza seus usos. Se quisermos saber como se desenvolve essa polissemia, precisamos levar em conta, além dos mecanismos de extensão metafórica e metonímica, os processos envolvidos na mudança por gramaticalização.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para a análise da ordenação de advérbios locativos, partimos de pressupostos funcionalistas, conforme os postulados em sua vertente norte-americana (Givón, 2001; Ferreira et alii, 2000; Martelotta et alii, 1996; Traugott, 1995). Segundo tal perspectiva, há íntima associação entre conhecimento / experiência de mundo e modo de produção / organização das formas lingüísticas, no sentido de que os padrões gramaticais ou estruturais da língua se fixam ou moldam em parte de acordo com o conjunto de vivências de uma comunidade; em outras palavras, as rotinas da expressão comunicativa resultam das rotinas histórico-sociais dos humanos. Na configuração e regularização do uso, entram em cena motivações de natureza discursiva, relativas às estratégias pragmático-comunicativas da interação, e de natureza cognitiva, referentes ao processos mentais envolvidos no uso lingüístico, como as extensões de sentido metafórica e metonímica.

Em consonância com essa teorização, entendemos discurso como o modo particular e pessoal com que cada usuário se apropria da codificação da língua, a forma pela qual seleciona e organiza o que vai declarar. Trata-se do contexto de uso concreto das formas lingüísticas, tanto em termos de sua produção, como de sua recepção.

Por outro lado, assumimos gramática como o conjunto das estratégias regulares, fixadas como parâmetros estruturais via freqüência de uso, formas eleitas pela comunidade lingüística como ritualizações de expressão.

Trabalhamos ainda com o subprincípio de camadas (Hopper, 1991), que diz respeito ao fato de as línguas freqüentemente possuírem mais de uma forma para desempenhar funções correspondentes, sem, contudo, implicar o desaparecimento da forma já existente No caso dos advérbios locativos, a sua ordenação na sentença pode ser vista como um fenômeno variável, já que um mesmo advérbio pode ocupar posições diferentes na cláusula. Portanto, por serem possibilidades disponíveis para a expressão da circunstância locativa que coexistem na língua, constituem camadas. Nesse caso, o domínio funcional é a expressão sintática do papel semântico de lugar, seja este um espaço concreto, visível (como em passa no clube amanhã), ou mais abstrato, ou virtual (como em eu quero saber de estudar).

Por outro lado, temos o fato de que advérbios locativos podem assumir também funções diferentes na cláusula, como expressão de valor temporal (como em chego pelas onze da manhã...) ou mesmo textual (como nas seqüências de cláusulas iniciadas por aí). Esses fenômenos remetem ao subprincípio de divergência (Hopper, 1991).

UNIDIRECIONALIDADE EM QUESTÃO

Conforme a teoria clássica da gramaticalização (Givón, 2001), os termos lingüísticos seguem uma trajetória unidirecional, que pode ser expressa por distintos roteiros, tais como: do léxico para a gramática, do menos para o mais gramatical, do concreto para o abstrato, da liberdade para a fixação sintática, da menor para a maior vinculação de sentido e forma, entre outros. Atualmente, alguns trabalhos de orientação funcionalista (Votre, 1999, 2000; Ferreira, 2000), numa perspectiva histórica de investigação empírica, começam a questionar a unidirecionalidade como uma única via de gramaticalização. Esses autores, a partir de suas análises, concluem que a estabilidade também faz parte da trajetória dos usos lingüísticos, enfatizando a necessidade de se lançar um olhar atento, na abordagem histórica do português, para os fenômenos de continuidade, tão relevantes e freqüentes como os de variação e mudança.

A esse respeito, no caso específico dos locativos, importa testar se, de fato, podemos falar numa derivação semântica espaço > tempo > texto, conforme a postulada por Heine et alii (1991), que teria ocorrido ao longo da trajetória da língua portuguesa. Pesquisas anteriores, como a de Oliveira (1997), que investigou os usos de onde em distintas sincronias do português, apontam, além de fenômenos de mudança, instâncias de estabilização e de variação nesses usos, o que enseja rever toda essa proposição que privilegia tão somente a perspectiva unidirecional.

Ainda em termos de gramaticalização dos locativos, estamos averiguando a possível migração categorial item adverbial > conector clausal > operador discursivo. No cotejo de fontes de distintas sincronias do português, com base na freqüência de uso, verificamos se tal ciclo funcional efetivamente pode ser comprovado.

Assumimos, portanto, que, além da unidirecionalidade, tal como formulada e assumida pela teoria da gramaticalização, devemos incorporar à pesquisa dos usos lingüísticos a perspectiva da não-unidirecionalidade ou da multidirecionalidade.

ABORDAGEM HISTÓRICA

Uma apreciação histórica do uso dos advérbios locativos nos leva a algumas reflexões interessantes. De uma perspectiva diacrônica, percebemos que a ordenação de determinados locativos parece ter mudado com o tempo. É o caso ilustrado no trecho a seguir, representativo do período arcaico; em (1), o locativo hi situa-se entre o sujeito e o verbo, num ambiente sintático distinto do uso mais regular dos dias atuais, nos quais a tendência seria para uma colocação pós-verbal do locativo:

(1) ... ca a rene)brança do pecado com aquel deleyto que home) hi recebe faz feder e avorrecer a alma aaquel que a no corpo meteu. (Livro das aves. p. 22)

Em (2), encontramos a forma allo, variante da locativa , provavelmente originada a partir da junção da preposição a ao referido advérbio; nesse exemplo, de um texto do século XV, o locativo situa-se também entre o sujeito e o verbo:

(2) A menos de el Rei allo hir com seu poder. (Fernão Lopes, D. J., p. 130)

Há fortes indícios, portanto, de que haveria, ao menos, uma situação de variação no que diz respeito à colocação desses advérbios no português arcaico, variação essa que teria desaparecido na fase contemporânea. É o que se pode ser observar nos três exemplos de ordenação do locativo aquy que se seguem :

(3) ... crea que por afremosentar nem afear aja aquy de poer maís caaquilo que vy... (Carta de Caminha, folha 1)

(4) ... da marinhajem e simgraduras docaminho nõ darey aquy cõta avossa alteza... (Carta de Caminha, folha. 1)

(5) ... os outros dous queo capitã teue nas naaos aque deu oque Ja dito he. numca aquy mais pareçeram... (Carta de Caminha, folha 8)

Em (3), o advérbio aquy interpõe-se ao sintagma verbal aja de poer, afetando, de certo modo, o vínculo semântico-sintático dessa construção; em (4), o locativo se situa entre o verbo e seu objeto, comprometendo também a proximidade de sentido e forma da estrutura VO; em (5), aquy está numa seriação adverbial, o que parece indicar que os constituintes numca e mais, atualmente utilizados de modo muito vinculado, a constituir mesmo uma locução de natureza adverbial, deviam ser, na época da Carta, termos de maior autonomia funcional e estrutural. Trata-se, nos três exemplos, de formas de ordenação distintas da atual sincronia do português.

Os trechos ilustrados anteriormente, se comparados a suas correspondentes versões na sincronia atual à luz do princípio de iconicidade (Martelotta et alii, 1996), poderiam ser interpretados como estruturas em que a ordenação do termo adverbial revelaria menor integração semântico-sintática entre sujeito - verbo ou verbo - objeto. O subprincípio icônico de proximidade prevê que conteúdos mais próximos do ponto de vista conceptual e cognitivo devem estar também mais próximos na codificação lingüística. Assim, a intercalação de advérbio nas seqüências SV ou VO seria forte indício de quebra de conteúdo e estrutura entre esses dois constituintes oracionais.

Outro subprincípio icônico - ordenação linear, poderia ainda ser utilizado para a abordagem funcionalista de tais seqüências. Conforme tal postulado, a ordem pela qual os constituintes surgem na expressão lingüística revela sua maior ou menor previsibilidade, importância ou tematização. Nesse sentido, se considerarmos que a ordenação arcaica apresenta padrões distintos em relação à sincronia atual, como se revela pelos cinco exemplos ilustrados, estamos postulando que, além do locativo, sujeito, verbo e outros termos teriam alterado sua previsibilidade, importância e tematização ao longo da trajetória da sintaxe portuguesa. Não se pode descartar a hipótese de que essa mudança está relacionada a uma tendência mais geral de ordenação vocabular característica do português arcaico, que apresentava uma mobilidade sintática maior em relação à sincronia atual.

Sabemos, com Pádua (1960) e Ribeiro (1995) e Mattos e Silva (1989) que a frase iniciada por verbo é uma das mais freqüentes no português arcaico (tão freqüente quanto a ordem SVO) e que outras ordenações, como SOV não são incomuns. Associado a esse fenômeno, está o fato de que, nessa fase, de acordo com os trabalhos de Kato et alii (2002) e de Duarte e Kato (1998), o português, assim como outras línguas românicas, como o italiano, o espanhol, tendia a não preencher os sujeitos referenciais de primeira, segunda e terceira pessoas.

USO ATUAL

A partir da segunda metade do século XX, o português brasileiro parece passar a evitar esse tipo de construção, tendendo a preencher, com mais freqüência, os sujeitos. É possível que a mudança da posição dos elementos argumentais da cláusula tenha suscitado uma mudança na posição dos advérbios, já que há evidências de que, mesmo na fase atual, cláusulas com sujeito oculto, indeterminado ou inexistente admitem advérbio em posição pré-verbal, posição que não é regular no português contemporâneo.

Acreditamos que, ao lado desses dados de ordem estrutural, atuam fatores pragmático-discursivos. Nesse sentido, levando em conta o processo de gramaticalização, pode-se observar que, com o seu desenvolvimento, novos usos surgem, especializando-se em posições específicas. É o caso, por exemplo, do locativo , que, via gramaticalização, passou a assumir valor seqüencial, indo para o início da cláusula, ora como conector clausal, como em (6):

(6) ... eu falei que não queria, ele perguntou se eu tinha telefone, e eu falei que não tinha, ele me deu o dele... (D & G - Niterói)

Ora como operador discursivo, fazendo a conexão de trechos textuais mais extensos, para além do período, conforme (7):

(7) E há muitos (acidentes), infelizmente, porque nessa de cada um dirigir como quer, sempre acontece um encontro errado. vem a burocracia do quem paga, quem assume, quem foi o culpado, quem provocou, quem foi o maior lesado... (Oliveira, p. 17)

GRADIENTE CATEGORIAL

Conforme a perspectiva funcional que orienta nossa pesquisa, partimos do entendimento de que os locativos fazem parte, de fato, de uma classe maior, escalar. Como trabalhamos com base numa proposta categorial prototípica (Taylor, 1995), podemos abrigar esses constituintes na classe genérica dos advérbios, embora desprovidos, em alguns contextos, dos traços mais fundamentais do eixo nuclear categórico.

Com base na perspectiva da abordagem dos locativos como um gradiente categorial, as diversas ordenações de i/aí, sua polissemia e tendências de gramaticalização podem ser pesquisadas, por exemplo, sem incompatibilidade teórico-metodológica. Assim, este subprojeto investigará tanto a variação sintática, como nos contextos arcaicos:

(8) ... e se m’ela fazer quisesse bem, nõno queria ser rei, nem seu filho, nem emperador Se per i seu bem ouvess’a perder. (G e R: p. 169)

(9) E algu(u(s as veen por seu proveito, ca melhoran i sa vida. (Diálogos de São Gregório)

Quanto fenômenos relativos à polissemia (espaço físico > espaço virtual > espaço temporal > espaço textual) e à gramaticalização (advérbio > conector > operador) dessa partícula, como nos seguintes trechos, respectivamente, da sincronia atual:

(10) Ele não é exatamente meu amigo, e eu fiquei surpresa quando ele disse que precisava conversar comigo. Foi então que ele me fez uma oferta de estágio... (D & G, Rio)

(11) A tinta a óleo requer, antes de tudo muita habilidade por que sua secagem é muito lenta. Daí que o pintor deve trabalhar por etapas... (D & G, Natal)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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KATO, Mary A. et alii. Português brasileiro no final do século XIX e na virada do milênio. In: CARDOSO, Suzana et alii. (org.) 500 anos de história lingüística do Brasil. Bahia: EDUFBA. (No prelo em 2002)

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