OS GÊNEROS DO DISCURSO
E O TEXTO ESCRITO NA SALA DE AULA
UMA CONTRIBUIÇÃO AO ENSINO

Maria Angélica Freire de Carvalho (UERJ, UNICAMP)

 

...o texto é um construto histórico e social , extremamente complexo e multifacetado, cujos segredos ( quase ia dizendo mistérios ) é preciso desvendar para compreender melhor esse milagre que se repete a cada nova interlocução – a interação pela linguagem , linguagem que , como dizia Carlos Franchi, é atividade constitutiva.

(Ingedore G.Villaça Koch: Nov./2001)

 

O objetivo deste texto é o de retomar a questão dos gêneros textuais , elucidada por Mikhail Bakhtin, bem como o de apresentar as particularidades e as características de tal abordagem . E a partir disto, verificar o entremeio teoria e prática de ensino no tocante à produção de textos na escola . Outro ponto abordado é a relação entre aquela concepção lingüístico-enunciativa e as diretrizes que norteiam os currículos escolares e os seus conteúdos mínimos , na área de Linguagem , refletindo a função do professor no exercício pedagógico .

Destaca-se como ponto de partida para este texto um dos aspectos sobre o ensino de Língua Portuguesa apresentado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais , os famigerados PCNs, diretrizes que norteiam os currículos e seus conteúdos mínimos , novo caminho aludido como saída para muitos impasses na área educacional : os gêneros textuais como objeto de ensino .

Sabe-se que , naquele documento , os conteúdos de Língua Portuguesa encontram-se distribuídos em dois eixos de práticas de discursivas: usos de linguagem e reflexão sobre a língua e a linguagem . Aqui , ressalta-se o eixo usos de linguagem , o qual tem como enfoque o caráter enunciativo desta, o que permite nomear as seguintes preocupações de estudo : a historicidade da linguagem ; o contexto de produção dos enunciados ; a produção de textos orais e escritos ; o modo como o contexto de produção contribui para a organização do discurso , ou seja, para as tipologias comunicacionais ( gêneros e suportes ). Disto, conclui-se que o texto é considerado unidade de ensino e os gêneros textuais , objetos de ensino .

Passa-se a  refletir , então , sobre tais objetos de ensino , focalizando o entrelace entre os gêneros discursivos e a produção textual na escola . A concepção para a proposta de organização dos gêneros discursivos se pautou num enfoque lingüístico-enunciativo, como já se mencionou, que tem como pano de fundo a teoria dos gêneros do discurso , conforme Mikhail Bakhtin (2000: 279-287)

BAKHTIN argumenta que dentro de uma dada situação lingüística o falante / ouvinte produz uma estrutura comunicativa que se configurará em formas-padrão relativamente estáveis de um enunciado , pois são formas marcadas a partir de contextos sociais e históricos . Em outras palavras , tais formas estão sujeitas a alterações em sua estrutura , dependendo do contexto de produção e dos falantes / ouvintes que produzem, os quais atribuem sentidos a determinado discurso . Logo , conclui-se que são muitas e variadas as formas dos gêneros textuais . (Cf. BAKHTIN, 1953/2000: 279)

Nas palavras deste autor , os gêneros textuais são tipos relativamente estáveis de um enunciado ( Idem , p. 279 e 281) e que dada a riqueza e a variedade dos tipos [1], eles podem ser separados em dois grupos : gêneros primários – aqueles que fazem parte da esfera cotidiana da linguagem e que podem ser controlados diretamente na situação discursiva, tais como : bilhetes , cartas , diálogos , relato familiar ... – e gêneros secundários – trata-se de textos , geralmente mediados pela escrita , que fazem parte de um uso mais oficializado da linguagem ; dentre eles , o romance , o teatro , o discurso científico ..., os quais , por esta razão , não possuem o imediatismo do gênero anterior .

Entretanto , os gêneros secundários acabam, de certo modo , suplantando os gêneros primários , considerando-se que estes fazem parte de uma troca verbal espontânea , e que aqueles representam uma intervenção nesta espontaneidade , pois se apresentam de modo mais complexo e, geralmente [2], escritos . Não é absurdo dizer que os gêneros primários são instrumentos de criação dos gêneros secundários . Daí, podem-se apontar as características dos gêneros textuais : são formas-padrão de um enunciado que possuem conteúdo , uma estruturação específica e mutável a partir de relações estabelecidas entre os interlocutores ; do mesmo modo , um estilo ou certa configuração de unidades lingüísticas .

O professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra , SCHNEUWLY, ( Apud ROJO, R.H.R, texto mimeografado, p. 2) define os gêneros como instrumentos , mega-instrumentos, de articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares ; principalmente , no tocante à produção e à compreensão de textos orais ou escritos . Ele ressalta que neste processo estão envolvidos elementos centrais da atividade humana : sujeito , ação , instrumento . Enquanto sujeito , o enunciador age discursivamente; na ação , tem-se a situação comunicativa definida e no que diz respeito ao instrumento , configuram-se parâmetros , gêneros que são pinçados de acordo com a situação . Tanto aquele autor como BRONCKART[3] argumentam, ainda , que tais realizações são apontadas como capacidades : capacidade de ação : adaptação às características do contexto e do referente ; capacidade discursiva: mobilização de modelos discursivos; capacidade lingüístico-discursiva: domínio de operações psicolingüísticas e das unidades lingüísticas .

Com estas postulações, vê-se que os modos de organização do discurso e a organização estrutural dos enunciados são resultantes da situação de produção daquele(s) discurso (s); assim , é necessário delinear os gêneros do discurso , citando a situação de produção , o tema , a forma composicional, as marcas lingüísticas , etc e disponibilizá-los aos produtores / alunos e aos orientadores / professores para uma prática efetiva da linguagem . Para tal , é importante considerar , segundo SCHNEUWLY ( texto mimeografado, p. 11), o modo como se operam as escolhas discursivas:

a)                     psicologicamente, um tipo de texto é o resultado de uma ou de várias operações de linguagem efetuadas no curso do processo de produção ;

b)     estas operações podem, em especial , dizer respeito às seguintes dimensões :

Ø  definição da relação à situação material de produção , tendo como possibilidades uma relação de implicação ou uma relação autônoma ;

Ø  definição de uma relação enunciativa com o dito , tratado como disjunto , pertencente a um outro mundo , lingüisticamente criado , ou tratado como conjunto , pertencente a este mundo ;

Ø  provavelmente, a isto se somam decisões sobre os modos de geração de conteúdos (DOLZ, 1987), que podem descrever , por exemplo , referindo-nos aos tipos de seqüencialidades distinguidas por ADAM[4] (1992);

c)                     levando em conta o que foi dito anteriormente , fazemos ainda a hipótese  suplementar de que estas operações não se tornam disponíveis de uma só vez , mas que se constroem no curso do desenvolvimento .

Para BRONCKART (1994), os gêneros constituem ações de linguagem que requerem do agente produtor uma série de decisões que ele necessita  ter competência para executar : a primeira delas, é a escolha que deve ser feita a partir do rol de gêneros existentes, em que ele escolherá aquele que lhe parece adequado ao contexto e à intenção comunicativa ; e a segunda , é a decisão e a aplicação que poderá acrescentar algo a forma destacada ou recriá-la. Este autor conclui:

A escolha do gênero deverá, portanto , levar em conta os objetivos visados, o lugar social e os papéis dos participantes. Além disso, o agente deverá adaptar o modelo do gênero a seus valores particulares , adotando um estilo próprio , ou mesmo contribuindo para a constante transformação dos modelos . (BRONCKART, 1994.)

No tocante à ação pedagógica , disponibilizarem-se aos alunos modelos de textos não é o bastante , é preciso encaminhar uma reflexão maior sobre o uso de cada um deles, do mesmo modo , considerar o contexto de uso e os seus interlocutores . Por isto , é imprescindível abarcar a questão dos gêneros discursivos como um quesito central do trabalho com a linguagem na escola . Não se prendendo, somente , às tipologias textuais : narração , descrição , argumentação , injunção , etc.; pois , afinal , estas seqüencialidades mesclam-se nos variados gêneros discursivos, constituindo-os em formas híbridas destinadas a um propósito comunicativo que se relacionará às práticas sócio-comunicativas vigentes.

Este quesito se fortifica ainda mais ao se levar em conta que é a partir dele que outros aspectos relacionados ao ensino da Língua são vistos : avaliar as formas existentes, observar o plano composicional e verificar as situações de uso são ações que precisam ser bem orientadas para que a produção e a compreensão da linguagem se realizem de modo significativo . Conseqüentemente , tem-se, como se definiu a princípio , a língua como unidade de ensino e os gêneros como objeto deste.

Deste modo , do que foi exposto , pode-se  concluir que é de extrema importância a utilização em sala de aula , independente da disciplina de estudo , de diferentes gêneros textuais . O professor / orientador deve chamar a atenção do aluno / produtor para o plano composicional, o conteúdo temático e o estilo pertencentes a determinado texto que se pretenda  produzir e / ou que se está em interação . Com isto , certamente , ele estará contribuindo para a construção do(s) sentido (s) do texto , o que confirma a imbricação entre produção e compreensão daqueles. De acordo com KOCH (2002: 53):

O contato com os textos da vida cotidiana , como anúncios , avisos de toda a ordem , artigos de jornais , catálogos , receitas médicas, prospectos , guias turísticos, literatura de apoio à manipulação de máquinas , etc., exercita a nossa capacidade metatextual para a construção e intelecção de textos . ( Grifos nossos ).

É compreensível que quanto maior for o contato do aluno com os diferentes tipos de textos , quer sejam oriundos da esfera social cotidiana ( diálogos , cartas , bilhetes ...), quer sejam provenientes de uma esfera pública e mais complexa de interação verbal ( discurso científico , teatro , romance ...) maior será a sua capacidade de identificar e de  refletir sobre os mecanismos lingüísticos e extra-lingüísticos que constituem o processo comunicativo ; em particular , aqui , ao texto escrito e a sua produção . É mister chamar atenção ao fato de que toda atividade de produção tem de caminhar de acordo com um objetivo , para que ela se configure como tal e não seja apenas uma mera redação escolar .

As considerações teóricas trazidas, aqui , não são uma novidade , como se possa supor , por serem encontradas nos argumentos dos novos parâmetros curriculares. Mas causa estranheza constatar que elas não fazem, ainda (?), parte de muitos espaços dialógicos importantes , tais como os cursos de Letras , responsáveis pela formação dos futuros professores de Língua Portuguesa.

Afirmar que os PCNs apresentam propostas inovadoras em que se ressalta o esforço para a promoção da reflexão e de sua transposição didática para , assim , realizar uma construção dialogada entre ensino e prática educativa está correto . Entretanto , é necessário admitir que a elaboração de tal documento e o reconhecimento de sua eficácia não bastam para que a prática educativa se dê de modo pleno e satisfatório .

Em suma , para que as postulações apresentadas se configurem em mecanismos de mudança e de promoção do saber é imprescindível que se invista no profissional de educação , oferecendo-lhe condições para que se mantenha informado, realizando estudos intensificados e com atualização constante . Assim , certamente , fazer-se-á a imperiosa contribuição ao ensino .

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso . In: –––. Estética da criação verbal , [trad. francês : Maria Ermantina Galvão; revisão : Marina Appenzeller]. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes , 2000, p. 279-287.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Os gêneros do discurso e a produção textual na escola . Campinas : UNICAMP, [mimeo].

––––––. Os gêneros do discurso . In: –––. Desvendando os segredos do texto , São Paulo: Cortez, 2002, p. 53-60.

MAINGUENEAU, Dominique. Tipos e gêneros de discurso . In: Análise de textos de comunicação , trad. de Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha , São Paulo: Cortez, 2001, p. 59-70.

ROJO, Roxane Helena Rodrigues. Interação em sala de aula e gêneros escolares do discurso : um enfoque enunciativo. [mimeo].

––––––. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula : progressão curricular e projetos , In: ––– et alii, A prática de linguagem em sala de aula – praticando os PCNs, São Paulo: EDUC – PUC-SP, 2000, p. 27-38.

SCHNEUWLY, Bernard & DOLZ, Joaquim. Os gêneros escolares : das práticas de linguagem aos objetos de ensino . Revista Brasileira de Educação , nº 11, mai/jun/jul/ago- 1999, p. 5-16.

––––––. Gêneros e tipos de texto : considerações psicológicas e ontogenéticas, [trad. Roxane Helena Rodrigues Rojo – LAEL/PUC-SP, mimeo].



[1] Em alguns estudos desenvolvidos pela Lingüística Textual , tipo textual é uma noção que remete ao funcionamento da constituição estrutural do texto , isto é, um texto , pertencente a um dado gênero discursivo, pode trazer na sua configuração vários tipos textuais como a narração , descrição , dissertação / argumentação e injunção , os quais confeccionam a tessitura do texto , ou , nas palavras de Bakhtin, constituem a estrutura composicional do texto segundo os padrões do gênero . De acordo com MANGUENAU (2001), p. 61, embora alguns autores empreguem os dois termos indiferentemente , a tendência atual é discerni-los: “os gêneros do discurso pertencem a diversos tipos de discursos associados a vastos setores de atividade social ”. Para Luiz A. Marcuschi, “ um tipo seria muito mais um constructo teórico , ao passo que um gênero seria uma identificação empírica , mas não necessariamente a identificação de um evento ”.

[2] Neste gênero há a predominância de relações formais mediadas pela leitura / escrita , em especial , o que não significa ser uma característica exclusiva e sine qua non.

[3] Professor da Universidade de Genebra , desenvolveu trabalhos sobre este tema com SCHNEUWLY.

[4] Citam-se, aqui , as seqüencialidades distinguidas por ADAM (1992): narrativa , descritiva, argumentativa, instrutiva e dialogal .