Oficina de tradução: lendo e interpretando Gabriela cravo e canela ao modo do Tio Sam.

Adilson da Silva Corrêia

Professor de Metodologia do Ensino do Inglês da Universidade do Estado da Bahia

 

EMENTA

Interpretação de excertos de Gabriela cravo e canela sob o paradigma da tradução domesticadora

 

JUSTIFICATIVA

A tradução é um campo de estudo múltiplo que tem revelado a forma com que obras inteiras são interpretadas em diversas línguas estrangeiras ou segundas línguas. Como se constitui em um processo, a tradução é gerada dentro de conceitos que dependem da razão do autor e, naturalmente, de um conjunto de fatores que controlam esse processo. Desta forma, não se pode entender tradução apenas como um mecanismo simplificado de decodificação e de retransmissão de idéias de uma língua para uma outra língua, tampouco pensarmos que ela seria unicamente uma compreensão da cultura de um povo, mas sim entender que a tradução é um conjunto de macroestruturas e microestruturas simultaneamente existentes. Assim, evita-se resumi-la ao generalismo ou então ao subjetivismo.

 

Partindo desse pressuposto, analisaremos Gabriela cravo e canela de Jorge Amado na versão americana de Gabriela clove and cinnamon de William Grossman e James L. Taylor, buscando entender os momentos em que para satisfazer a macro- ou microestruturas, deu-se o processo de domesticação, determinada por características ao nível mercadológico.

 

METODOLOGIA

Leitura e interpretação dos textos, tanto em português, quanto em inglês.

Tradução de textos do inglês para o português e vice-versa.

Pesquisa em dicionários e glossários bilíngües.

 

CONTEÚDO

Relatos históricos de primeiros tradutores e intérpretes americanos

Paradigmas da tradução

O paradigma da domesticação

Autoria e tradução

Best seller e tradução

 

AVALIAÇÃO

Tradução de textos em inglês e em português a partir de outros textos em ambas as línguas.

 

2- Contextualizando a tradução: da história aos paradigmas

Antes de iniciarmos os nossos estudos práticos a fim de sentirmos o que realmente é a força da domesticação de uma obra para uma outra língua, vamos entender o que é a tradução dentro de alguns paradigmas e a forma de muitos compreenderem-na como um resultado de um processo tipicamente prático. Não queremos de hipótese alguma afirmar um novo modelo, até porque não o é, mas definir as forças que organizam o processo tradutório e alguns parâmetros, na maioria "tiranos", pelos quais as obras traduzidas passam.

Iniciemos por alguns relatos históricos de tradução, para depois nos engajarmos nos modelos que, na sua época, funcionaram na explicação de questionamentos e angústias vividas pelos intérpretes e tradutores.

 

2.1. Primeiros tradutores e intérpretes

Historicamente, a tradução não é um processo novo, vem da relação dos homens, não importando a finalidade, com os outros povos, consequentemente, com outras línguas, lançando, sempre, de mão dos processos tradutórios e interpretativos para que fossem estabelecidas a compreensão e a coleta de informações sobre o povo-alvo. Dentro dessa organização comunicativa, ocorre a domesticação do código à vontade do intérprete e do tradutor, respondendo ao modelo cultural do "eu", anulando o "outro", revelando a face da crueldade, da destruição, do preconceito e da subalternidade.

Todorov (1988)[1] e León-Portilla (1987)[2] registram histórias de náufragos e índios que foram pioneiros, nas Américas, no saber da interpretação e da tradução. Na América do Norte, a cultura asteca foi revelada a Martins Cortez graças aos trabalhos dos intérpretes  la Malinche e de Jerónimo de Aguilar, como fica evidente em esse Aguilar, transformado em intérprete oficial de Cortez, lhe prestará serviços inestimáveis.[3] Aguilar era náufrago espanhol que conviveu com a cultura maia durante um bom período de tempo, enquanto Malinche era asteca, vendida aos maias como escrava.

Estabelecia-se assim uma relação lingüístico-cultural binária perfeita, de um lado o espanhol-maia, representado por Aguilar, e do outro lado o nahuatl-maia, representado por Malinche. Os dois se constituiriam brevemente em uma trama da conquista e na principal arma do signo que o Capitão Cortez iria utilizar para a definitiva derrocada do povo asteca.

Eis um resumo de como se processaram a tradução e a interpretação, na interseção lingüístico-cultural de Malinche e Aguilar, e que puderam ajudar os ditos povos vencedores da América dentro do que consideramos forças da domesticação e da subjugação [...], no início, uma cadeia bastante longa: Cortez fala a Aguilar, que traduz o que ele diz para a Malinche, que por sua vez se dirige ao interlocutor asteca [4], e concluímos, finalmente[...] é a conquista eficaz da comunicação que conduz à queda final do império asteca[...].[5]

O modelo de conquista da América do Norte via signo não ficou restrito aos conquistadores espanhóis, ao contrário, sempre foi necessário aos povos vencedores. Assim, no Brasil, temos registros históricos dos "línguas", pessoas que estabeleciam a comunicação entre a língua nativa e a língua dos invasores. Caramuru e Ramalho são figuras inesquecíveis dos processos de interpretação, conhecedores do Tupi e do Português fechavam o circuito comunicativo da Conquista. Os missionários foram os maiores responsáveis pelo domínio português da terra brasilis, graças inclusive ao conhecimento profundo das línguas indígenas, a ponto de elaborarem gramáticas, como a Arte de gramatica da lingoa mais vfada na cofta do Brafil,[6] de autoria do padre José de Anchieta.

 

2.2- Os paradigmas da tradução

2.2.1- Modelo clássico

A tradução é realizada palavra por palavra, mantendo-se assim uma pretensa fidelidade do significado, desconsiderando a carga histórico-cultural da obra de origem em detrimento da fluidez lingüística. Nesse modelo, exigia-se do tradutor:[7]

a)       formação universitária do tradutor na área de estudo;

b)       conhecimento profundo do vernáculo das línguas envolvidas no processo;

c)       sólida cultura na língua de partida.

A tradução, nesse modelo, é vista como  mudança do código de forma fluente para o leitor, interessando a coerência das estruturas na língua de chegada. Arrojo (1986)[8] compara-a a um trem, onde cada vagão representa a carga semântica precisa e rígida. Representa, nesta  visão, um modelo linear e intensamente fechado. Segundo Pedreira (2001), seria o paradigma da transparência, onde se estabelecia prioridade para a legibilidade e a fluência.

 

2.2.2-         Modelo da fidelidade-infidelidade

Foi uma reação ao modelo clássico, onde a tradução passa a ser entendida como produto resultante de vários fatores, intrínsecos ao sujeito-tradutor, tais como: estilística, história, cultura. Retoma-se a etimologia da palavra traduzir, chegando à razão de que traduzir é trair. Alguns pontos importantes desse modelo:[9]

a)       as visões de mundo do sujeito-tradutor são consideradas;

b)       a diferença estilística entre os idiomas;

c)       os aspectos estruturais semânticos interlinguais.

Segundo os estudos de Pedreira (2001), seria o paradigma da voicificação do tradutor. 

 

2.2.3-         Modelo da domesticação

Este modelo visa a compreender que as mudanças no âmbito da tradução respondem a cargas de poder construídas por modelos sócio-culturais ditos superiores. Busca entender as tramas mercadológicas que apagam e reduzem modelos sócio-culturais não convenientes aos padrões da cultura de chegada, o que impossibilita ao leitor estrangeiro uma avaliação e interpretação diferentes das que obteve na cultura estrangeira.[10]

Defende-se, neste modelo, que ao tradutor, enquanto mediador do intercâmbio cultural inter-literaturas, cabe não apenas explorar valores estrangeiros como desencadear mudanças nas perspectivas domésticas, contribuindo para o enfraquecimento das fronteiras culturais.[11]

Ressaltam-se, nesse modelo, os seguintes pontos:

a)       valorização da cultura de chegada em detrimento da cultura de partida, evidenciando-se um forte etnocentrismo;

b)       linguagem fluente e cristalina, resultando no apagamento e redução de formas ditas não convenientes ao considerado padrão;

c)       mudanças profundas dos eixos temáticos.

 

3- A Gabriela cravo e canela de Jorge Amado vira Gabriela clove and cinnamon

3.1- Breve biografia do criador de Gabriela

Jorge Amado nasceu em Ferradas, Bahia, no ano de 1912 e morreu em Salvador, no ano de 2001. Escreveu 28 obras, das quais algumas foram relidas pelo cinema e pela televisão, tais como: Tieta do Agreste; Gabriela cravo e canela, Tereza Batista cansada de guerra, Dona Flor e seus dois maridos, entre outras. Ativista do antigo PC (Partido Comunista) até 1958, Jorge é responsável pela elaboração de leis que tratam da intolerância religiosa, sendo um defensor da liberdade de cultos e crenças.

                As obras de Jorge Amado são conhecidas em 50 línguas, graças ao processo de tradução, sendo que Gabriela cravo e canela foi a obra mais traduzida, para 29 línguas, seguida de __________________.

3.2. Algumas línguas em que Gabriela cravo e canela foi traduzida

 

3.3- Gabriela clove and cinnamon

                Mignolo (1996) incentiva questionamentos básicos para que se chegue à razão de determinadas práticas, através da contínua busca do De quem?, Para quem?, De onde?, e devemos acrescentar, Quando?

                Por esse viés, buscaremos entender a domesticação da Gabriela de Jorge Amado.

3.3.1- De quem?

                Os responsáveis pela tradução de Gabriela cravo e canela para o inglês, em primeira mão, foram William Grossman e James L. Taylor, ambos consagrados pela crítica internacional por terem traduzido outras obras brasileiras.

                Pedreira (2001) traz algumas informações valiosas acerca desses tradutores e do editor que podem, a priori e concernente a outros fatores, auxiliar na compreensão de certos reducionismos e apagamentos da linguagem empregada na obra original.

                Grossman já havia traduzido Memórias Póstumas de Brás Cubas, em inglês Epitaph of a small winner, logrando comentários do crítico baiano Eugênio Gomes, de versão inglesa cheia da impregnação [da obra] da excentricidade britânica. [12] (inserção da autora)

                Taylor nasceu no Brasil e aqui viveu por trinta anos. Foi co-tradutor de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa, em inglês The Devil to pay in the backlands, mas foi com Gabriela que se firma enquanto tradutor. Além disso, foi autor do dicionário bilíngüe Webster's Portuguese-English Dictionary[13],  lançado em 1958 e era responsável pelos estudos hispano-americanos e luso-brasileiros da universidade de Standford. Portanto, enquanto tradutor, tinha um repertório lingüístico-cultural brasileiro bastante amplo, não obstante o romance de partida apresentar um repertório fraseológico e de coloquialismo variado tipicamente da região nordeste.

                Com relação ao editor de Gabriela clove and cinnamon, Alfred Knopf, segundo Pedreira (2001), ele foi o responsável, praticamente, pela introdução das obras amadianas no comércio americano, tendo por marco inicial Terras do sem fim, em inglês The Violent Land, em 1945. Isto elevou Jorge Amado a categoria  de autor de língua portuguesa mais lido nos Estados Unidos.[14]

3.3.2- Para quem?

                Gabriela foi traduzida para ser best seller nos Estados Unidos, e a tradução deveria ser realizada de forma a não chocar o público-alvo, sofrendo, portanto, um processo de plain style[15]. O plano dos tradutores para alcançarem a planificação da obra foi levado a cabo com a redução e apagamentos  de muitas fraseologias, expressões populares e coloquialismos que permeiam toda a obra original.

3.3.3- Onde e Quando? Para entender os apagamentos e as reduções

                Gabriela foi levada para os Estados Unidos na década de 60, precisamente no ano de 1962, quando havia o desejo estadunidense de conhecer os seus vizinhos latinos, plano esse de firmação hegemônica. Se analisarmos bem esse período de introdução do romance no domínio anglo-americano, chegaríamos a conclusão de que foi uma fase de alta efervescência cultural de vozeamento da minoria. A descolonização de alguns países africanos provocou uma onda de um crescente ideal de libertação, fazendo-se sentir, principalmente, nos negros e mulheres.

                Jameson (1994) aponta duas forças dentro do território americano capazes de provocar movimentos de descolonização: a nova política dos negros-americanos e o movimento pelos direitos civis. Além disso, as trocas e as influências mútuas entre os movimentos negros norte-americanos e os da África e do Caribe foram contínuos e incalculáveis ao longo de todo o período.[16]

                Segundo Jameson, os anos 60 significaram um período em que os "nativos" tornaram-se seres humanos, e isto tanto interna quanto externamente: aqueles internamente colonizados do Primeiro Mundo - "as minorias", os marginais e as mulheres - não menos que os súditos externos e os "nativos" oficiais desse mundo.[17]

                Como se observa, o período da tradução e do lançamento de Gabriela clove and cinnamon estava inserido em um "caldeirão" efervescente, em que a maioria marginalizada pela razão imperialista anglo-americana tentava ganhar voz, através de conquistas de direitos adquiridos historicamente. Gabriela cravo e canela parece satisfazer todos os requisitos advindos com os anos 60. Nele, a mulher, o negro, o estrangeiro marginalizados ganham voz, sentido social e fornecem histórias (com h minúsculo) para o progresso humano.

                Somados a esta carga ideológica de liberdade de expressão, do direito a voz, encontram-se a revolução cultural atrelada fortemente aos ideais maoístas provenientes da China. Sobre os ideais socialista de Mao e a relação desses com os esquerdistas norte-americanos, James (1991) comenta devem ter exalado um coletivo suspiro de alívio  quando a virada política Chinesa relegou o próprio "maoísmo" à lata de lixo da história.[18]

 


 

[1] TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução Beatriz Perrone Moisés. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
[2] LEÓN-PORTILLA, Miguel. A Conquista da América Latina vista pelos índios: relatos astecas, maias e incas. Tradução de Augusto Ângelo Zanatta. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
[3] TODOROV, op.cit., p.97.
[4] Todorov, op.cit., p.97.
[5] ____, op.cit., p.100.

[6] ANCHIETA, Ioseph de. Arte de gramatica de lingoa mais vsada na cofta do Brasil. 2 ed. fac-similada. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1981.

[7] LADMIRAL, J.R. Traduzir: Teoremas para a tradução. Tradução de Cascais Franco. Lisboa: Publicações Europa-América, 1979.

[8] ARROJO, Rosemary. Oficina de Tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática, 1986.

[9] AUBERT, Francis Henrik. As (in)fidelidades da tradução: servidões e autonomia do tradutor. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994.

[10] PEDREIRA, Lícia Maria Borba. Gabriela e os filhos de Calvino: uma leitura da versão de Gabriela cravo e canela em língua inglesa.  2001. 90f. Dissertação (Mestrado em Letras). Programa de Pós-graduação de Letras e Lingüísticas da Universidade Federal da Bahia, Salvador.

[11] ____, op.cit., p.36.
[12] GOMES, 1953, p.177-181, apud PEDREIRA 2001, p.42.
[13] PEDREIRA, op.cit., p.43.
[14] ____, op.cit, p.41.
[15] ____, op.cit.
[16] JAMESON, Frederic. Periodizando os anos 60. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa(org.). Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991,  p.85.
[17] ____, op.cit,  p.85.
[18] ____, op.cit., p.97.