A INSTIGANTE PROSA DE MATTEO BANDELLO
Alcebíades Martins Arêas (UERJ)
Delia Cambeiro (UERJ)
A tradição narrativa italiana
Não se pode negar que, durante o 500, a tradição narrativa italiana se inspirou no Decameron. Os novelistas seguiam a estrutura de composição criada por Giovanni Bocacccio (1313-75), imitando recursos estilísticos, motivos, situações e temas encontrados naquela famosa obra em “volgare”. Os mais criativos, mesmo influenciados pelo exemplo, acrescentaram ao gênero novos interesses culturais e, sem dúvida, outra consciência do real. Entre os novelistas mais inspirados nesse período, há um nome pouco trabalhado, mas de grande significação tanto européia quanto universal: Matteo Bandello (1485-1561), narrador escolhido para este ensaio. Devo iniciá-lo com uma breve reflexão sobre pontos básicos latentes na obra de Bandello e, em seguida, o Prof. Alcebíades M. Arêas fará comentários sobre problemas encontrados durante o processo de tradução da novela “La bisbetica domata” do mesmo autor.
Alguns textos de bandello, embora bastante esquecidos, ou melhor, pouco divulgados, serviram de inspiração para obras até hoje reverenciadas. Sua criação documenta muito bem sua vasta cultura literária, como o poema Canti delle lodi della signora Lucrezia Gonzaga e o Canzoniere, poemas de nítida influência petrarquista. Sua obra prima, sem dúvida, é uma série de narrativas cujo título é Novelle.
As Novelle, de Matteo Bandello
A obra é composta de 214 novelas divididas desigualmente em quatro partes. Cada novela é autônoma, sendo abolido o artifício da ‘cornice” boccaccesca. Ao iniciar sua narrativa, o escritor endereça uma carta dedicatória com seu nome a nobres ou a amigos, referindo-se à ocasião em que ouviu contar o “caso” que por ele será narrado. Bandello diz não ter inventado nada, apenas transcrito fatos referentes a várias pessoas em várias ocasiões.
Tal subterfúgio poético deu um duplo valor àquelas dedicatórias pessoais, pois eternizaram vivo e penetrante quadro da sociedade do tempo, especialmente de refinados ambientes. Além disso, serviram para confirmar o caráter de atualidade e de verdade sobre os casos de que desejava ser testemunha. O resultado dessa busca de verossimilhança não é o fato narrado, mas a dimensão que ele adquire na narrativa. A dedicatória, então, criava o ambiente, o clima que proporcionava à novela uma perspectiva de credibilidade histórica, parecendo ter o fato realmente acontecido.
O realismo do escritor não se limita à atmosfera do anônimo Novellino medieval, expandindo-se na forma com a qual instaura e exprime a tomada de consciência da realidade. Nas Novelle encontra-se a presença do fortuito e do irracional, sugerindo que, para Bandello, a realidade se mostra em seus mais imprevisíveis e desordenados aspectos, em ritmo incompreensível e confuso, em inesperadas e diversificadas manifestações. É como se nada pudesse ser reduzido a uma visão orgânica, a uma classificação ética nem a uma ordem racional.
Com a descoberta renascentista das paixões humanas, o homem configurado nas Novelle parece incapaz de controlar seus instintos e decisões. Ele é dominado pelo acaso, pelos impulsos de sua natureza. Se em Boccaccio o protagonista torna-se o centro da novela, já em Bandello o foco recai sobre o fato narrado, sobre a experiência inesperada de cunho trágico ou cômico na qual se cumpre o destino da personagem. Por tal motivo, talvez, Bandello seja visto como um verdadeiro contemporâneo de Nicolò Machiavelli e de Francesco Guicciardini, considerado também um verdadeiro representante e intérprete da civilização renascentista. Tal renovamento crítico da obra deve-se à sua consciência do real, à constante fidelidade para com a experiência humana e à disposição para demonstrar o valor ou a importância do conhecimento vivido.
Essa outra disposição moral e narrativa se demonstra na estrutura das Novelle, não só pelo abandono do elo interno que ligavam umas novelas às outras - como em Boccaccio - mas à intenção de não organizá-las. Tudo indica, e assim fazem crer seus pesquisadores, que Bandello não pensava recolher nem dispor experiências exemplares em histórias encadeadas. Seu processo mimético objetivava transcrever os diversos acidentes de uma realidade profundamante fugidia, desordenada e dinâmica. A variedade e a “desordem” constituintes do novelário bandelliano não manifestam um mero fato casual e externo, elas correspondem à forma de o autor traduzir literariamente sua “spregiudicata” - irreverente, livre de preconceitos - visão das coisas.
Mirando o extremo colorido e irracionalidade do real, Bandello chegava à cognição das mais obscuras zonas da psique. Com isso, o ficcionista mostrou novas dimensões da vida, desvelou novas categorias de indivíduos, transportando para o texto literário variada gama de seres humanos, que seriam colocados no Inferno ou no Purgatório por Dante Alighieri.
Transitam pelas Novelle as mais diversas personagens violentas, suicidas, homicidas e outras formas de infratores cujo denominador comum é o descontrole das emoções. Não foram esquecidos no Limbo temático, entretanto, personagens cujos atos reverenciam impulsos racionais e sensíveis do homem. Entre elas estão: Giulia da Gazuolo que, após ser violentada, se mata; Aelips dono de exemplar honestidade; Fra Filippo Lippi preso pelos árabes, mas libertado por sua arte e, ainda, a história de Romeo e Giulietta, famosa pela trágica ironia que os envolveu.
Relações intertextuais e as Novelle
Relação ou relações intertextuais são aquelas encontradas em determinado texto e outros que ele cita, re-escreve, absorve, prolonga, também geralmente transforma, mantendo porém o elo compreensível e demonstrável da relação entre eles. Numerosos são os exemplos de intertexto na literatura mundial de todos os tempos. Entre tantos, Ecatommiti, literalmente cem novelas, de Giambattista Giraldi Cinzio (1504-1573). Mais precisamente uma das novelas, Moro di Venezia, serviu de inspiração a Shakespeare para sua tragédia Otelo. Também a Odisséia homérica ficou tatuada em Ulisses de Joyce.
Também Matteo Bandello, na tentativa de estabelecer um vínculo com relatos supostamente ouvidos, como estratégia de elaboração mimética, criou uma suposta inter-relação com narrativas de natureza oral. Em verdade, ele teceu interessante fio condutor, unindo seu processo de abstração do real à materialização simbólica, ou seja, criando a obra literária. Evidencia-se, pois, agudo sistema intra-texto, de natureza mental e textual, em que a fonte é seu próprio texto, por ele citado, escrito ou re-escrito, absorvido, prolongado e transformado. As Novelle, no entanto, apresentam um instigante exemplo de intertextualidade: Romeo e Giulietta, os infelizes amantes, separados pela morte.
A possível fonte dessa trágica história estaria em uma lenda medieval, re-elaborada por outro criativo narrador do 500, Masuccio Salernitano (1415-1476), pseudônimo de Tomaso dei Guardati. Ele a re-esceveu em seu Novellino, com o título de “I due amanti senesi”, dando aos personagens os nomes de Mariotto e Ganozza.
Luigi Da Porto (1485-1529), nobre de Vicenza, inspirou-se no texto salernitano para compor sua Istoria novellamente ritrovata di due nobili amanti, publicada dois anos após sua morte. Da Porto mudou os nomes para Romeo e Giulietta, imaginando passar-se a trama da novela em Verona, no tempo do Senhor Bartolomeo de La Scala. Em outra edição de 1539, o longo título é mudado para La Giulietta.
É interessante comentar que Da Porto interpretaria serem mortalmente rivais as duas famílias citadas por Dante Alighieri, na Divina Commedia: “Vieni a veder Montecchi e Cappelletti/ Montaldi e Filippeschi, uom senza cura;/color già tristi, e questi con sospetti!”. Em verdade, os Montecchi - “color già tristi” - e os Cappelletti - “questi con sospetti” - eram de Verona e de Cremona.
Lope de Vega também se interessou pelo tema de Romeo e Giulietta, mas Matteo Bandello enriqueceu a fábula, complicou a intriga e dedicou a novela a Girolamo Fracastoro, com o título de “La sfortunata morte di due infelicissimi amanti che l’uno di veleno e l’altro di dolore morirono, con vari accidenti” (11,9).
O fato de Bandello exercer a função de bispo de Agen, deu-lhe a oportunidade de a obra receber tradução em francês e ser divulgada na Inglaterra por Pierre Boisteau. Em seguida, foi passada para o inglês, tornando-se bastante popular a história daquele amor impossível. Outra vez re-escrita por Arthur Broocke, em 1562, como “The tragical historye of Romeus and Iuliet”, serve de base a Shakespeare que, mais uma vez, trabalha/re-trabalha o tema.
Fora da literatura, Romeo e Giulietta foram eternizados em ópera por Nicola Zingarelli (1752-1837) a partir de um libreto de Giuseppe Maria Foppa, estreada em 1796, no Teatro alla Scala de Milano. Outra ópera de Charles Gounod utilizou libreto de Barbier e de Carré, apresentada em Paris em 1867.
A importância de Bandello, no entanto, não ficou ligada à espiralada viagem de transformação textual sofrida pela famosa lenda. Muitos são os exemplos de sua agudeza criativa, de seu engenho e arte em narrar. Ele se qualifica como excepcional contista ao explorar e descrever poeticamente e com nuances psicológicas a alma humana, ao transcrever impulsos e paixões, ao registrar com mestria os momentos culminantes dos casos que fingia - ou não - ter ouvido.
Quanto à tradução proposta para este trabalho, devo esclarecer que, por motivo de espaço, o tradutor e comentador não pôde utilizar a história de Romeo e Giulietta, pois a extensão do texto ultrapassou em muitas páginas o número estabelido para publicação. Foi escolhida uma outra bem menor, da qual também se suprimiu a introdução.
Texto literal e tradução
La bisbetica domata
Mentre il re Federico di Ragona tenne il regno di Napoli, fu in quella città un gentiluomo che aveva per moglie una assai bella e leggiadra giovane, chiamata Paola, ma tanto bizzarra e spiacevole così fastidiosa, che tutto il dí altro mai non faceva che far remore per casa con ciascuno che a le mani le capitava. E se non ci era persona con cui potesse gridare, ella da sé entrava in collera e fra' denti mormorava. Guai poi se nessuno le avesse risposto, perciò che saliva in tanto sdegno, che stava dui o tre dí che altro non faceva che garrire. Il marito che era uomo dotto e molto piacevole, ebbe su il principio assai che fare ad accordarsi seco; ma, veggendo che cosa che egli facesse o le dicesse non giovava, deliberò lasciarla gridare e mai non rispondere. E cosí pazientemente se ne visse seco trenta anni che mai non la sgridò. Avvenne che egli un dí invitò a desinare seco un suo amico. Ora, essendo a tavola e desinando, ella che era dirimpetto a l'amico del marito, veggendo in tavola certa vivanda che non era concia a modo suo, entrò in collera e quivi incominciò una intemerata di gridare e garrire ora quel servitore ed ora una fantesca. E tuttavia crescevano i gridi, di modo che l'amico invitato non poteva quella seccagine soffrire e fu quasi per levarsi da mensa. Di questo accorgendosi il marito disse: "Ohimè, fràtemo, che poca pazienza è la tua? Io trenta anni ho sofferto le strida, i gridi, i romori e le molestie insupportabili di costei e giorno e notte mai altro non sento e pazientemente il tutto soffro, e tu mezza ora sentire non la puoi?".
L'amico a queste parole s'acquetò e la donna tanto vertuosamente trafitta si sentì, che tutta la sua vita cangiò, e divenne poi sempre queta, umana, piacevole e graziosa.
(In: Le più belle novelle italiane - Dai sette savi al Pirandello. A cura di Giuseppe Morpurgo. XVI Edizione. Torino: Mondadori, 1956, p. 181-182)
A megera domada
Durante o reinado de Frederico de Aragão em Nápolis, viveu na cidade um cavalheiro que tinha uma esposa assaz bela, graciosa e jovem. Chamava-se Paula e era tão bizarra e enfadonha que passava os dias em casa a lamentar-se com todos que se lhe aproximavam. Quando não havia alguém com quem descarregar suas histerias, começava a ter ataques de cólera e a resmungar entre dentes. Se as pessoas não lhe davam atenção era pior ainda, pois se tornava irônica e debochada e levava de dois a três dias berrando e gritando. O esposo, um homem culto e muito agradável, estava sempre disposto a ouvi-la e, pacientemente, lhe respondia, concordando com tudo que ela dizia. Certo dia, porém, cansado dos caprichos da amada e seguro de que seria inútil tentar contentá-la, resolveu deixá-la de lado, falando , reclamando e gritando sozinha. Trinta anos então se passaram e ele nunca mais lhe dirigiu ou respondeu palavra ou lhe fez qualquer espécie de reprovação. Uma noite, convidou um amigo para o jantar. Estavam à mesa jantando e a esposa que se encontrava frente a frente com o convidado, tendo visto um prato que não fora preparado conforme seu agrado, entrou em cólera e começou a gritar, berrar, urlar; ora chama a governanta, ora o criado. E gritando cada vez mais alta, assustou o convidado que, não podendo mais suportar a cena de ataques histéricos, fez menção de retirar-se da mesa. O esposo, atento aos movimentos do amigo, disse: " Ora, meu irmão, que pouca paciência é a sua ? Eu há trinta anos tenho sofrido com os ataques histéricos, gritos, queixas e mau humor desta aí e, dia e noite, suporto tudo pacientemente e o amigo não pode agüentá-la por meia hora ?”
O convidado, tendo ouvido estas palavras, se acalmou e as esposa se sentiu tão mal que mudou por completo seu modo de ser a partir daquele dia, tornando-se uma pessoa tranqüila, humana, agradável e dócil.
Algumas considerações sobre a tradução
Mesmo em se tratando de uma narrativa tecida em língua italiana arcaica, optei pela atualização do texto em seu todo para o português hodierno. Tal escolha se justifica na medida em que este trabalho faz parte de amplo Projeto de pesquisa que coordeno intitulado "Atualização de textos italiano antigos". Trata-se, portanto, de uma tradução semântica, que busca manter-se fiel ao conteúdo da obra, tornando-o mais acessível ao leitor de nossos dias.
Em função do objetivo propedêutico do Projeto, fomos forçados a re-escrever o texto, desfazendo os longos períodos e as mágicas inversões, tão apropriadas à época de Matteo Bandello, mas árduas e pouco compreensíveis para o leitor menos familiarizado com o texto dos clássicos em língua antiga.
Outros aspecto relevante concerne à pontuação abundante e estilística no texto fonte, que eliminamos, pois tornaria o texto alvo enfadonho e comprometido em relação à clareza.
Procuramos, portanto, conservar o espírito sagaz que norteia o texto bandelliano, ou seja, suas intenções e os efeitos que visa alcançar ou que esperava ao tecer sua narrativa.
BIBLIOGRAFIA
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