A
linguagem
do
corpo,
o
corpo
da
linguagem
–
O
vale-tudo
no
conto
“DESEMPENHO”
de Rubem Fonseca
José Carlos Marques.
(USP)
O
presente
trabalho tem
como
objetivo
analisar o
conto “Desempenho”,
que abre o
terceiro
livro de
contos de Rubem Fonseca (intitulado Lúcia
McCartney e publicado
em 1969). O
texto
selecionado
para
análise contém as
principais
características
que fundamentam a
obra
narrativa do
autor: uma
ficção de
temática
estritamente
urbana,
com o
uso de uma
linguagem
seca e
imediata (representando o relato de uma
narrativa
oral transcodificada
para o
papel) e
com o
predomínio do
foco
em
primeira
pessoa: trata-se do
próprio
protagonista
que relata os
acontecimentos e
sua
experiência dos
fatos. Torna-se
singular,
aqui,
verificar
como se dá a
exploração do
corpo
humano no
conto
em
epígrafe e
como os
recursos
lingüísticos utilizados
pelo
escritor acompanham os
movimentos descritos na
narrativa.
Nos
dias de
hoje, criou-se
um
consenso na
filiação da
narrativa de Rubem Fonseca ao
paradigma do
romance
policial noir
norte-americano, na
esteira das
obras de Ernest Hemingway, Dashiell Hammett e
Raymond Chandler. No
caso do
autor
brasileiro, a
filiação se justifica
por
priorizar
em
seus
textos,
entre
outros
aspectos, a
temática da
violência,
sob os
mais diferentes
ângulos.
Suas primeiras
obras apresentam,
quase
que invariavelmente,
grupos
marginais
que habitam a
cidade
grande,
com
personagens
que habitam
nos
limites da marginalidade,
quando
não no
submundo.
A
respeito das
narrativas
policiais, o
escritor
britânico Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) tece algumas
considerações de
interesse
:
o
conto
policial expressaria
um
certo
sentimento poético da
vida
moderna
diante da
urbe. A
literatura
popular
que
veio
celebrar as possibilidades romanescas da
cidade é o
romance
policial,
cuja
figura do
detetive substituiria a do
herói romântico dos
séculos XVIII e XIX.
Para Chesterton, a
riqueza das
narrativas
policiais residiria no
fato de
elas representarem
um
jogo, no
qual o
leitor
não
luta
contra o
criminoso,
mas
evidentemente
contra o
autor. O
escritor argentino Jorge Luis Borges
também teorizou
sobre o conto
policial
,
enaltecendo a
narrativa de
cunho
clássico e apontando o
caráter decadente do
romance noir
americano.
Nos
dois
casos,
porém, a
novela
policial gerou
um
tipo
especial de
leitor –
alguém
que
lê
com
incredulidade e desconfiança
especial –,
criado
por Edgar Allan Poe.
Hoje, ao lermos uma
novela
policial, somos uma invenção de Poe,
que,
com
efeito, formulou o
conto
policial
clássico à
enigma, do
qual decorre a
idéia da
literatura
como
um
fato
intelectual. Daí, surge
também a
grande
tradição das
narrativas
policiais:
um
mistério
que se desvenda
por
obra de uma
operação
intelectual. Poe
não queria uma
narrativa
que fosse
apenas
fruto da
imaginação,
mas
algo relacionado
com a
inteligência e
genialidade do
detetive.
Com o
advento do
romance noir
americano, o
gênero
policial tornou-se
mais realista,
violento,
com o
detetive assumindo
não
mais o
papel do
intelectual
que
tudo acompanha à
distância;
agora
ele é
um
personagem envolvido
por
completo na
trama da
história, participando dos
crimes e
inclusive cometendo
delitos.
Esse
novo
detetive é
duro,
cínico,
insensível e
individualista, transita
entre a
polícia e os
marginais,
entre o
submundo e os
palacetes. Daí o
sentido da
observação de Alfredo Bosi,
que
vê
em Rubem Fonseca a
reprodução de
um
estilo “brutalista yankee”.
Segundo Bosi, o
termo seria adequado
para
classificar
um
modo de
escrever
recente,
que se formou
nos
anos de 60,
tempo
em
que o Brasil
passou a
viver uma
explosão de
capitalismo
selvagem,
tempo de
massas,
tempo de
renovadas
opressões.
(...) Essa
literatura,
que
respira
fundo a
poluição existencial do
capitalismo
avançado, de
que é
ambiguamente
secreção e
contravento, segue de
perto
modos de
pensar e
dizer da
crônica
grotesca e do
novo
jornalismo
yankee. Daí os
seus
aspectos
antiliterários
que se querem,
até,
populares.
(BOSI: 18)
A
vinculação advém
ainda do
tipo de
linguagem
bruta,
seca,
aparentada
com o
jornal,
que se insurge
contra o
romantismo, o
enfeite, os
rodeios e
propõe, adequando-se à
velocidade do novo
século, a
economia de
figuras e
adjetivos, a
preferência pelas
frases curtas
e coordenadas, a
parcimônia
com
advérbios,
além do
aproveitamento
do
linguajar das
ruas, dos
diálogos de
todo o
dia. O
brutalismo da
linguagem
nada
mais é do
que o
equivalente ao brutalismo dos
temas e dos
crimes
perpetrados na
cidade
grande.
(LEITE, 1987)
O
foco narrativo, dessa
maneira, tem
que obrigatoriamente
estar
em
primeira
pessoa.
Enquanto
que no
romance
policial
clássico a
narrativa é contada
sempre
por
um narrador
testemunha, o
romance
policial noir diminui a
distância
entre
leitor e o herói-vilão.
Essa
espécie de ultra-realismo
sem
preconceitos
que aparece
em Rubem Fonseca,
esse “realismo
feroz” a
que
alude Antonio Candido
em “A
nova
narrativa” (publicado
em A
educação
pela
noite &
outros
ensaios), relaciona-se
assim à
era de
violência
urbana
que caracteriza a
década de 60 no Brasil,
com
guerrilhas,
aumento da
criminalidade, migração da
população
rural
para as
cidades,
intensificação das desigualdades
sociais e
aumento desenfreado dos
conglomerados urbanos. Se no
escritor João Antônio temos a subvida dos
pequenos
marginais dos
bairros deteriorados de
São Paulo,
em Rubem Fonseca predomina a subvida dos
altos
marginais
cariocas:
empresários de
boxe,
executivos
em
férias,
agentes da
prostituição
grã-fina etc.
Sua
narrativa envolve
personagens
sem
rumo
que transitam invariavelmente
entre a
burguesia
carioca da
Zona
Sul,
por
meio de uma
fala
em
que se misturam “no
mesmo
coquetel
instinto e
asfalto,
objetos
plásticos e
expressões de uma
libido
sem
saídas
para
um
convívio de
afeto e
projeto. A
dicção
que se faz no
interior desse
mundo é
rápida, às
vezes
compulsiva:
impura, se
não
obscena;
direta, tocando o gestual;
dissonante,
quase
ruído.” (LEITE, 1987: 18)
Podemos
verificar
assim
que
tanto Alfredo Bosi
como Antonio Candido, ao conceituarem a
narrativa de Rubem Fonseca, remetem à
forte
presença de
um
realismo
violento, intrinsecamente ligado ao
cenário
urbano. E,
não
gratuitamente, pudemos
ver
como a
conceituação do
romance
policial (que
também é
visto
como
um
tipo de
literatura
Classe B – à
semelhança do
que se diz de Rubem Fonseca)
leva
em
consideração o
fato de se
tratar de uma
literatura
popular
que vem
celebrar “as possibilidades romanescas da
cidade”, a
partir de
um
certo
sentimento poético da
vida
moderna
diante da
urbe. Trata-se,
enfim, de definirmos a
cidade
moderna (ou a
metrópole)
como o logus
central desse
novo
tipo de
literatura: a
sociedade
industrial,
saturada e esgotada
em
suas possibilidades, inaugura
assim
um
novo
modo de
pensar a
arte,
por
meio de uma
estética
que será denominada de
modernismo, no
início do
século XX, e de pós-modernismo a
partir da
Segunda
Guerra Mundial.
A
força
da
linguagem
no
conto
“Desempenho”
Este
conto apresenta uma
luta de
vale-tudo
em
que o narrador é
um dos
competidores, e o
foco,
sempre
em
primeira
pessoa, intensifica o
fluxo da
ação. O
maior
adversário desse
competidor/narrador,
entretanto,
não é o
lutador
oponente,
mas
sim o
público: é
contra
ele
que o
personagem
briga e
combate. O
conto inicia-se
abruptamente,
já
com a
ação se desenrolando:
Consigo
agarrar Rubão,
encurralando-o de
encontro às
cordas. O
filho da puta
tem
base,
agarra-se
comigo,
encosta o
rosto no
meu
corpo
para
impedir
que
eu
dê
cabeçadas na
cara dele; estamos
abraçados,
como
dois
namorados,
quase
imóveis –
força
contra
força O
público
começa a
vaiar.
Rubão
me dá
um pisão no
dedo do
pé, afrouxo,
ele se
solta,
me dá uma
joelhada no
estômago,
um
pontapé no
joelho,
um
tapa na
cara. Ouço os
gritos. O
público está
torcendo
por
ele. (FONSECA,
1987: 9)
A
narração
em
primeira
pessoa, neste
caso, circunscreve a
narrativa ao
ritmo das
ações, fazendo
coincidir
totalmente a
ação e o
processo narrativo, e criando
igualmente a supressão do
tempo,
como se
vê na
fala do narrador:
Os
cinco
minutos
mais
longos da
vida
são
passados num
ringue de
vale-tudo.
Como afirma
Antonio Candido, a
brutalidade da
situação é
transmitida
pela
brutalidade do
seu
agente (personagem),
ao
qual se
identifica a
voz
narrativa,
que
assim descarta
qualquer
interrupção
ou
contraste
crítico
entre narrador
e
matéria
narrada. (CÂNDIDO,
1989: 212)
O
lutador assume
aqui a
condição de
locutor
radiofônico da
luta,
já
que temos uma
seqüência
linear e cronológica dos
fatos. No
entanto, essa
linearidade será interrompida
pelo
fluxo da
consciência do narrador-personagem, numa
tradição
que podemos
buscar na
obra de Marcel Proust, e,
mais
tarde,
em Virginia Wolf e no nouveau roman
francês. A escritora francesa Nathalie Sarraute,
falecida
em 1999 e uma das
principais representantes desse
novo romance, chegou
igualmente a
dizer
que o
tempo
que se
passa
entre o
toque da
campainha e a
ação de uma
personagem
que se levanta
para
atender à
porta é
suficiente
para se
escrever
um
romance,
dados a complexidade de
pensamentos, o
fluxo da
consciência e o
tempo cíclico incorporados à
cabeça do
homem
moderno.
Esse
novo
tipo de
produção do
texto,
flagrante das multiplicidades advindas
com o
ritmo
veloz das
grandes
metrópoles no
século XX, é
também analisado
por Erich Auerbach, a
propósito da
obra de Virginia Woolf, no
texto “A
Meia
Marrom”,
em
sua
obra Mimesis: “O
escritor,
como narrador de
fatos
objetivos, desaparece
quase
que
completamente;
quase
tudo o
que é
dito aparece
como
reflexo na
consciência das
personagens.”
Como
exemplo desse
novo
tipo de
produção da
narrativa, vejamos a
passagem do
conto transcrita a
seguir:
(...)
olho
para a
arquibancada,
o
som
que vem de
lá parece uma
chicotada, sou
uma
besta,
que merda, se
continuar plaft! dando
bola
para
esses
chupadores vou
acabar
me
fudendo-em-copas plaft! – bloqueia, bloqueia, ouço Pedro
Vaselina –
minha
cara deve
estar inchada, sinto uma
certa
dificuldade
para
ver
com
olho
esquerdo –
levanto a
esquerda –
bloqueia! – blam!
cacetada
canhota
me
acerta no
lado
direito dos
cornos.
(FONSECA, 1987: 11)
O
conto,
em
toda a
sua
extensão, é formado
pela
alternância das
ações e do
fluxo de
memória do personagem-narrador, criando uma
figuração alegórica de
tipo
hiper-real e metonímico,
conforme
descrito
por
Proença
Filho.
Temos
aqui
também
a
plena
manifestação
das
formas
lúdicas, o
apelo
sensorial e
visual, a
instabilidade das
formas, a multiplicidade do
olhar etc. – plenas
realizações da
estética
barroca, de
acordo
com as
definições apresentadas
anteriormente.
Igualmente, essa
instabilidade é transmitida
sem
volteios ao
leitor,
cuja
visão é solicitada a
todo o
tempo a
modificar
seu
foco. O
fragmento das
imagens e dos
sons do
combate,
que se entrecruzam e se mesclam a
todo
instante, agridem-nos na
mesma
intensidade, subvertendo
igualmente a
ordem de
nossa
recepção
sensorial,
normalmente habituada a uma
linguagem
visual simplificada,
artificial e
mecânica. E o
personagem
sem
rumo representa
mais uma
vez o
foco de
conflito instaurado no
conto,
em
que se repete a
falta de
direção e a
desesperança do
protagonista:
(...) o
cara vai
me
derrubar –
tento
em
agarrar nas
cordas
como
um
escroto
arreglador – o
tempo
não
anda –
eu queria
lutar no
chão,
agora quero
ir
para
casa (...)
Rubão se
desvia,
me
segura
entre as
pernas,
me
joga
fora do
ringue – os
chupadores deliram – tenho
vontade de
ir
embora – se
fosse
valente ia
embora, de
calção
mesmo –
pra
onde! – o
juiz está
contando –
ir
embora – há
sempre
um
juiz contando
–
automóvel –
apartamento,
mulheres,
dinheiro –
sempre
um
juiz – pulley
de oitenta
quilos,
rosca de
quarenta,
vida
dura – Rubão
está
me esperando,
o
juiz está
com a
mão no
peito dele,
para
que
não
me
ataque no
momento
em
que estiver
voltando – estou
mesmo fudido
... (Ffonseca, 1987: 13-4)
Os
personagens
nunca têm
para
onde
ir,
nem a
quem
recorrer:
seus
destinos
são
vagar
pela
vida, desamparados e
órfãos, daí o
desespero
que
lhes é
tão
característico. O
exemplo
anterior é
magistral na
superposição e
contraposição de
elementos (os
golpes e
movimentos da
luta
contra a
vontade de
estar
em
outro
lugar,
com
mulheres,
carros,
apartamentos etc.), o
que se reflete
igualmente na
alternância
entre o
fato narrado e o
fluxo de
consciência do narrador. É o
que
também vemos no
exemplo
abaixo,
que introduz
igualmente a intratextualidade na
narrativa ao
evocar a
figura de Leninha –
namorada do
personagem no
conto “A
força
humana”,
que abre o
segundo
volume de
contos do
autor (A
coleira do
cão):
(...) recebo
um pisão no
joelho, uma
dor
horrível,
mas
ainda
bem
que foi de
cima
pra
baixo, se
fosse na
horizontal
quebrava a
minha
perna – Zum! o
tapa no
ouvido
me
deixa
surdo de
um
lado,
com o
outro
ouvido escuto
a
corja
delirando na
arquibancada –
o
que foi
que
eu fiz?
eles
sempre
torceram
pra
mim, o
que foi
que
eu fiz
pra
esses
escrotos,
engolidores de
porra plaft,
plaft, plaft! ficarem
contra
mim? –
com
um
físico desses
você vai
acabar no
cinema,
Leninha,
aonde é
que está
você?
sua puta –
(FONSECA, 1987: 12)
Leninha será evocada
mais duas
vezes
pelo narrador ao
longo do
conto,
por
meio do
uso do
vocativo
que
mais se assemelha a
um
grito desesperado no
vazio. Vemos
aqui
como impera a
linguagem do
corpo ao
longo da
narrativa, desta
vez elevando
seus
efeitos às últimas
conseqüências. O
domínio é
agora,
mais do
que
nunca,
atestado
pela
força
física,
mas ao
mesmo
tempo tem-se uma
total
desvalorização do
corpo
enquanto
sujeito,
já
que está transformado
em
mero
objeto.
Perder
um
dente pode
parecer
tão
comum e
prosaico
quanto
dizer “bom
dia” a
alguém:
É foda, respondo,
um
dente
balança na
minha
boca,
preso
apenas na
gengiva. Meto
a
mão, arranco o
dente
com
raiva e
jogo na
direção dos chupadores.
Todos vaiam.
Não faz
isso
não, diz Pedro
Vaselina dando
água
para
eu
bochechar,
não adianta
provocar.
Cuspo
fora do
balde a
água
vermelha de
sangue,
pra
ver se cai
em
cima de
algum
chupador. (FONSECA, 1987: 13)
A crueza da
ação e a
frieza dos
golpes espelha-se
assim na
linguagem
seca,
amarga,
ríspida. O narrador expressará
em
certo
momento
que
seus
olhos “ardem de
suor” e
que
ele
não consegue “engolir
a
gosma
branca
agarrada na
minha
língua”.
Esse
desprezo
pelo
corpo transporta a
narrativa, de
maneira
espetacular, a
níveis de
tensão acentuadamente
dramáticos, e a
linguagem do
corpo
mais uma
vez transforma-se na
linguagem da “porrada”
–
talvez a
última
realização
possível nesse
mundo de desilusões e desigualdades:
(...) golpeio a
cara de Rubão
bem
em
cima do
nariz,
um,
dois,
três –
agora na
boca – de
novo no
nariz –
pau,
cacete
porrada –
sinto o
osso quebrando
– Rubão levanta os
braços
para
impedir os
golpes,
sangue
começa a
brotar de
toda a
sua
cara, da
boca, do
nariz, dos
olhos, dos
ouvidos, da
pele.
(FONSECA, 1987: 14)
Recorro
novamente a
uma
citação de
Antonio Candido, a
respeito dessa
sintonia
entre
assunto
narrado e
recursos
lingüísticos
empregados na
construção do
texto.
Segundo
Candido, Rubem Fonseca
também agride o
leitor
pela
violência,
não
apenas dos
temas,
mas dos
recursos
técnicos –
fundindo
ser e
ato na
eficácia de
uma
fala
magistral
em
primeira
pessoa, propondo
soluções
alternativas
na
seqüência da
narração,
avançando as
fronteiras da
literatura no
rumo duma
espécie de
notícia crua
da
vida.
(CÂNDIDO, 1989: 211)
A
linguagem do
corpo
manifesta-se
assim no
corpo da
linguagem da
narrativa:
temos
quase
que
exclusivamente
frases curtas,
sem
subordinação,
com
amplo
predomínio de
orações
coordenadas,
que ditam o
ritmo
acelerado da
luta e
reproduzem os
movimentos e
golpes dos
competidores a
partir de uma
pontuação
baseada
quase
que
exclusivamente
no
uso do
travessão:
(...)
levanto o
braço, armo
uma cutelada,
ameaço –
ele
não se mexe –
dou
um
passo à
frente –
ele
não se mexe –
dou
outro
passo à
frente –
ele dá
um
passo à
frente –
nós
dois damos
um
lento
passo à
frente e
nos abraçamos
– o
suor do
corpo dele
me faz
sentir o
suor do
meu
corpo – a
dureza dos
músculos dele
me faz
sentir a
dureza dos
meus
músculos – o
sopro da
respiração
dele
me faz
sentir o
sopro da
minha
respiração
(...) estou fudido, se
ele
completar a montada estou
fudido e
mal
pago, fudido e
trumbicado, fudido e estraçalhado, fudido e
acabado.
(FONSECA, 1987: 13-4)
O
mesmo
processo de
enumeração disparatada (SEVERO,
1979)
retorna neste
conto na
proliferação de
insultos
que
são dirigidos,
em
pensamento,
pelo personagem-narrador ao
público:
Tento
ver as
pessoas na
arquibancada,
filhos das
putas,
cornos, viados,
marafonas,
cagões,
covardes,
chupadores –
me dá
vontade de
tirar o
pau
pra
fora e
sacudir na
cara deles. (FONSECA,
1987: 10)
O
ritmo da
narração acompanha de
tal
modo o
ritmo da
luta
que
já
não há
mais
espaço
para se
respirar – o
leitor
experimenta, na
mesma
intensidade, a
crueldade dos
golpes e a
violência do
combate
vivido
pelos
personagens. E,
para
dar
conta de todas essas possibilidades, observa-se
ainda a
fusão do
discurso
direto
com o
discurso
indireto e o
indireto
livre. Rubem Fonseca
mescla
todos
eles, dando
maior multiplicidade à
matéria narrada.
Estou no
meu
corner.
Nunca
te vi
tão
mal, no
físico e na
técnica, fudeu
hoje?
anda tomando
bolinha? É a
primeira
vez
que
um
lutador de
nossa
academia foge
por
debaixo das
cordas,
você está
mal,
que
que há
contigo? É
assim
que
você
quer
lutar
com o Carlson?
com o Ivã?
você está fazendo
papel
ridículo.
Deixa
ele, diz o
Príncipe.
Pedro
Vaselina:
ele vai
ser estraçalhado,
conforme for a
coisa neste
round
eu vou
jogar a
toalha. Puxo a
cara de Pedro
Vaselina
para
perto da
minha, digo
cuspindo
nos
cornos dele,
se
você
joga a
toalha
seu puto
eu
te arrebento.
(FONSECA, 1987: 11)
Cabe
destacar a
definição de Nilce Martins a
respeito do
discurso
indireto
livre.
Em
muitos
casos,
esse
recurso
não
deixa
claro
quem está
com a
palavra, se o
narrador
ou a
personagem. O
que permite
distinguir é
estar sendo relatado o
pensamento da
personagem, o
qual é dela e
não do
narrador,
por
mais
que
este
com
ela se
identifique.
Este
tipo de
discurso tem,
portanto,
um
cunho
acentuadamente
psicológico,
daí a
sua
voga no
romance
realista
que pretendia
apresentar
com
maior
profundidade o
mundo
interior de
suas
criaturas:
seus
estados
emotivos,
devaneios,
reflexões,
perturbações alucinatórias, auto-análise, etc. (...) O
discurso
indireto
livre pode
sugerir
pensamentos
imprecisos,
difusos no
monólogo
interior.
Quando se têm
orações
nominais,
sem dêiticos,
sem
interjeições,
é
difícil
decidir se a
fala é do
narrador
ou da
personagem.
(MARTINS, 1997: 104-5)
O
que Rubem Fonseca prefere, no
entanto, é
usar o
discurso
indireto
livre
com o
foco
em
primeira
pessoa, diluindo
totalmente as
fronteiras
entre narrador e
personagens:
não sabemos de
quem é a
voz,
pois
ela
só revela a
quem
pertence
após
ter sido manifestada. É
preciso
ir
até o
fim da
frase – e
depois
voltar ao
início –
para identificarmos os
agentes de
cada
ação e de
cada
ato de
fala.
Quanto à
questão do
desempenho
físico atrelada à
atividade
sexual, vemos
que,
como
manifestação de
um
mundo
autoritário e
opressor, a
proibição do
contato
sexual é tida
como
condição
preliminar
para o
sucesso nas competições
esportivas. Daí
que a
presença de Leninha se
torna
emblemática, à
medida
que
ela representa
igualmente a salvação e a
condenação do
personagem:
Cuidado
com
ele,
quando
você der a
queda,
passa a
guarda dele
rápido,
não fica
tentando na
ignorância,
ele tem
base e está
inteiro, e
você, e
você,
hein, andou
fudendo
ontem?
(FONSECA, 1987: 10)
O
conto encerra-se,
contudo,
com a
redenção do
personagem, reconciliado
com o
público,
que
agora o aplaude e o ovaciona
com
total
intensidade – esquecendo-se, no
entanto, do
outro
lutador,
que permanece
desmaiado e
cuja
cara é uma
pasta
vermelha de
sangue e de
derrota.
Aqui, num
mundo marcado
pela
linguagem do
corpo,
só há
espaço
para os vencedores.
Chama a
atenção o
fato de
que a
linguagem do
corpo traz
em
si,
igualmente, a
linguagem da
porrada e do
enfrentamento,
enquanto
superação do
mais
fraco
pelo
mais
forte – reafirmando
assim os
conceitos darwinistas da
evolução das
espécies. No
conto “A
força
humana”, Rubem Fonseca descreve uma “queda
de
braço” (disputada
entre o
protagonista e o
crioulo Waterloo)
que mantém
total
simetria
com a
luta de
vale-tudo
presente no
conto “Desempenho”
Cabe
aqui a comparação:
Waterloo deu
um arranco
tão
forte
que
quase
me liquidou:
puta merda!,
eu
não esperava
aquilo;
meu
braço cedeu
até a
metade do
caminho,
que
burrice a
minha,
agora
quem
tinha
que
fazer
força,
que se
gastar,
era
eu. (...)
Mas
ali
não
era
cinema
não;
era uma
luta de
morte, vi
que o
meu
braço e o
meu
ombro começavam a
ficar
vermelhos;
um
suor
fino fazia o
tórax de
Waterloo
brilhar;
sua
cara começou a se
torcer e senti
que
ele
vinha
todo e o
meu
braço cedeu
um
pouco, e
mais,
raios!,
mais
ainda, e ao
ver
que podia
perder
isso
me deu
um
desespero, e
uma
raiva!
Trinquei os
dentes! (...)Um
relâmpago cortou
minha
cabeça
dizendo:
agora!, e a
arrancada
que
eu dei
ninguém
segurava,
ele tentou
mas a
potência
era
muita;
seu
rosto ficou
cinza,
seu
coração ficou
na
ponta da
língua,
seu
braço
amoleceu,
sua
vontade acabou
– e de
maldade, ao
ver
que entregava
o
jogo, bati
com
seu
punho na
mesa duas
vezes.
(FONSECA, 1987: 26)
Não
basta
ver o
adversário
batido; é
preciso trucidá-lo
até o
último
suspiro: se na
queda de
braço o
protagonista
precisa
bater o
punho de Waterloo na
mesa duas
vezes (“de
maldade”), na
luta de
vale-tudo é
necessário
surrar Rubão
até
que
ele desmaie. Rubão oferece a possibilidade de
vitória ao
outro
competidor,
mas
este
não
quer
apenas
vencer:
quer,
antes de
tudo,
demolir
qualquer possibilidade de
resistência de
seu
oponente,
quer
revitalizar o
desejo da
luta
pela
sobrevivência
que permanece
irracionalmente
dentro de
todos
nós.
Conclusão
A
análise revela a
todo
instante uma desestruturação das
relações humanas,
diante da multiplicidade de
espaços, num
mundo
completamente
fragmentário. O
personagem
sem
rumo aparece na
narrativa e permanece
anônimo o
tempo
todo:
ele
não recebe
nome e acaba
por
representar a
negação de
sua
própria
existência.
Outra
marca
importante é a
forte
presença do
fluxo da
consciência, refletindo, no
turbilhão de
pensamentos
que invadem a
mente do
personagem, a
simultaneidade de
movimentos e
ações
que caracteriza a
nova
ordem das
metrópoles – daí o
emprego
constante de
recursos advindos das
técnicas da
montagem
cinematográfica,
por
meio de
seqüências de
imagens
que se superpõem
incessantemente. Nesse
sentido, o
recurso
para
mesclar narrador e
personagem é o
uso do
foco narrativo
em
primeira
pessoa,
que se confunde
entre o
uso do
discurso
direto
permanente e o
discurso
indireto
livre. A saturação da
vida e do
espaço
urbano reflete-se na
linguagem
áspera e
direta,
nos
diálogos
ríspidos e entrecortados, nas
aproximações tensas e conflituosas
entre os
personagens.
Não se pode
negar,
assim, o
quanto a
prosa de Rubem Fonseca vincula-se à
linguagem
jornalística, despojada e
objetiva,
que viria a
influenciar
tanto a
literatura
brasileira a
partir dos
anos 60. Desse
modo, a
linguagem do
corpo, manifestada
ainda
pela
linguagem da
porrada –
como
forma de
predomínio do
vigor
físico –, constitui
igualmente
outra
característica
marcante de
sua
obra.
Vale
apontar, uma
vez
mais,
como Rubem Fonseca constrói uma
linguagem
ricamente trabalhada,
em
que a
combinação dos
fonemas e a
seleção de
palavras e
frases
espelha
igualmente a
matéria narrada.
Esse
corpo da estruturação da
linguagem,
como enfatizou-se ao
longo desta
análise, dá
mostras de
um
exercício
consciente do
autor e de uma
riqueza constitutiva na
carpintaria do
texto, o
que possibilita
discutir
outra afirmação do
jornalista Nelson Ascher.
Segundo
este, no
texto “O
Sedutor
que cai
pela seduzida”, Rubem Fonseca está
acima da
literatura
para o
qual
ele dirige
sua
obra: “A
cultura
com
que se nutre está
acima –
em
termos de refinamento,
repertório e complexidade – do
tipo de
literatura
que produz,
ou seja, há
entre o
autor e
sua
histórias
um
contínuo
distanciamento
irônico”.
No
conto “Lúcia McCartney”,
por
exemplo, citam-se Kafka,
Pessoa, Freud, Sófocles e Sócrates,
como se o
personagem José Roberto assumisse
esse “distanciamento
irônico”
frente a Lúcia McCartney e,
em
última
instância,
frente ao
leitor. No
entanto,
penso
que o
grande “distanciamento
irônico” se dá
entre a complexidade dos
recursos
lingüísticos e de
construção do
texto, aplicados
por Rubem Fonseca, e a
flagrante
fragilidade dos personagens-narradores,
que mantêm,
em
seu
mundo de
desesperança e desilusão,
total
distanciamento da
sutileza
textual aplicada
pelo
autor. O
linguajar dos
personagens
não é
tão
polido e domesticado
como o
quer Nelson Ascher, e,
por
isso
mesmo, cria-se o
descompasso:
personagens
marginais
que, ao contarem
suas
desventuras
em
primeira
pessoa, utilizam procedimentos narrativos
que,
aparentemente, estão
além de
sua
capacidade de
construção
literária.
De
qualquer
forma, temos
aqui
um
conto
singular,
que
nos brinda
com as
principais
características da
prosa de Rubem Fonseca: uma
ficção de
temática predominantemente
urbana,
com o
recurso a
marcas de oralidades, abusando dos
diálogos e de uma
linguagem
cortante. O
resultado de
tudo
isso (ou a
causa) está na
exploração
constante do
corpo e no
desenlace das
relações amorosas, num
mundo cinzento,
solitário e
amargo – refletindo,
assim, os
anos de
chumbo da
recente
história do
país nas
décadas de 1960 e 1970.
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