ENSAIO SOBRE OS DISCURSOS QUE GERAM PODER
E CONSTROEM E (RE-)CONSTROEM
AS IDENTIDADES SOCIAIS
Estudo analítico das visões
socioconstrucionistas
do discurso e da identidade
Adriana Zanela Nunes (UFRJ)
INTRODUÇÃO
Este trabalho será um breve ensaio teórico acerca do curso intitulado Discurso, Identidade e Poder realizado no primeiro semestre de 2002.
Este trabalho terá uma visão socioconstrucionista do discurso e da identidade social, onde focalizo a relação entre o exercício do poder, os processos discursivos e interacionais, levando em conta a construção das identidades sociais de raça (minha opção para este trabalho) em práticas sociais localizadas na cultura, na instituição e na história, conforme mostra a ementa deste curso.
Para tanto, o trabalho será dividido em seções e subseções que abrangerão desde a situacionalidade sócio-histórica do discurso até as identidades sociais de raça, perpassando pela sociolíngüística interacional e a análise do discurso crítica, a chamada adc.
A seção em torno do socioconstrucionismo terá seu foco na natureza constitutiva do discurso, e se subdividirá na visão do socioconstrucionismo (voltado para a psicologia social) e na visão da sociolingüística interacional. A primeira subdivisão tem seu foco na importância do outro na socioconstrução, enquanto que a segunda subdivisão vai lidar com a construção discursiva local, levando em conta a importância dos significados para a vida social.
Para finalizar, vou tratar da questão de raça (minha opção para o trabalho), como definidora da marca social do indivíduo na sociedade que o posiciona dentro de certos padrões considerados melhores ou piores vistos sob uma perspectiva na qual não reconhece o indivíduo como único.
DISCURSO E SITUACIONALIDADE SÓCIO-HISTÓRICA
A Pós-Modernidade
Estamos vivendo em um mundo onde muitas mudanças estão ocorrendo em uma velocidade muito acelerada nos fazendo, muitas vezes, parar para analisar o que está acontecendo, e diante disso reavaliar nossas posições ideológicas.
Para tanto, temos hoje no mundo pós-moderno a globalização que querendo nós ou não está aí mesmo para nos colocar como iguais e não valorizar nossas diferenças sociais, culturais, étnicas, etc. O que podemos observar é que a globalização causa certos transtornos à vida social como um todo, já que pretendendo unir, ela acaba muitas vezes dividindo também, como nos diz Bauman (l999) em seu livro. Podemos observar que isso se aplica, por exemplo, à área cultural, onde quem faz parte da chamada elite tem seu acesso garantido ao que o mundo globalizado oferece, enquanto quem não pertence a essa classe social não tem esse mesmo acesso.
O importante, portanto, é observarmos até onde a globalização é relevante para suprir as nossas necessidades e fazer uso dela enquanto mais um recurso que o mundo pós-moderno nos oferece.
O Papel do Discurso Hoje
É justamente aqui que devemos nos posicionar reflexivamente acerca do papel que a globalização pode ocupar em nossa vida, e analisar até que ponto seu papel é relevante ou não para nós.
O nosso discurso tem uma natureza constitutiva e, portanto, um dos papéis que ele cumpre é o de construir as identidades sociais. No entanto, existem outros aspectos que são constitutivos, e não é discurso.
Para exemplificar a natureza constitutiva do discurso na construção social, posso lembrar do uso do jargão médico em um congresso de Medicina onde o discurso usado é específico e dirigido a uma classe social de profissionais apenas, a saber, a classe médica.
A natureza social do discurso é uma área específica do uso da língua e que ocorre no diálogo contextualizado com um fim próprio e determinado, por exemplo, um discurso ambientalista. Cada grupo social tem um discurso específico dentro de certos parâmetros que são definidos por outro grupo. Segundo Mills (l997: l3), “o que quer que signifique ou tenha significado pode ser considerado parte do discurso”. Diante dessa perspectiva, discurso, então, é alguma coisa que produz alguma coisa mais. Isso significa que a análise do discurso está relacionada à língua em uso, e não em exemplos criados por lingüistas.
Para concluir esta seção, lembro que o discurso está para além do estritamente escrito ou falado. Por isso, deve-se estar atento não apenas para a relação entre a interação individual, mas também estar em uma posição mais crítica e reflexiva da posição que tomamos em nossos discursos com o Outro.
A Questão das Identidades Hoje
Diante do que foi exposto na seção anterior sobre nosso papel mais reflexivo e crítico é que podemos levantar para a questão que tem sido amplamente discutida hoje em dia por vários pesquisadores sociais e que é relevante considerar neste trabalho.
Quando interagimos em uma prática social, nós nos situamos como indivíduos com história social, que é definida no grupo em termos de gênero, classe social, raça, religião, região geográfica, etc. e em outros grupos sociais pela nossa participação na comunidade a qual pertencemos (Hall, 1995). Ainda de acordo com Hall (1995: 216), “nós nos socializamos dentro de certas identidades relevantes. Identidades de gênero e de idade opostas a outras identidades como classe social e etnia, por exemplo.”
Castells (l999) nos fala da identidade da mulher que, em função do movimento feminista, já possui um aporte discursivo próprio, onde já se pode ouvir sua voz e ver o seu papel na sociedade.
O foco desta seção, portanto, traz “as identidades individuais e coletivas dos sujeitos que é parte do que eles representam e são representados pelos outros” (Chouliaraki & Fairclough, 1999: 25). Diante do exposto acima, pode-se dizer que a identidade é heterogênea e constituída pelo efeito das diversas posições do sujeito, que é ativo e pode transformar.
Na seção seguinte traçaremos uma breve análise à natureza constitutiva do discurso.
SOCIOCONSTRUCIONISMO
DISCURSO E IDENTIDADE SOCIAL
Nesta seção, o foco será dado à natureza constitutiva do discurso, na importância do outro (sub-seção 3.1), e na construção discursiva local (sub-seção 3.2) que, por sua vez terá o foco na natureza dos alinhamentos (sub-seção 3.2.1) e na análise do discurso crítica (sub-seção 3.2.2).
A Visão Socioconstrucionista na Psicologia Social
Inicio esta subseção com algumas correntes filosóficas que estão em constantes disputas nas formas de abordagem do conhecimento, ou seja, para o que é a verdade e o que é a ciência. É na Sociologia que começa uma contenda entre realistas e socioconstrucionistas. Enquanto a tradição realista tem uma forma muito específica de fazer ciência, ou seja, com pretensão à objetividade, o socioconstrucionismo parte da noção de que o significado é social e está sempre ligado a um contexto e, portanto, sempre em movimento. Os socioconstrucionistas vão olhar o papel da linguagem na construção do significado (Sarbin & Kitsuse, l994). Um dos métodos de trabalho é a narrativa e a contemplação de uma multiplicidade de perspectivas. O socioconstrucionismo procura trabalhar com o não-essencial, ou seja, não há essência possível. A preocupação dos socioconstrucionistas seria, então, encontrar as várias facetas de um fenômeno que não pode ser explicado pela sua essência.
Nossas escolhas lingüísticas estão recalcadas naquilo que queremos atingir, levando em conta o contexto que estamos interagindo. É a análise interacional do discurso que vai analisar o you que, por sua vez, vai determinar a identidade do I. Ou seja, o Outro é o meu contexto (Shotter, 1989). Nós estamos inseridos em contextos sociais, na cultura, como atores sociais que somos. Isso significa dizer que temos nossa identidade social que marca nossa posição na sociedade e define nossa intersubjetividade, ou seja, orienta nosso entendimento para nos posicionarmos diferentemente de acordo com quem falamos. Isso significa dizer que os nossos discursos mudam em função do contexto no qual estamos inseridos em um momento específico da interação (Shotter, 1989).
O socioconstrucionismo, portanto, nos declara que as identidades não são dadas naturalmente e nem produzidas pelo ato de vontade individual, mas são negociadas e (re-)construídas o tempo todo. Daí, não se poder fazer afirmações definitivas, porque qualquer afirmação que se faça deve ser situada no contexto sócio-histórico, e seu significado depende e está ligado a este contexto (Sarbin & Kitsuse, 1994, cap.7).
A Visão Socioconstrucionista em Estudos do Discurso
Sociolingüística Interacional
O relato aqui será no sentido de falar das projeções interpretativas que nós colocamos no discurso mostrando a construção discursiva que é local e os respectivos significados que representam para a vida social.
Segundo Goffman (1964/ 1998), uma situação completa de interação seria a tornar completo um confronto face a face com os ingredientes paralingüísticos (ou não-verbais), tais como tons de voz, gesticulação e significado facial, por exemplo. Isso auxiliaria em fornecer pistas para se construir sentido.
O encontro social seria, então, caracterizado como um sistema integrado de atividades em funcionamento, onde tudo o que acontece contribui para sinalizar contexto da interação, e ainda para nossa interpretação do que está ocorrendo naquele dado momento específico.
Lindstrom (1992) nos coloca para a possibilidade de se redescreverem práticas discursivas e alterar práticas sociais já estabelecidas.
A interação face a face é uma categoria descritiva na questão da análise da interação da construção ao nível micro. No entanto, Goffman (1998) propõe uma categoria descritiva nova, que é a questão do alinhamento, que seria a postura, a posição e a projeção de um participante com relação a si próprio, com relação ao outro (vide seção 3.1), e com relação ao discurso em construção.
Na verdade, o conceito de alinhamento proposto por Goffman (1998) é um desenvolvimento da noção de enquadre, e não foi cunhado por ele, mas é anterior a ele. Tanto o conceito de enquadre quanto o conceito de alinhamento são conceitos dinâmicos, ou seja, podem ser renegociados o tempo todo.
A questão do enquadre no contexto da sala de aula é marcado pelo alinhamento do professor, pelo alinhamento dos alunos, dos objetos físicos como quadro de giz, mural, caderno, livros etc. Nós aprendemos o sentido de todas essas coisas sócio-culturalmente. O professor deve estar atento a isso, e não ser ingênuo quanto ao uso da linguagem e do seu papel social enquanto detentor de poder.
A questão do alinhamento, que foi a grande contribuição de Goffman (1998) está na construção de sentido co-construído por falantes e ouvintes, e para o dinamismo da interação em como as relações interpessoais são negociadas o tempo todo e mudam o tempo todo.
Portanto, alinhamento é o papel discursivo e social que se negocia ao longo da interação e que pode mudar, ou seja, ser (re-)construído o tempo todo. Na seção seguinte, será a observação de como a análise do discurso crítica pode contribuir para a interpretação desses eventos interacionais e do discurso.
Análise do Discurso Crítica (A.D.C.)
Nesta subseção, farei um breve estudo acerca da questão da análise do discurso crítica. Fairclough (1992) aponta para a questão do discurso ligada à pratica social. Ele diz que os discursos posicionam as pessoas de diversas formas como sujeitos sociais. Para ele, qualquer evento discursivo é considerado um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social, ou seja, uma prática implica a outra.
A dimensão discursiva estaria centrada no conceito de intertextualidade, e a dimensão social na noção de ideologia, ou seja, algo que já está naturalizado, o que quer dizer que passa a fazer parte do senso comum, isto é, aquilo que já é dado, um given. O conceito de intertextualidade está ligado às características de um texto se reportar a outros textos, ou seja, o texto posiciona o leitor.
O discurso pode estar atrelado a uma prática discursiva ao se dizer, por exemplo: “mulher negra africana”. Isso sinalizaria a raça dessa mulher, o que indicaria uma posição ideológica. O destaque dado à negritude dessa mulher indica como ela está sendo representada como sujeito social.
As práticas discursivas e sociais nos constroem dentro de uma visão socioconstrucionista e interacionista do discurso. O discurso contribui para alterar essas práticas, o que nos colocaria em uma posição de reflexividade e de mudança social.
Para finalizar esta seção, ressalto para a questão de que as identidades sociais podem ser reconstruídas (van Dijk, 1997). A seção seguinte versará sobre a questão do discurso, do poder, e dos regimes de verdade para a construção de identidades sociais.
DISCURSO E PODER
A QUESTÃO DO PODER E DO CONHECIMENTO,
OS REGIMES DE VERDADE E A VONTADE DE SABER
Nesta seção, veremos como o socioconstrucionista Michel Foucault (1926-1992) contribui para as Ciências Sociais e Humanas, os regimes de verdade para a construção de identidades sociais; a possibilidade de contra-discurso, e o poder que produz saber.
Segundo Foucault (1982), a questão do poder e a do conhecimento estão intimamente ligadas. O conhecimento para ele é adquirido via discurso, e para esse discurso existe a possibilidade de um contra-discurso com vistas à uma perspectiva de mudança.
A questão da arqueologia do saber de Foucault diz respeito aos conhecimentos que são adquiridos, enquanto a questão do poder atravessa as práticas discursivas e vai para além do discurso. Foucault coloca também que o poder não é só para punir e reprimir, ou seja, o poder não vai só em uma direção, ele pode gerar mudança social e institucional, também.
Na área educacional, Foucault (1996) diz que educação é apropriação do discurso, e que o discurso está vinculado ao poder (Fairclough, 1992), ou seja, discurso é ter acesso às regras de um jogo que é redefinido na luta pelo poder, ou por um poder que está sobressaindo, ou seja, o discurso é o poder a ser tomado (van Dijk, 1997).
A questão da verdade como algo que é construído deve ser entendida de forma consciente sobre os regimes de verdade sob os quais se age, sabendo que existem sistemas de poder que produzem e reproduzem essa “verdade” (Foucault, 1982).
Na seção seguinte, veremos como o discurso interage nas identidades sociais de raça levando em conta a questão do discurso sendo usado na apropriação de poder e de construção da identidade social de raça.
DISCURSO E IDENTIDADES SOCIAIS
A IDENTIDADE SOCIAL DE RAÇA
Nesta seção, falarei do discurso para a construção da identidade social de raça.
Antes, porém, devemos entender que raça é algo que nos define principalmente pelo nosso tom de pele, pelo nosso tipo físico, tipo de cabelo, cor dos olhos, etc, marcas que carregamos sócio-historicamente. No entanto, nenhum desses dados relacionados ao nosso biotipo pode ser caracterizado como parte essencial de nossa posição como indivíduos sociais que somos com identidade própria, nos classificando como melhores ou piores, ou ainda superiores ou inferiores.
A questão que se coloca para a definição de raça está envolvida principalmente com estereótipo cultural, ou seja, definições sociopolíticas, e não o fator biológico, produzindo assim um efeito discriminatório (Sarbin & Kitsuse, 1994).
O discurso do “self” é socioconstruído. Isso significa dizer que o sujeito social é um indivíduo com características próprias a ele (Parker, 1989). A diferença é respeitada quando “o self é construído como sujeito e objeto do discurso em um momento histórico particular” (Parker, 1989: 63).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluindo, é importante observar como nosso discurso tem sido construído na identidade nacional de raça, ou seja, se estamos levando em conta aspectos político-sociais ou se aspectos biológicos, e se usamos a linguagem de forma consciente e reflexiva. Isso se torna relevante quando esta é uma preocupação do socioconstrucionismo em usar o discurso, propondo mudanças para a (re-) construção das identidades que são fragmentadas (Moita Lopes, 2002).
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