O ASPECTO SEMÂNTICO NA FORMAÇÃO DE PALAVRAS
DIVERGÊNCIAS ENTRE O ENSINO
E A REALIDADE NO PORTUGUÊS

Maria Regina Pante (UEM)

Introdução

Já há algum tempo a lexicologia deixou de abordar os processos de formação de palavras considerando apenas o critério morfológico. Hoje, em tais processos há uma confluência entre morfologia e outros segmentos da gramática, como a fonologia, a semântica, a sintaxe e a pragmática. Sob essa nova perspectiva de análise dos processos de formação de palavras, vamos abordar de que forma o morfema não é descrito nas gramáticas tradicionais, nos dicionários e na literatura em geral, bem como os diversos significados que ele pode apresentar, dependendo do contexto morfossintático em que está inserido.

O morfema não

prefixo ou elemento de composição?

Entende-se por derivação prefixal ou prefixação o acréscimo a uma base de um elemento, o prefixo, o qual, na maioria das vezes, é de origem grega ou latina, conservando, geralmente, uma relação de sentido com o radical a ser derivado. Em gramáticas da língua portuguesa e, conseqüentemente, nos livros didáticos, há, via de regra, extensas listas de prefixos gregos e latinos acompanhados de seus respectivos significados. Essa preocupação reflete a tentativa de dar conta do significado final de todas as palavras que trazem em sua formação um mesmo prefixo e/ou sufixo, ou seja, espera-se que o falante, a partir dessa lista de elementos, possa automaticamente reconhecê-los em palavras formadas, depreendendo, assim, o seu significado final.

O problema reside no fato de que na grande maioria das vezes tais elementos apresentam diversos significados, dependendo da base à qual eles se agregam. Ex.: fazer/desfazer (idéia contrária); quieto / inquieto / desinquieto (idéia de reforço).

Outros aspectos também são abordados, como o fato de que os prefixos só se agregam a adjetivos e a verbos e não são responsáveis pela mudança da classe gramatical, função essa que cabe somente ao sufixo.

No entanto, observando atentamente os dicionários e, principalmente as formações recentes, percebe-se que tal não é a realidade de nossos prefixos, haja vista formações como: desamor, inverdade, não-governamental. Não bastassem tais contradições, ainda temos a imposição da falsa idéia de que prefixos são formas presas e, isoladamente, não possuem sentido. Como abordar, então, elementos que, dependendo do contexto morfossintático, desempenham funções distintas, a exemplo do não, na formação acima?

Elementos como esses no português atual são usados como formas livres e por isso, segundo alguns autores, podem entrar no processo de composição. Kury & Oliveira (apud Monteiro, 1991:128) admitem a existência de prefixos auxiliares da derivação e outros mais ligados à composição.

Monteiro (1991) entende que é preciso levar em conta os critérios da produtividade e da autonomia, a fim de diferenciar raiz e prefixo. Para ele, morfes que têm autonomia em um dado contexto frasal devem ser considerados formas livres, principalmente se a esse critério for acrescentado o da possibilidade de receber morfemas criando novos vocábulos.

No entanto, o morfema não, figura como forma livre (advérbio de negação), mas não é uma raiz, já que não serve de base para a formação de novas palavras.

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A composição é um processo de formação no qual são unidos dois ou mais vocábulos que possuem significação própria que, segundo Coutinho (1969: 175), combinam-se para representar uma idéia nova e única.

Para Melo (1981: 154), “Na composição se juntam dois ou mais vocábulos de vida autônoma na língua, assumindo o composto sentido novo. Essência de tal processo é a combinação ocasional de elementos preexistentes”.

Para Said Ali (1931), os elementos da composição podem ser dois substantivos, unidos diretamente ou por preposição; dois adjetivos; adjetivo mais substantivo; pronome adjunto ou numeral mais um substantivo; uma partícula (preposição ou advérbio) mais nome ou verbo; e verbo com substantivo ou com outro verbo. No caso dos compostos com partículas adverbiais ou preposicionais, o autor traz exemplos com os advérbios bem e mal: bem-afortunado, maldizer, mal-intencionado, etc.

Se atentarmos para esta postura de Said Ali, veremos que o morfema não, a exemplo de bem e mal, é um advérbio que pode formar compostos que apresentam flexão apenas no segundo elemento: bem-aventurados, mal-intencionados, não-fumantes, etc. Além do mais, as gramáticas tradicionais, embora não façam qualquer referência a essa possibilidade do emprego de não, apresentam exemplos com outros advérbios: sem-terra, sem-teto, em que apenas o último elemento flexiona em número.

Foge ao escopo deste trabalho analisar as possibilidades de análise desse morfema. O que nos interessa no momento é abordar as formações com esse elemento, com base nos vários sentidos que pode apresentar. Quer prefixo, quer elemento de composição, o que se percebe é que os autores, ao abordarem o morfema não, não atentam para o fato de que, semanticamente, ele nem sempre nega o sentido da base à qual se agrega. Enquanto forma livre traz uma significação bastante clara: negar a idéia contida em um verbo ou em uma frase inteira e, além do mais, não se presta à criação de novos elementos no léxico. Anteposto a uma base, no entanto, a situação é bastante distinta: amplia, de maneira considerável, o léxico.

Essa situação, porém, não é tão simples como parece. À primeira vista, o falante de língua portuguesa pode pensar que, a exemplo do que acontece com o advérbio homônimo não, a idéia do prefixo é sempre a de negação. Tal situação, como veremos, nem sempre ocorre.

Os diversos significados do morfema não

Para a presente análise tomamos por base os dicionários Novo Aurélio Século XXI e Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (doravante Aurélio e Houaiss), e, em seguida, analisamos alguns números da revista Veja e artigos esparsos do jornal Folha de São Paulo. Constatamos que, nos dicionários, o morfema não é citado como advérbio de negação e, às vezes, como interjeição. Não há, portanto, qualquer referência à possibilidade de seu emprego como elemento formador de novas palavras. Apesar disso ambos apresentam várias entradas com esse elemento. Quanto ao aspecto semântico do morfema não, se tomarmos a significação de negação dada ao advérbio para analisá-lo nas formações dicionarizadas, bem como naquelas que vêm surgindo com freqüência, veremos que, nem sempre, a idéia de negação está presente. Há, além dela, outras como a de ausência/falta, oposição/recusa/abstenção, falha, que alteram semanticamente o produto da formação.

Análise das formações

Analisados os corpora, observamos que o Aurélio registra 67 verbetes prefixados por não e o Houaiss registra 53, dos quais alguns são coincidentes. Já na Folha de São Paulo, extraímos alguns exemplos em textos diversos, a fim de comprovar a crescente produtividade dessas formações.

Excetuando-se formas como não-me-toques, não-me-deixes, etc., ou seja, verdadeiros sintagmas que, no momento, fogem ao escopo de nosso trabalho, resta-nos o morfema não empregado diante de várias bases, apresentando acepções diversas, tais como: abstenção, ausência, falha, falta, oposição, negação:

abstenção: privação, impedimento, ato de não intervir;

ausência: estado ou condição de ausente; falta; carência;

falha: defeito;

falta: ato ou efeito de faltar; ausência; privação;

negação: ato de negar; rejeição, recusa;

oposição: ato ou efeito de opor-se; vontade contrária; antagonismo, contrariedade, contestação, réplica, objeção, refutação.

Vejamos a ocorrência desse morfema com idéias distintas:

Negação/idéia contrária (morfema não + adjetivo)

não-alinhado, não-aromático, não-arredondado, não-beligerante, não-combatente, não-compartilhado, não-conformista, não-conservativo, não-contável, não-distribuído, não-empresarial, não-engajado, não-essencial, não-euclidiano, não-existente, não-formal, não-fumante, não-governamental, não-holonômico, não-holônimo, não-iluminado, não-intervencionista, não-inversor, não-letrado, não-ligado, não-linear, não-lingüístico, não-localizado, não-natural, não-nulo, não-operacional, não-orientável, não-participante, não-passeriforme, não-periódico, não-saturado, não-segmental, não-seletivo, não-simétrico, não-singular, não-tendencioso, não-verbal, não-viciado, não-viesado, não-vocálico, não-volátil.

Vê-se que todos eles são passíveis de uma paráfrase em: “que não é ou não está X, em que X é uma base nominal, ou, ainda, “que não é um ser que pratica a ação expressa por X”, em que X é uma base verbal.

Diante de substantivos, no entanto, o não apresenta sentidos diversos:

Opor-se a / negar a / recusar-se a (morfema não + substantivo)

não-agressão, não-alinhamento, não-beligerância, não-conformismo, não-discriminação, não-engajamento, não-violência.

Nesses exemplos, o que se percebe é que ocorre a oposição do sentido da base. Assim, temos a paráfrase: “agir contrariamente (a), recusar-se (em)”: à agressão (agredir), ao alinhamento (alinhar), à guerra (guerrear), ao conformismo (conformar-se), à discriminação (discriminar), ao engajamento (engajar-se) e à violência (violar/praticar a violência).

Ausência/falta (morfema não+ substantivo)

não-assonância, não-contradição, não-cooperação, não-cumprimento, não-intervenção, não-popularidade, não-intervencionismo, não-poder, não-proliferação, não-sofrer, não-sofrimento.

Esses exemplos, ao contrário dos acima elencados, não apresentam uma idéia de recusa, oposição ou negação, mas a de falta de algo, ausência. Assim, podem ser parafraseados por “falta/ausência de: assonância, contradição, cooperação, cumprimento, intervenção, popularidade, intervencionismo, poder, proliferação, sofrer, sofrimento.

Negação (morfema não + substantivo)

não-existência, não-ficção, não-metal, não-padrão, não-salariado, não-ser.

Esses exemplos, por sua vez, não trazem a idéia de negar-se a/recusar-se a/opor-se a, nem a de falta/ausência de algo, mas sim a de negação de algo, em seu sentido estático, e podem ser parafraseados por “que não é X ou que não apresenta X, em que X é elemento determinado (substantivo ou elemento substantivado). Percebe-se que as paráfrases “que se recusa a existir” ou “que falta existência” não podem ser empregadas nesses contextos, pois aqui cabe tão e somente a idéia de negação, pura e simplesmente, a exemplo do que acontece com os adjetivos precedidos de não: que não existe, que não é ficção, que não é metal, que não é padrão, que não recebe salário ou que não é assalariado, que não é um ser ou que não é ser.

Falha (morfema não+ substantivo)

não-disjunção.

Esse exemplo, empregado em Citologia, foi o único que apresentou a idéia de falha: “falha na separação adequada de duas cromáticas, ou de dois cromossomos homólogos durante a divisão celular”, ou seja, o esperado é que ocorra a disjunção/separação, mas isso não acontece, ocorrendo, então, a falha.

Buscamos, ainda que em um corpus restrito, ocorrências de novos elementos com o morfema não e, após termos analisado os verbetes dicionarizados, passamos à recolha de elementos em textos jornalísticos, a fim de comprovar a produtividade desse morfema na formação de novos vocábulos e em que tipos de textos isso ocorria com maior freqüência. Escolhemos o jornal Folha de São Paulo, e alguns números da revista Veja; aquele foi cuidadosamente analisado, durante um período de trinta dias, e esta última, foi tomada, de forma aleatória, em textos de diversos gêneros.

No que se refere à Folha de São Paulo, constatamos que tais neologismos são mais freqüentes em textos políticos, estando ausentes de outros cadernos do mesmo jornal. Notamos, ainda, que nem todas as formações encontradas nessas edições de textos jornalísticos estão registradas em um dos dicionários analisados, fato que pode sugerir uma crescente produtividade: não-pagamento, não-unânime, não-biológico, não-vencidos, não-segurança, não-pobres, não-atendimento. Já a revista Veja apresentou neologismos em textos de gêneros diversos, tais como: não convencional, não-hierarquia, não descritas, não realizadas, não satisfeitas.

Percebe-se que tais exemplos, nenhum dos quais dicionarizados, encaixam-se perfeitamente no quadro acima descrito. Assim, temos: o morfema não diante de adjetivos com o sentido de negação; não-unânime, não-biológico, não-vencidos, não-pobres, não convencional, não descritas, não-realizadas, não-satisfeitas, em que encontramos, o emprego do hífen em todos os verbetes da Folha, mas não nos da Veja, que procurou seguir o que prescreve Houaiss: quando empregados como adjetivos, não se deve colocar hífen. Os substantivos, no entanto, foram todos empregados com hífen, a exemplo dos dois dicionários consultados, e apresentaram o sentido de falta/ausência: não-pagamento, não-segurança, não-atendimento, não-hierarquia.

Por meio desse quadro de possibilidades semânticas do emprego de não diante de diversas bases, é possível observar o grau de dificuldade encontrado na compreensão de tal processo. O levantamento apresentado acima, embora possa permear possibilidades claras de regras com esse morfema, ainda é insuficiente, já que os dicionários analisados não trazem, na maioria das vezes, os verbetes contextualizados e sim, o seu significado isolado, neutro. É preciso, para uma maior exatidão do emprego de não, um levantamento mais sistemático nos mais variados tipos de textos, técnicos, científicos, jornalísticos, etc., de forma a sistematizar o significado conforme as bases às quais esse elemento é anexado. Além do mais, para que se possa sistematizar uma possível regra de aplicação com esse morfema, é necessário uma análise sêmica das bases, o que não é possível nesse trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O morfema não, enquanto elemento anteposto a uma base, foi possível constatar que seu significado não é único, ao contrário, trata-se de um morfema plurissêmico, dependendo do ambiente morfossintático, bem como do significado da base à qual se agrega, ou seja, depende não só de seu significado, mas também do da base, de forma que no processo de formação de palavras não é mais possível falar apenas em morfologia isoladamente, mas, principalmente, em semântica, embora tenhamos igualmente que pensar em outros componentes da gramática.

Quanto às formações novas com esse morfema, fica claro que, se levarmos em conta apenas textos jornalísticos com ênfase em política, não será possível determinar sua alta ou baixa produtividade. Para que isso seja possível e, principalmente seguro, é necessário, antes, proceder à análise de outras modalidades textuais. Até onde se pôde analisar, é provável que haja uma clara possibilidade de sistematização de regra para o emprego de não, dependendo da categoria da base. No entanto, só uma pesquisa mais aprofundada, com textos de vários gêneros, bem como com textos do português falado, será possível realizar, efetivamente, tal sistematização.

Além do mais, modelos de análise como esse, ressaltando o aspecto semântico das formações, devem começar a fazer parte das aulas de língua portuguesa, uma vez que, como dissemos, não se deve mais pensar em formações isoladas, e sim contextualizadas. Dessa forma, pode-se dar subsídios à leitura e à compreensão de textos, ampliando, concomitantemente, o conhecimento do léxico por parte do aluno.

REFERÊNCIAS

COUTINHO, I. L. Pontos de Gramática Histórica. 6ª ed. R.J.: Acadêmica, 1969.

MELO, G. C. de. Iniciação à filologia e à lingüística portuguesa. 6. ed. rev. e melh. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1981. (Col. Lingüística e filologia).

MONTEIRO, J. Morfologia Portuguesa. S.P.: Pontes, 1991.

SAID ALI, M. Grammatica Histórica da Língua Portugueza. 2ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1931.