O ciclo do futuro nas línguas ibero-românicas

Rerisson Cavalcante de Araújo (UFBA)

 

Introdução

O presente trabalho tem como enfoque o Futuro, enquanto tempo verbal, e seus modos de expressão nas principais línguas ibero-românicas (doravante IRs), a saber: português, espanhol e catalão. Examinaremos, assim, tanto a constituição das formas padrão destas línguas (como um fenômeno de gramaticalização de formas perifrásticas) em substituição das formas sintéticas correntes no latim, quanto a variação existente na sincronia atual entre essas formas gramaticalizadas e outras formas analíticas que lhes são concorrentes. Tal fenômeno pode ser denominado ciclo do futuro: a oscilação, diacronicamente constante, entre as formas sintéticas e as analíticas na expressão do Futuro nas línguas românicas.

Para tanto, analisaremos os aspectos normalmente apresentados como explicações para a substituição das formas latinas pelas românicas, bem como buscaremos elementos que contribuam para uma melhor descrição desses tempos na estrutura verbal das IRs. Utilizar-nos-emos do português brasileiro contemporâneo (PB) como principal fonte de considerações sobre a concorrência atual entre as formas sintéticas e as analíticas nas IRs, em decorrência do avançado grau de difusão desse fenômeno em nossa língua.

 

O Futuro latino e o Futuro ibero-românico

A conjugação verbal latina, além de apresentar as categorias de Modo, Tempo, Número e Voz, possuía uma divisão bipartida mais básica, de valor aspectual, que atingia a todos os Modos e Tempo verbais. Trata-se da caracterização de uma “ação verbal como conclusa ou inconclusa, ou seja, diz respeito à referência a umfato verbal” descrito pelo lexema do verbo ser expresso, através dos morfemas modo-temporais, como ação acabada ou não-acabada. Essa divisão gera uma classificação dos tempos latinos em Perfectum e Infectum (tempos perfeitos ou conclusos e tempos imperfeitos ou inconclusos) que perpassa toda a classificação modal da flexão verbal latina.

Em decorrência de tal particularidade do latim, a noção do futuro correspondia a dois tempos que se opunham um ao outro de acordo com o Aspecto: o Futuro Imperfeito (equivalente ao nosso Futuro do Presente) e o Futuro Perfeito.

Os dois Futuros latinos não correspondem aos dois Futuros existentes hoje em português e nas demais IRs (diferença decorrente de alterações sofridas na passagem do latim para as línguas românicas). Se, por um lado, o Imperfeito latino equivale ao nosso Futuro do Presente, o Perfeito latino difere em essência do Futuro do Pretérito ou Condicional ibero-românico – tal noção era expressa em latim através do Pretérito Imperfeito do Subjuntivo (COUTINHO, 1977: 325).

 

O Futuro como tempo verbal

forma, função e produtividade

Os romanistas costumam salientar que o Futuro latino não teve continuação ounão passou para as línguas românicas, tendo essas o substituído por perífrases. Coseriu (1977: 21), no entanto, chama a atenção para o fato de que não foi o Futuro que desapareceu na passagem do latim, fruto de um suposto enfraquecimento dessa noção, mas que houve sim uma substituição das formas de expressão desse tempo na constituição dos romances. Consideramos importante, portanto, a distinção entre o Futuro como tempo verbal e as formas de expressão desse tempo, salientando que uma mudança da forma, do ou no elemento lexical, não corresponde necessariamente a uma alteração da função.

Cabe falar, então, na substituição das formas do Futuro e não na substituição do Futuro latino, propriamente dito, nos romances. Do mesmo modo, devemos nos referir à não-continuação das formas latinas do Futuro ao invés da “não-continuação” do Futuro latino nos romances. Tal poderia ser dito se houvesse a perda da noção do Futuro, do tempo futuro, nas línguas românicas, o que não houve. Mesmo no caso do Futuro Perfeito, que não possui forma sintética nas IRs, é possível expressá-lo fazendo uso dos recursos disponíveis nessas mesmas línguas com a mesma especificidade do latim (embora tal distinção não pareça tão relevante para um falante de IRs).

Tal visão decorre do fato de, comumente, nas análises gramaticais/lingüísticas se considerarem, mesmo inconscientemente, os tempos sintéticos como mais básicos nas línguas do que os tempos compostos; atitude que decorre da tradição gramatical ocidental, de cujo legado ainda somos herdeiros.

Contudo, lembremos, por exemplo, que o inglês (e outras línguas) expressa o Futuro através de formas perifrásticas, fato que, entretanto, não fornece evidência para se considerar o inglês como uma língua desprovida do tempo Futuro.

Os tempos perifrásticos não podem, portanto, ser considerados como secundários numa língua pelo simples fato de serem formas analíticas. Porém, podemos considerar certas nuances temporais como secundárias ou secundarizadas numa língua em decorrência de um uso mínimo (ou um uso quantitativamente decrescente com o passar do tempo) destas por parte de uma comunidade, rótulo que pode ser atribuído tanto a formas analíticas quanto a sintéticas. Não se trata, então, de definir uma noção como fraca ou secundária em uma língua em decorrência do caráter analítico ou sintético de suas formas, mas observar como a comunidade lingüística trabalha com essa noção e o quanto esta é produtiva na comunidade.

Assim, na história das IRs desde sua formação, podemos distinguir três momentos referentes à categoria do Futuro e suas formas de expressão.

O primeiro momento segue-se a uma estabilidade das formas sintética amabo, amabis etc, quando começa a surgir na língua latina uma concorrência entre essas formas e as perífrases que lhes substituíram. Costuma-se considerar que essas, inicialmente, não tinham o valor de tempo Futuro, ou melhor, não deviam ter o mesmo valor específico de Futuro expresso pelas formas sintéticas em questão. Nessa situação, são as formas sintéticas que passam a ocupar um lugar secundário no uso da comunidade românica, enquanto as analíticas são cada vez mais privilegiadas.

O segundo momento é quando as formas perifrásticas vencem totalmente as simples na fala vernácula e na maioria das situações sociais, ou seja, quando a substituição das formas é tão completa que, além de não figurarem mais na língua falada, as formas antigas não são objeto de recuperação por pressões sociais gerais[1]. Nesse momento se inicia ou se acelera a mudança semântica das formas vencedoras que, deixando de expressar nuances temporais e/ou modais em relação às formas antigas, passam a assumir-lhes o mesmo sentido[2]. Dito de outro modo: os traços semânticos específicos das perífrases em gramaticalização são, gradualmente, neutralizados em favor de uma expressão temporal de menor marcação modal. O Futuro, ditomodal”, se torna cada vez mais temporal, e, como temporal, cada vez menos definido.

O terceiro momento é quando essas formas, totalmente gramaticalizadas e transformadas em tempos sintéticos, começam a, à semelhança do que ocorreu no latim, sofrer a concorrência de outras formas analíticas que chegam a ameaçar lhes substituírem na fala vernácula. Tais formas parecem serem introduzidas para marcar especificidades temporais e/ou aspectuais em relação às formas tradicionais. Entretanto, em alguns contextos passam a ser concorrentes equivalentes.

Frente a essa descrição, importa explicar: (i) porquê as formas latinas foram substituídas por outras que, a princípio, exprimiam nuances diferenciadas e, portanto, não eram necessariamente concorrentes suas, o que implica saber se houve uma mudança na especificidade temporal privilegiada pelos falantes ou se houve uma expansão do uso das formas analíticas para os contextos em que ocorriam as sintéticas, com uma neutralização das especificidades modais, hipóteses que, em tese, não são excludentes[3]; (ii) porquê as formas que venceram no romance acabaram perdendo as nuances específicas e assumindo o valor temporal não-modal; (iii) em quê medida a concorrência atual entre as formas sintéticas e analíticas nas IRs se assemelham ou diferem da situação latina, o que equivale a estudar mais a fundo o terceiro momento.

 

Causas da substituição

das formas do Futuro latino

Dissemos que não se pode falar que o Futuro latino se perdeu na passagem para os romances, devido à continuação da existência de tal noção nessas línguas. O que houve sim foi a substituição das formas do Futuro. Por esse ponto de vista, tão pouco o Condicional foi criado nos romances, pois tal nuance também era passível de expressão no latim. Entretanto, devemos reconhecer que ocorreu uma “reorientação semântica” (COSERIU, 1977: 21) do Futuro latino, tendo as formas sintéticas, antes formas básicas da língua, cedido lugar a outras que expressavam valores modais e temporais (secundários) e que passaram a ser privilegiados pela comunidade lingüística.

A perda das formas específicas do Futuro Perfeito, desse modo, indica que tal noção deixou de ser importante nos romances, assumindo um valor secundário, acionado apenas em situações específicas por outros recursos das línguas. Essa constatação não se deve, contudo, à natureza da forma, mas à sua produtividade. O Futuro Condicional, assim, torna-se mais recorrente devido a uma atribuição de valor/importância a tal matiz temporal por parte da “língua”.

Vejamos, então, os fatores apresentados como possíveis de explicar a substituição das formas latinas.

Uma das primeiras causas normalmente apresentadas é o próprio paradigma verbal que apresenta uma irregularidade no Futuro Imperfeito, que tem duas desinências diferentes para a 1ª e 2ª conjugação de um lado e para a 3ª e 4ª de outro, o que favoreceria uma simplificação. A esse fator se somam as alterações fônicas sofridas pelo latim, que tornaram as formas da 1a e 2a conjugação parecidas com as do Pretérito Perfeito do Indicativo, com o enfraquecimento do -b- intervocálico.

Do mesmo modo, a 3a e 4a apresentam semelhanças com o Subjuntivo Presente. Tais fatores, contudo, não podem ser considerados motivações suficientes para gerar o processo, mas devem atuar em conjunto com outras causas.

A existência de dois paradigmas distintos para a formação do Futuro Imperfeito não se constitui em causa suficiente para o abandono das formas. Em português, por exemplo, o paradigma do Pretérito Imperfeito que era, regularmente, formado com a desinência -ba- em latim, evolui para dois paradigmas distintos, com os morfemas -va- para a 1a conjugação e -ia- para a 2a e 3a. Tal situação, além de ir “na contramão da simplificação”, mantém-se estável na língua, não apresentando sintomas de uma “correção” no sistema[4]. Pelo contrário, as formas do Pretérito Imperfeito têm o seu uso expandido para o âmbito de outros tempos, como o Condicional. Por outro lado, se houvesse uma necessidade de simplificação do paradigma, essa se poderia dar por analogia (COSERIU, 1977: 25) e não por uma alteração tão drástica das formas.

Com relação às mudanças fônicas que produziram semelhanças entre as formas do Futuro e as de outros tempos, não é contrario à realidade o fato de que uma alteração fônica pode ser freada ou ter o seu resultado desviado em situações em que se necessite manter uma oposição distintiva produtiva, embora reconheçamos que tal não se dá infalivelmente. Contudo, poder-se-ia pensar porquê não foram os outros tempos verbais que sofreram alterações em suas formas para evitar a ambigüidade? Com efeito, seguindo o raciocínio de Coseriu[5], o fato de, diante do enfraquecimento de uma oposição distintiva relevante, uma das formas mude ao invés da outra também é fenômeno digno de investigação. Assim também, a semelhança entre a 3a e 4a conjugação no Futuro Imperfeito tem sua razão na origem da desinência do paradigma, provinda do próprio modo subjuntivo. Ora, se houve a necessidade de expressar um valor temporal através da especificação (e transferência) de uma forma para tal noção, como, de uma hora para outra, o parentesco entre as formas se tornou mais importante do que a necessidade de expressão? Isto reforça a idéia de que, a esses fatores morfológicos e fônicos, se devem ter somado outros que contribuíram para o processo.

Os fatores apresentados até aqui dizem respeito à necessidade de se manter a oposição distintiva entre as formas verbais, que podem ser classificados como hipótese morfológica. A esses contribuíram outros fatores que colocam a mudança descrita em termos de alterações semântico-estilísticas no “modo de pensar” dos falantes do latim, as quais teriam motivado uma maior produtividade das formas que apresentavam as especificidades que os falantes desejavam expressar. Como descrição dessa mudança de “orientação do pensamento”, fala-se no caráter modal que as formas substitutas apresentam em relação às analíticas. Por modal, faz-se referência à classificação tradicional do Modo do verbo. É ainda comum a referência ao uso das formas do Presente para o Futuro (recurso também utilizado pelo latim e pelos romances) como decorrente desse redirecionamento (voltaremos a esse ponto). Não se costuma, porém, caracterizar as motivações de qualquer ordem que sejam responsáveis para essa reorientação do pensamento dos falantes do latim.

Em ambas as correntes de explicação, alguns estudiosos que abordam a questão acabam descrevendo o processo como resultado de “equívocos freqüentes” do “povo inculto” (COUTINHO, 1977: 324), e atribuindo a este uma incapacidade intelectual para manter as formas sintéticas em suas características primordiais. Argumenta Vossler:

Se necesita una conciencia siempre vigilante, una disposición filosófica y un hábito de pensar, para no dejar que la idea temporal del futuro se extravíe en los dominios modales de temor, de la esperanza, del deseo y de la incertidumbre.[6] (COSERIU, 1977: 19-20)

Os fatores que Vossler apresenta como necessários para a manutenção do tempo verbal do Futuro estão longe de pertencer ao domínio de um sistema lingüístico natural, ou de um conhecimento natural, vernáculo, da língua por parte do indivíduo. Acabam se caracterizando como uma situação de uso, ou tentativa de uso, de uma forma não-vernácula que, apesar da pressão social, não consegue entrar e se consolidar na estrutura da língua devido a uma incompatibilidade desta com o sistema lingüístico. uma situação por demais artificial e alienígena ao sistema lingüístico necessita um grau tão alto de esforço mental extralingüístico, uma vez que as nossas categorias mentais são, inevitavelmente, influenciadas pela estrutura da língua que dispomos, de modo que nos tornamos habituados com as distinções da nossa língua.

Tais considerações se mostram por demais fracas e ilusórias, por transmitir a falsa impressão de língua como um patrimônio exclusivo das classes consideradas cultas, do qual as classes populares se utilizariam como de empréstimo e sempre de forma inadequada, de onde viriam as “corrupções” e “deturpações” do idioma. Com efeito, a continuação da categoria futura demonstra que não houve uma incapacidade de trato com esse valor temporal ou com as características supostamente “filosóficas” dela decorrentes. Contudo, não significa negar a ocorrência de uma reorientação da idéia temporal por parte dos falantes no primeiro momento do processo.

É Coseriu quem consegue, além de juntar os fatores morfológicos aos semânticos, fornecer uma motivação primária para o fenômeno. Segundo o autor, tal motivação está na expansão do cristianismo (COSERIU, 1977: 34), que impunha aos indivíduos uma mudança drástica de perspectiva em relação à vida terrena e, em conseqüência, ao modo de postar-se em referência ao futuro.

La circunstancia históricamente determinada fue, sin dudas, el cristianismo: un movimiento espiritual que, entre otras cosas, despertaba y acentuaba el sentido de la existencia e imprimía a la existencia misma una genuina orientación ética. (…) una nueva actitud mental: no es el futuro exterior e indiferente, sino el futuro interior, encarado con conciente responsabilidad, como intención y obligación moral.[7] (COSERIU, 1977: 34)

Tal argumento explica, por exemplo, a escolha semântica dos verbos formadores das perífrases, que expressavam dever, obrigação, desejo e intenção antes de uma certeza com relação ao futuro.

 

A referência temporal

na delimitação dos tempos verbais

O conjunto de fatores apresentados anteriormente não nos parece, porém, suficiente para relacionar a substituição das formas latinas e a concorrência atual entre as formas sintéticas e analíticas nas IRs. Para tanto, recorremos a uma abordagem que busca desvelar os modos de atribuição dos valores temporais nas orações. Contrariamente à maior parte das definições de Tempo nas gramáticas como a expressão de um fato como antes, durante ou depois do momento da fala do interlocutor, partimos da hipótese de Ilari (1981: 181) de que a interpretação temporal de uma sentença é resultado da interação, do estabelecimento de relações entre três momentos, a saber:

- o momento da fala (MF);

- o momento do evento ou momento da realização do predicado (ME)

- o momento de referência (MR).

A interação entre esses três fatores costuma ser descrita nos seguintes termos: a) MR é anterior, simultâneo ou posterior a MF; b) ME é anterior, simultâneo ou posterior a MR. Tal modo de descrição assume uma característica essencialmente temporal, deixando de lado valores aspectuais. Os verbos apresentam, portanto, em suas desinências modo-temporais, valores distintos para esses três momentos.

A partir disso, consideremos a utilização do tempo presente pelo Futuro. Sartori apresenta uma consideração de Maurer Junior sobre o tema:

Maurer Junior explica a utilização do presente para expressar o futuro pelo fato de a noção de futuro estar ligada a intenções, planos e expectativas do presente... (SARTORI, 2002)

No entanto, abordando a questão de acordo com a delimitação da identificação temporal, notamos que, contraditoriamente, o que se chama de tempo Presente não representa uma ação que ocorre no momento da fala. Essa forma não apresenta nitidamente o esquema MF = MR = ME. Por não ter morfema modo-temporal, o Presente não tem MR definido nem tão pouco toma o MF como substituto para a ausência do MR[8]. O Presente, assim, indica um evento, situando-o fora de limites delimitados de Tempo e de Aspecto (início e fim). O esquema MF = MR = ME, que expressa a noção de presente momentâneo, pontual, é expresso em português pela perífrase ESTOU + GERÚNDIO (estou falando, de modo algum, equivale a eu falo)[9]. Dessa forma, o esquema do Presente se apresenta como algo do tipo MF ≠ MR, e MR = Æ. Com a associação do Presente com um adjunto adverbial de tempo, a oração adquire um MR (Agora eu levanto), passando a poder expressar futuro ou passado (Amanhã, faço isso; Ontem ele me aparece e me pede desculpa!; Em 1500, Cabral chega ao Brasil)[10].

Assim, consideramos que a interpretação temporal das sentenças em IRs é feita basicamente pela interação entre o MR e o ME. e que a delimitação dos valores temporais não se dá exclusivamente pela identificação de MR em relação a MF em termos de anterioridade, simultaneidade e posterioridade. O MR, mais do indicar antes, depois e durante, pode constituir-se como marcadora de valores próprios mais específicos na “linha do tempo que não se restrinjam a esses. As IRs diferenciam, por exemplo, dois pretéritos perfeitos, sendo um destes, o mais-que-perfeito, anterior ao outro. O espanhol, além disso, apresenta um pretérito mais próximo também perfeito (cante x he cantado). Cada língua (ou cada povo) faz divisões no eixo temporal que lhe pareçam mais relevantes. Veja-se, assim, esquema que tenta delimitar os tempos portugueses:

Esquema 1: a divisão cronológica em português

Passado

[ ____ ][11] Pret. Mais-que-perf. (Eu falara/ tinha falado)

[ ____] Fut. perf. (Eu falei)

_____________ Pret. imp. (Eu falava)

________ Pres. Ind. (Eu falo)

Caixa de texto: Eixo do tempo

 

· Pres. momentâneo (Estou falando)

 

_____________________________ 0 _____________________________

[______ Fut. imp.(Eu falarei)

[__________________

Fut. imediato (Vou falar)

_______]

Fut. perf. (Eu terei falado)

Futuro

Assim, línguas diferentes podem adotar uma única forma de referência ao Futuro, enquanto outras podem fazer uma distinção entre valores diferentes de proximidade do Futuro em relação ao “presente” (entendido como ponto zero na linha temporal). Entre um Futuro definido e um indefinido, entre um Futuro distante e um Futuro imediato, por exemplo. Com relação às IRs, o que se é isso: uma distinção entre um Futuro mais imediato, que se segue de pronto (e indefinidamente?) ao Presente e um Futuro indefinido, porém mais distante em relação ao Presente.

A concorrência entre as formas do Futuro na sincronia atual do PB demonstra claramente essa distinção. Veja-se, por exemplo, a frase produzida em (a), numa situação em que (b) pareceria estranha por apresentar a ação como mais distante no tempo:

(a)             Ele não vai vir não! (em referência à parada de um ônibus em um local distante do ponto)

(b)             Ele não virá

Assim, as perífrases atuais diferem das perífrases latinas por expressarem mais propriamente uma noção aspectual frente a um valor mais modal dessas. Pelo ponto de vista puramente temporal, cronológico, ambas se apresentam como um Futuro mais imediato, mas de extensão também indefinida, em oposição a um Futuro mais distante. O esquema 1 delimita, então, um ponto de contato entre o Futuro imediato e o Futuro distante, que decorre do fato de o primeiro, apesar de ter início mais próximo, poder apresentar uma extensão indefinida. Justificamos tal descrição em virtude dos contextos em que os dois Futuros se apresentam como concorrentes perfeitamente substituíveis sem mudança semântica (Amanhã eu vou viajar; amanhã eu viajarei). Cremos, dessa forma, que tal ponto de contato na extensão cronológica dos dois Futuros é responsável por uma expansão dos usos de um tempo para os contextos em que normalmente ocorreria o outro.

Outros fatores devem se somar a esse, como a aquisição do vernáculo: como se dará a aquisição do tempo futuro em uma situação de concorrência entre as formas, em que a comunidade passe a privilegiar uma das noções? Outro ponto a se considerar é: qual a motivação cultural responsável por esse novo privilegiar da noção de Futuro imediato? Uma análise simplista poderia tentar, em paralelo com as considerações sobre a influência do cristianismo no latim, explicar essa reorientação decorrente das mudanças sociais que aceleraram o modo de viver, formando uma visão mais imediatista da vida. Tal argumento parece-nos, entretanto, fraco e não adequado para a descrição da complexidade do processo.

 

Conclusões

Tratamos nesse trabalho dos fatores que contribuíram para a substituição das formas sintéticas latinas pelas analíticas românicas para expressão do Futuro, salientamos a diferença que se deve fazer entre a forma lexical e a função das categorias lingüísticas e, no caso específico, temporais. Argumentamos, também, que ummodo lingüístico”, como uma categoria temporal, não pode ser considerado como mais básico em relação a outro em decorrência unicamente da natureza de sua forma, sintética ou analítica, mas sim em virtude de como a comunidade lingüística trabalha com ela e a utiliza em termos de produtividade.

Defendemos a posição de que as línguas ibero-românicas costumam diferenciar um Futuro mais imediato de um Futuro mais distante. Esses dois tempos, contudo, apresentam um ponto de encontro na repartição cronológica do Tempo, uma vez que a ação do Futuro imediato se inicia em um período mais próximo, mas se estende de modo indefinido. Esse ponto de contato é o que possibilita a expansão dos usos de uma das formas para o domínio da outra, motivada por algum fator que leve os falantes a dar mais importância a uma das nuances específicas.

Verificamos, assim, que as formas analíticas do latim apresentavam especificidades modais em relação às formas sintéticas, enquanto as perífrases das IRs exprimem valores aspectuais. Contudo, no plano puramente temporal, as formas analíticas latinas e ibero-românicas se assemelham por se opõem às sintéticas ao expressarem um Futuro mais próximo e imediato, diante de um Futuro mais distante e indefinido.

 

Referências bibliográficas

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SARTORI, Ana. O Futuro do Presente na língua falada e escrita. Trabalho apresentado na XIX Jornada Nacional de Estudos Lingüísticos do GELNE, Fortaleza, set./ 2002.


 

[1] Embora tais pressões possam ainda existir em grupos específicos, mas quantitativamente não relevantes para a fala geral.

[2] Isto é mais claro para o caso do Futuro Imperfeito; já o Condicional, se não se pode dizer que suas formas substituem as antigas pré-existentes, é fato que estas se consolidaram como categoria autônoma ao lado do “evolução” do Futuro Imperfeito.

[3] A longo prazo, podemos notar uma interação entre os dois casos. No entanto, há de se verificar se, na origem da concorrência das formas existiu a expansão de contexto, ou esta se seguiu ao período em que as novas formas já eram mais produtivas que as antigas.

[4] Em geral, as explicações teleológicas apresentam como problema o fato de uma mudança ditacorretiva” se realizar numa língua mas não em outra que possui a mesma falha (Lucchesi, 1998: 139-167. Faraco, 1998: 51-55).

[5]Obsérvese que, em general, para todo cambio que no sea solo desaparición o sólo aparición de um modo lingüístico, sino sustitución de un modo por otro, hay q explicar dos hechos: la eliminación del modo viejo y su sustitución precisamente por tal modo nuevo y no por algún otro.” (Coseriu, 1977: 25, nota de página)

[6] “É necessária uma consciência sempre vigilante, uma disposição filosófica y um hábito de pensar, para não deixar que a idéia temporal do futuro se perca pelos domínios modais do temor, da esperança, do desejo e da incerteza.” (tradução nossa)

[7] “A circunstância historicamente determinada foi, sem dúvida, o cristianismo: um movimento espiritual que, entre outras coisas, despertava e acentuava o domínio da existência e imprimia à própria existência uma genuína orientação ética. (...) uma nova atitude mental: não se trata mais do futuro exterior e indiferente, mas do futuro interior, encarado com consciente responsabilidade, com intenção e obrigação moral.” (tradução nossa)

[8] Ou seja, a interpretação das formas não prevê, obrigatoriamente, MR = MF, embora o MF possa ser tomado como referencial de ME em determinados contextos pragmáticos.

[9] Tenhamos claro, porém, que, em alguns contextos, tal perífrase pode assumir o sentido atemporal do Pres. Ind., como em: Eles estão dormindo juntos, que pode se tratar de um presente pontual (agora) ou de não (esses tempos, ultimamente)

[10] Poder-se-ia pensar que essa explanação sobre o tempo Presente é inadequada em decorrência da impossibilidade de *Ontem eu faço isso, frente a Ontem eu fiz isso. Cremos que deve haver algum tipo de restrição às possibilidades combinatórias entre o “Presente” e os adjuntos temporais ou, melhor dizendo, os adjuntos temporais só podem determinar o MR do Presente se atenderem a algum critério de seleção/compatibilidade a ser formulado. É possível, inclusive, que esses critérios sejam diferentes para o Futuro e para o Passado.

Podemos, entretanto, considerar que em (a) e (b), o adjunto determina a MR e em (c) o especifica.

(a)      Próximo mês, faço isso.

(b)      Ontem! ele me pede desculpas! (com ênfase no ontem)

Ele me pediu desculpas ontem.

[11] Os símbolos [e] indicam, respectivamente, início e fim da ação.