O LÉXICO DO QUEIJO
Ana Maria Almada de Assis (PUC-RS e UNIPAC)
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo imediato registrar o léxico específico do queijo na mesorregião do Campo das Vertentes, microrregião de Barbacena, compreendendo as cidades de Antônio Carlos, Barbacena, Barroso, Capela Nova, Caranaíba, Carandaí, Desterro do Melo, Ibertioga, Ressaquinha, Santa Bárbara do Tugúrio e Senhora dos Remédios. O levantamento preliminar do léxico foi feito com a contribuição dos alunos do Curso de Letras da UNIPAC de Barbacena, em 2001 e 2002.
Durante a investigação, procurou-se obter dados significativos sobre as características da linguagem dos queijeiros da região pesquisada. O interesse de conhecer a linguagem específica de uma comunidade típica da região conduz aos objetivos da presente pesquisa que são: levantar o léxico específico dos fabricantes de queijo de nossa região; estabelecer, através do léxico levantado, possíveis relações entre as variações lingüísticas e sociais; observar os vocábulos específicos do queijo, os comuns a outras atividades similares e os pertencentes ao português corrente na região; registrar, para cada vocábulo encontrado, a descrição exata que os falantes lhe atribuem; estabelecer possíveis relações em nível de linguagem entre a atividade profissional nas diversas fábricas de queijo e a vida comum dos empregados nessa área; descrever o léxico levantado.
Pressupostos teóricos
O léxico: delimitação de conceitos
O léxico de uma língua está relacionado com a experiência do mundo real e constitui o “armazém” de onde os falantes extraem as palavras segundo as situações. É, por isso, heterogêneo e complexo.
Coseriu (1978: 133) estabelece um ponto de partida para a conceituação de léxico quando o considera a totalidade das palavras de uma língua que correspondem a realidade extralingüística.
Segundo Mário Vilela (1979: 133), o léxico é formado pelas palavras que possuem maior conteúdo nocional na língua e pertencem às categorias de substantivo, adjetivo e verbo, ou seja, ao objeto próprio da lexicologia. Consideram-se também as palavras compostas (sintagmas fixos) e derivadas como integrantes das unidades léxicas, bem como as expressões que correspondem paradgmaticamente a unidades léxicas normais.
A partir desse pressuposto, levantou-se o léxico específico da comunidade dos queijeiros da mesorregião do Campo das Vertentes, em Minas Gerais. Levaram-se em conta apenas os substantivos, adjetivos, verbos além das palavras compostas, derivadas e expressões fixas dessas mesmas classes.
O léxico das linguagens especiais
No contexto extralingüístico, o léxico assume importância para as ciências que levam em conta as funções, a estrutura e os mecanismos de produção e atualização das unidades lexicais, como, por exemplo, a Sociologia.
Para Edward Sapir (1969: 45), o léxico de uma língua é que mais nitidamente reflete o ambiente físico e social dos falantes e pode-se considerar como o complexo inventário de todas as idéias, interesses e ocupações que açambarcam a atenção da comunidade.
O léxico não deve ser separado do contexto que ao mesmo tempo gera e reflete, nem dissociado dos grupos de indivíduos que dele se utilizam. O aparecimento de novos produtos, de novas funções, de novas técnicas, os progressos da divisão do trabalho trazem a criação de novos termos.
As mudanças lingüísticas ocorrem sem pressa, porém sem pausa. Entre os componentes lingüísticos, o léxico afigura-se como o mais afetado, o mais flutuante e o mais sensível às mudanças culturais, por ser o que mais reflete a realidade extralingüística.
Por ser aberto, é ilimitado, sujeito a mudanças de significado, a empréstimos, a criação de termos para designar novas atividades, novas técnicas ou conhecimentos. Portanto, consideram-se também, no presente trabalho, as palavras derivadas, os neologismos e estrangeirismos.
As linguagens especiais como produção e atualização do léxico
As diferenças lingüísticas em relação à linguagem comum aos habitantes de uma região se fazem presentes, principalmente, nos agrupamentos onde as pessoas estão unidas por uma mesma atividade, havendo, então, as chamadas linguagens especiais em que novos vocábulos são criados e usados.
Segundo Herculano de Carvalho (1973), as linguagens especiais são primeiramente as linguagens técnicas, constituídas pelo inventário léxico peculiar às diversas comunidades menores, cujos componentes se encontram ligados por uma forma particular de atividade profissional.
Um agrupamento humano que realiza um trabalho de caráter mais ou menos permanente ou habitual (como é o caso da atividade dos queijeiros) exige instrumentos, locais, técnicas e mão-de-obra específicas, como formas de operar, elaborar, conduzir e processar todo o trabalho que leva ao objetivo final.
Todo esse processo exige um convívio entre os componentes do grupo, e a linguagem deles será nivelada de acordo com a necessidade de relações que uns estabelecem com os outros, não importando a classe social a que pertencem. Cada um irá adquirindo um desempenho lingüístico próprio do grupo, por necessidade de comunicação no trabalho.
No conjunto dos queijeiros da mesorregião do Campo das Vertentes, de Minas Gerais, há queijeiros semi-analfabetos ou apenas com educação primária que dominam todo o vocabulário de sua profissão. Tal domínio acontece graças ao intercâmbio que se estabelece entre eles, os técnicos de laticínios, os engenheiros de alimentos e patrões.
Uma especialização de procedimentos e técnicas em torno de uma atividade pressupõe o relacionamento entre os componente de um grupo e, ao mesmo tempo, uma especificação do léxico da atividade e da técnica que usam. O que conduz à formação de uma linguagem especial, profissional e/ou técnica.
METODOLOGIA
A pesquisa de campo
A pesquisa inicial de campo foi efetivada em 2001 e 2002 por alunos do Curso de Letras da UNIPAC de Barbacena.
Na realização desta etapa, 90 alunos formaram trinta equipes. Cada equipe selecionou três informantes que produzem queijos caseiros ou de fábrica para assim dar início à tarefa de gravações e entrevistas.
O trabalho supunha conversar por alguns minutos com cada informante para saber quais deles possuíam disponibilidade de tempo e disposição de cooperar com o estudo.
Após este contato direto com cada um, nova seleção foi feita. Resultaram 60 informantes, ou seja, aqueles que apresentavam mais condições de diálogo, eram mais disponíveis, mais espontâneos, com mais fluência no que se refere à clareza na articulação para terem condições de fornecer, com maior precisão, o tipo de dados que se buscou colher.
Primeiramente manteve-se com eles um contato prévio onde foi marcado um novo encontro. O relacionamento tornou-se fácil, conseguindo-se espontaneidade e colaboração. Percebeu-se que a escolha de um informante entre vários pertencentes ao grupo e o uso da fala local pelo investigador funcionaram como fatores de motivação, favorecendo o andamento da entrevista.
A escolha dos informantes obedeceu aos seguintes critérios:
a) ser queijeiro ou empregado de uma fábrica de queijos há mais de 5 anos;
b) ter mais de 25 anos de idade;
c) ter disponibilidade para responder ao questionário;
d) ter desenvoltura lingüística.
Pelo fato de se tratar de uma linguagem profissional e de se estar verificando o domínio do léxico, entrevistaram-se, no máximo, um ou dois informantes de cada fábrica de queijo ou fabricação caseira.
Realização da pesquisa
Selecionados os informantes, realizou-se a primeira etapa do trabalho, ou seja, o inquérito baseado em um questionário contendo 61 perguntas separadas por campos semânticos. Neste instrumento, tomou-se a orientação de Manuel de Paiva Boléo (1972).
O inquérito foi feito aos 60 informantes selecionados, cujas falas foram gravadas em fitas magnéticas com cerca de 2 horas para cada informante, perfazendo um total de 120 horas de gravação.
Procurou-se encaixar as perguntas do questionário a uma conversação dirigida, o que provocou entusiasmo e deixou o informante mais à vontade.
Convém observar que , pelo fato de os alunos entrevistadores serem naturais da região e de terem conhecimento e vivência de certos aspectos de comportamento das pessoas do lugar, da vida e das atividades rurais, as entrevistas funcionaram num clima de desinibição. É provável que, por esse motivo, os informantes se mostraram, em sua maioria, acessíveis e interessados em fornecer as informações pedidas.
A segunda etapa se constituiu no estudo das gravações, isto é, transcrição e posterior listagem de todos os termos relacionados com o queijo, mencionados durante as gravações. Em seguida, organizou-se um fichário com uma ficha para cada palavra e/ou expressão coletada. Conseguiu-se, assim um total de 650 fichas, que foram classificadas em campos semânticos (áreas e subáreas), a fim de facilitar a etapa seguinte.
Na terceira etapa, foram escolhidos oito informantes mais disponíveis. Eles foram solicitados a explicar todas as palavras ou expressões do fichário que lhes foram apresentadas. A resposta era, então, anotada na ficha. A descrição final de cada palavra ou expressão foi elaborada mediante a compatibilidade dos oito informantes.
Ao explicar ou descrever um termo, os informantes diziam um outro referente à fabricação de queijos ainda não registrado. Novas fichas, então, foram abertas mediante comprovação do uso do termo entre os oito informantes. Com isso acrescentaram-se 78 termos ao fichário.
Ao analisar o léxico encontrado, verificou-se que muitos termos e/ou expressões estavam com as definições vagas. Portanto foi preciso levar tais termos novamente em campo para completar o que estava obscuro. Foram cerca de 122 casos. Esses termos e/ou expressões foram levados aos queijeiros novamente. Uma vez definidos e esclarecidos voltou para serem inseridos junto aos outros já definidos.
A pesquisa bibliográfica
A etapa seguinte se constituiu em um novo levantamento de termos feito em folhetos e livros técnicos sobre queijos, com o objetivo de buscar e escrever novas palavras e/ou expressões referentes ao queijo.
Foram pesquisadas obras de: Newton de Alencar (1993 e 1995); M. L. Arruda Behmer (s.d); além de Informes Agropecuários da EPAMIG, Revistas do Instituto de Laticínios “Cândido Tostes” (1995 e 1998), da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Distrito Federal- EMATER (1985), da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (1987).
Neste levantamento foram coletados e descritos 82 novos termos relacionados ao queijo, que foram levados novamente aos inquiridos. Se estes os reconheciam e o descreviam, eram incorporados ao fichário, caso contrário, eram destacados.
Em seguida, fez-se uma comparação entre os termos encontrados na pesquisa de campo, nos livros técnicos e nos dicionários de Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Antônio Houaiss.
Procurou-se, com essa comparação, verificar se cada termo pesquisado e usado pelos informantes existia nos dicionários e livros técnicos sobre queijos e sua averbação.
Adotou-se o seguinte código, para colocação após cada palavra e/ou expressão:
1: a palavra ou expressão se encontra unicamente na fala dos queijeiros.
2: palavra ou expressão está presente nos livros técnicos e na fala dos queijeiros, com o mesmo sentido.
3: a palavra ou expressão está registrado no dicionário e presente na fala dos queijeiros, com a mesma acepção.
4: palavra ou expressão está presente nos dicionários, nos livros técnicos e na fala dos queijeiros, com o mesmo significado.
5: palavra ou expressão está registrada nos dicionários, porém possui acepção diferente na fala dos queijeiros.
6: palavra ou expressão está registrada no dicionário, porém nos livros técnicos e na fala dos queijeiros a acepção é diferente.
D: dicionário
LTFQ: livros técnicos de queijos e fala dos queijeiros.
Resultado final
O resultado final foi a elaboração de um léxico específico do queijo com 808 palavras e/ou expressões que, embora nãos se pretenda exaustivo, constitui o retrato fiel da terminologia específica do queijo com base no domínio que dele tem a comunidade dos queijeiros da microrregião de Barbacena.
É desse corpus que se procurou fazer uma descrição de cada palavra e cada expressão levantada.
Vocábulos e/ou expressões encontrados no(a) | Número |
1) fala dos queijeiros | 206 |
2) livros técnicos e fala dos queijeiros | 199 |
3) dicionário e presente na fala dos queijeiros, com a mesma acepção. | 49 |
4) dicionários, nos livros técnicos e na fala dos queijeiros, com o mesmo significado | 299 |
5) dicionários, porém possui acepção diferente na fala dos queijeiros. | 41 |
6) dicionários, porém nos livros técnicos e na fala dos queijeiros a acepção é diferente. | 14 |
Total: | 808 |
Tabela 1 - Resultado da pesquisa
Conclusão
Conforme os fundamentos básicos da lexicologia, da lexicografia e das linguagens especiais, as variações lingüísticas se operam em decorrência, não só de fatores internos da língua, mas também de fatores externos, como é o caso da profissão de uma comudidade.
O objetivo fundamental deste trabalho foi alcançado: registrar o “léxico do queijo” com base na comunidade dos queijeiros da mesorregião do Campo das Vertentes, em Minas Gerais, confrontando-o com livros técnicos e com dicionários da Língua Portuguesa.
Das 808 palavras e/ou expressões registradas, chegou-se às seguintes constatações:
50 % ainda não estão dicionarizadas;
43 % estão dicionarizadas com a mesma acepção encontrada na pesquisa;
6 % estão dicionarizadas, porém com acepção diferente daquela encontrada na pesquisa.
Uma vez que o léxico é o componente lingüístico que espelha a cultura de uma comunidade numa determinada época, em situação tematicamente definida, torna-se necessário registrar os seus léxicos específicos.
Referências bibliográficas
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________. Manual do produtor de queijos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993.
BOLÉO, Manuel de Paiva. Inquérito lingüístico. Coimbra, 1972.
BEHMER, M.L.A. Tecnologia do leite. São Paulo: Nobel, 1975.
CARVALHO, J. G. Herculano de. Teoria da linguagem: natureza do fenômeno lingüístico e análise das línguas. Tomo I. Coimbra: Atlântida, 1973.
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EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL DO DISTRITO FEDERAL. Produtos caseiros derivados do leite. Brasília: EMATER, 1985.
EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA DE MINAS GERAIS. Os queijos na fazenda. Rio de Janeiro: Globo, 1987.
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HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
SAPIR, Edward. Lingüística como ciência. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1969.
VILELA, Mário. Estruturas léxicas do português. Coimbra: Almeidina, 1979.