O SOFTWARE COMO FERRAMENTA DE AUXÍLIO
PARA
A APRENDIZAGEM INFANTIL
A
AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM POR SEU INTERMÉDIO
À
LUZ DAS TEORIAS DE VYGOTSKY
QUESTÕES
PRELIMINARES

Mirian Rosa de Freitas Montin (UNIOESTE)
Jorge Bidarra
(UNIOESTE)

 

INTRODUÇÃO

Vemos que, nos últimos tempos, a abordagem sócio-histórica tem sido amplamente investigada e discutida, sugerindo, assim, a adoção de um novo paradigma educacional. Dentre outros pesquisadores dessa abordagem, destacamos Lev Semenovitch Vygotsky, bielo-russo, que, mesmo em poucos anos de vida[1], deixou-nos um grande número de estudos, dos quais a questão do desenvolvimento da linguagem e sua relação com o desenvolvimento do pensamento é um dos assuntos que nos interessa discutir mais de perto.

Concretamente, o que desejamos com essa pesquisa (em sua fase bem inicial) é a partir dos estudos de Vygotksy, especificamente os relacionados com a aprendizagem e mais exatamente no campo do desenvolvimento da linguagem, extrair um conjunto de informações que julgamos relevantes e úteis não apenas para avaliar softwares educacionais[2] mas também que nos sirvam para a proposição de um modelo de software, a nosso ver, mais adequado para a finalidade a que se propõe.


 

MATERIAL E MÉTODOS

O trabalho que vimos desenvolvendo[3] tem dois objetivos principais. Um deles, adquirir subsídios teóricos que nos permitam mais facilmente, de um lado, avaliar os ditos softwares educacionais e, de outro, tentar estabelecer qual exatamente a contribuição que esses softwares, hoje uma realidade em muitas instituições de ensino, vem propiciando aos alunos e professores. O segundo objetivo é propor uma modelagem de software educacional, tomando por base as teorias de Vygotsky. Para atingir os nossos propósitos, de Vygotsky estamos interessados em discutir de uma maneira geral a questão da aprendizagem infantil, mas em especial o tópico referente ao desenvolvimento de linguagem. A seguir, passamos em revista alguns dos principais pontos da teoria de Vygotsky que de fato nos interessam nessa pesquisa.

 

A teoria de Vygotsky: uma visão geral

Para Vygotsky, a linguagem possui duas funções básicas: a de intercâmbio e a de pensamento generalizante. A necessidade de comunicação do homem com seus pares faz com que sejam criados (e utilizados) sistemas de linguagem. Entretanto, para que essa comunicação possa ser de fato viabilizada, não basta que a pessoa manifeste apenas estados gerais[4], tais como as crianças pequenas o fazem, de incômodo ou prazer. É preciso que os signos utilizados, no geral expressos por meio de palavras, possam traduzir idéias, sentimentos, pensamentos e vontades, mas que somente terão validade se compreensíveis por outros indivíduos.[5]

o pensamento generalizante é a função que permite ao indivíduo denominar, via palavras, um certo conjunto de elementos do mundo real. Uma palavra será compreendida por outras pessoas mesmo que a experiência concreta que tenham dela seja diferente da experiência do indivíduo que a utilizou.

As questões envolvidas nessa discussão são diversas, porém, antes de irmos adiante, achamos conveniente, senão necessário, esclarecer desde o que estaremos entendendo aqui pelos seguintes termos: voz, fala, língua e linguagem. É importante termos em mente que cada um desses termos tem seu papel na comunicação e no próprio desenvolvimento do indivíduo. Partimos do princípio de que se voz é a articulação das pregas vocais, isto é a emissão de som, fala vem a ser a articulação ordenada desses sons, logo língua o código entendível para uma determinada cultura e linguagem a habilidade do indivíduo de expressar seus pensamentos, vontades, sentimentos e idéias.

Um fator de grande importância revelado por Vygotsky, relativamente ao estudo do pensamento e da fala, é que, segundo ele, o progresso da fala não é paralelo ao progresso do pensamento, uma vez que o pensamento e a fala possuem raízes geneticamente diferentes. Estas duas funções desenvolvem-se em trajetórias diferentes e independentes. As curvas de crescimento de ambos cruzam-se muitas vezes, podendo até mesmo correr lado a lado ou fundir-se por algum tempo, mas acabam se separando novamente. Vygotsky afirma, ainda, a existência de uma fase pré-lingüística no desenvolvimento do pensamento e uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da fala. Estas linhas se encontram em determinado momento onde, como conseqüência, o pensamento torna-se verbal e a fala racional.

Raízes pré-intelectuais da fala no desenvolvimento da criança são bem conhecidas. O choro e o balbucio da criança são claramente estágios do desenvolvimento da fala que não têm relação com a evolução do pensamento. Embora nem toda manifestação se limite à função de descarga emocional, estas manifestações geralmente são consideradas uma forma de comportamento predominantemente emocional.

É num certo momento, aproximadamente aos dois anos de idade, que as curvas do desenvolvimento do pensamento e da fala, que até então eram separadas, encontram-se iniciando, assim, uma nova forma de comportamento. É quando a criança “descobre” que cada coisa tem seu nome. Nesse momento a fala passa a servir ao intelecto e os pensamentos começam a ser verbalizados. A prova inconfundível disso é a curiosidade que as crianças passam a ter perguntando “o que é isso?” e, como conseqüência, a ampliação de seu vocabulário. Até este momento a criança reconhecia um determinado número de palavras que substituem objetos, pessoas, estados, desejos ou ações. A partir dessa idade a criança passa a sentir a necessidade das palavras e, ao fazer perguntas, tenta aprender os signos vinculados aos objetos, dando-se a descoberta da função simbólica das palavras. Agora, a fala deixa de ser afetivo-conativa para ser intelectual.

Vygotsky aborda o desenvolvimento da fala mostrando-nos que esta segue e obedece ao mesmo curso e às leis que o desenvolvimento de todas as outras operações mentais que envolvem o uso de signos, dividindo-o em quatro estágios. O primeiro estágio é natural ou primitivo. Corresponde à fase da fala pré-intelectual e do pensamento pré-verbal. O segundo é chamado de “psicologia ingênua”, assim chamado por analogia com a “física ingênua[6]. É nesse estágio que a criança domina a sintaxe da fala mas não ainda a do pensamento[7]. O terceiro estágio se caracteriza pelo uso de signos exteriores, em que a criança lança mão de auxiliares externos[8] para a solução de problemas internos. Considera-se esse estágio como sendo o da fala egocêntrica. O quarto estágio é chamado de “crescimento interiorou da fala silenciosa. Um exemplo é quando se repassa mentalmente uma notícia a ser dada. Não existe mentalmente divisão entre o comportamento interno e externo, e um influencia o outro.

Vygotsky termina o seucapítulo, em Pensamento e Linguagem, “As raízes genéticas do pensamento e da linguagem”, afirmando:

Isto nos leva a outro fato inquestionável e de grande importância: o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, isto é, pelos instrumentos lingüísticos do pensamento e pela experiência socio-cultural na criança. Basicamente, o desenvolvimento da fala interior depende de fatores externos: o desenvolvimento da lógica na criança, como os estudos de Piaget demonstraram, é uma função direta de sua fala socializada. O crescimento intelectual da criança depende de seu domínio dos meios sociais do pensamento, isto é, da linguagem.

 

Vygotsky e os níveis de desenvolvimento da aprendizagem

Pois bem, tomando como ponto de partida o fato de que a aprendizagem escolar nunca parte do zero (a aprendizagem da criança começa muito antes da aprendizagem escolar, pois tem uma pré-história), parece razoável pensar que esse processo difere de modo essencial do domínio de noções que a criança adquire durante o ensino escolar. Vygotsky mostra que aprendizagem e desenvolvimento estão intimamente ligados entre si desde os primeiros dias de vida da criança. Vale notar que a própria história da escrita na criança é uma habilidade que começa muito antes da primeira vez em que esta vai a escola e o professor coloca um lápis em sua mão e lhe mostra como formar letras.

Vygostsky chama nossa atenção para um fato empiricamente estabelecido e bem conhecido, a questão de que o aprendizado deve ser combinado de algum modo com o nível de desenvolvimento da criança, isto é, não acontecerá a aprendizagem se a criança não estiver num estágio de desenvolvimento em que esta possa ocorrer. Para que se descubram as relações reais entre o processo de desenvolvimento e a capacidade de aprendizagem não podemos nos limitar somente à determinação de níveis de desenvolvimento. (Vygotsky, 2001)

Em seus estudos, Vygotsky apontou para a necessidade de se olharem as investigações sobre aprendizado e desenvolvimento de maneira diferenciada. Apesar disso, o que percebemos é que ainda hoje boa parte das investigações, em particular psicológicas, acerca do aprendizado escolar mede o nível de desenvolvimento mental da criança a partir da resolução de determinados problemas padronizados. Partindo desse pressuposto, a conclusão que se chega é que a criança terá concluído determinada fase de desenvolvimento se capaz de conseguir resolver sozinha certos problemas. Dessa maneira, mede-se a etapa concluída do desenvolvimento da criança, não levando em conta a totalidade do processo[9].

Esse é o ponto. No fundo, sabemos que, com o auxílio de outra pessoa e até mesmo de ferramentas computacionais, qualquer criança pode fazer muito mais do que faria sozinha. A imitação e o aprendizado desempenham um papel importante, tornam possíveis novos níveis de conhecimento através de qualidades especificamente humanas. O que a criança é capaz de fazer hoje em cooperação, amanhã será capaz de fazer sozinha. Portanto,

o único tipo positivo de aprendizado é aquele que caminha à frente do desenvolvimento, servindo-lhe de guia; deve voltar-se não tanto para as funções maduras, mas principalmente para as funções em amadurecimento. (Vygotsky, 1987: 130)

Com isso queremos dizer que não podemos nos limitar somente à determinação de níveis de desenvolvimento se o que realmente desejamos é descobrir quais as relações reais entre o processo de desenvolvimento e a capacidade de aprendizagem. Com respeito ao desenvolvimento infantil, Vygotsky mostra, ainda, que dois diferentes níveis, o do desenvolvimento real e o do desenvolvimento potencial. O primeiro deles é o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabelecem como resultado de certos ciclos de desenvolvimento completados. Nos estudos do desenvolvimento mental das crianças encontrados na literatura especializada, geralmente admite-se que é indicativo da capacidade mental das crianças aquilo que elas conseguem fazer sozinhas. É o que, nos termos de Vygotsky, vai ser chamado de nível de desenvolvimento real.

O segundo é o nível de desenvolvimento potencial é o que autor define como aquelas funções ainda não amadurecidas, ciclos de desenvolvimento não totalmente completados, mas que estão em processo de maturação.

Entre o primeiro e o segundo níveis, encontramos a zona de desenvolvimento proximal, a qual segundo Vygotsky (1998: 112)

É a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.

A hipótese que levantamos aqui é de que seria exatamente através da zona de desenvolvimento proximal que poderíamos entender o processo interno de desenvolvimento e acentuar a eficácia e a utilidade da aplicação de métodos diagnósticos do desenvolvimento mental a problemas educacionais. Dito em outros termos, é partindo da compreensão da zona de desenvolvimento proximal da criança que poderíamos delinear o estado dinâmico de seu desenvolvimento, propiciando, assim, o acesso não somente ao que foi atingido através do desenvolvimento, mas também ao que está em processo de maturação.

Admitindo, pois, que o estamos corretos em nosso raciocínio, o que pretendemos nesse artigo é dar início a uma discussão crítica sobre o papel dos chamados softwares educacionais.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A idéia desse trabalho, conforme mencionado anteriormente, é investigar os softwares educacionais, destinados à fase de alfabetização, considerando quais os aspectos que estes possuem e se têm condições de interação com seus usuários, no caso a criança por volta dos 6 anos de idade. É necessário que essa análise seja detalhada ao observar de que maneira o software está conduzindo o aprendizado: se apenas reforça estágios de desenvolvimento superados ou instiga a criança a alcançar um novo estágio no seu desenvolvimento. Precisamos nunca perder de vista a maneira como estes softwares estão levando à criança a desenvolver seu potencial de leitura e escrita, se respeitam as maneiras diferentes de aprendizado, se estimulam as habilidades cognitivas das crianças e, acima de tudo, ofereçam a estas, situações para que possam utilizar seus novos conhecimentos para a solução de novos problemas e assim ajudá-las a atingir, sempre, um novo estágio de desenvolvimento. Fica claro que nossa investigação é verificar se os softwares possuem elementos que auxiliem à criança, partindo do nível de conhecimento real, a estabelecer, através da interação com o software ou outra pessoa, a superação deste nível. É o que Vygotsky chama de zona de desenvolvimento proximal.

 

CONCLUSÕES

Esperamos, com o desenvolvimento dessa pesquisa, conseguir subsídios teóricos suficientes para não somente avaliarmos alguns softwares educacionais destinados à alfabetizar, mas sim, através destes, desenvolvermos sugestões para um modelo de software dentro das teorias discutidas em nossa pesquisa.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

VYGOTSKY, L. S.. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. In: COLE, M. et al. (eds.; tradução José Cipolla Netto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

––––––. Pensamento e linguagem Tradução: Jefferson Luiz Camargo – 2ª ed. – São Paulo: Matins Fontes, 1987.

––––––; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Alexis N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Tradução Maria da Penha Villalobos. 7ª ed. São Paulo: Ícone, 2001.


 

[1] Lev Semenovich Vygotsky nasceu em 1896 em Orsha, Bielo-Rússia, e faleceu prematuramente, aos 38 anos, em 1934, vítima de tuberculose.

[2] Estaremos trabalhando apenas com conjunto restrito de software, cuja quantidade e critérios de seleção ainda estão em fase de determinação.

[3] O trabalho a que nos referimos é bastante recente. Começou há um pouco mais de 3 meses, devendo produzir ao seu final uma dissertação de mestrado a ser submetida ao programa de Mestrado em Letras, linha de pesquisa em Funcionamento dos Mecanismos Lingüísticos.

[4] Aqueles que mesmo o bebê, através do choro e do balbucio, consegue transmitir: fome, dor, frio, calor, abandono, etc.

[5] Como cada indivíduo vive sua experiência pessoal de modo muito complexo e particular, o mundo da experiência vivida tem que ser extremamente simplificado e generalizado para poder ser traduzido em signos que possam ser transmitidos a outros.

[6] É a experiência da criança com as propriedades físicas do seu próprio corpo e dos objetos à sua volta.

[7] Opera com orações subordinadas com palavras como porque, se, quando e mas, muito antes de aprender realmente as relações causais, temporais e condicionais.

[8] Nessa fase, a criança utiliza recursos tais como contar nos dedos, recorrer a auxiliares mnemônicos, etc.

[9] Na verdade muitas escolas (psicólogos, pedagogos e afins) ainda utilizam e valorizam estes testes padronizados, o de Q.I. por ex., onde apenas constatam o nível de desenvolvimento cognitivo do indivíduo, isto é, o que este consegue fazer sozinho, sem, muitas vezes, levar em conta o processo de desenvolvimento.