Sobre certavoz passiva
Ou

De
que tradição se fala
quando
se fala em tradição
?[1]

Helena Feres Hawad (UERJ)

 

A chamadavoz passiva sintética” (oupronominal”) tem sido um dos pontos mais problemáticos no ensino da gramática da língua portuguesa no Brasil. O problema reside, principalmente, no fato de que a abordagem da estrutura assim denominada como uma forma da “voz passiva não descreve adequadamente suas propriedades sintático-semânticas e, desse modo, entra em conflito com a intuição lingüística dos alunos falantes nativos do português brasileiro.

O presente trabalho discute essa questão, procurando demonstrar a inadequação da análise baseada na Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB). A discussão se desenvolve a partir de uma leitura crítica de diferentes compêndios gramaticais, tanto contemporâneos, quanto mais antigos, anteriores à NGB.

A voz passiva propriamente dita, denominada correntementeanalítica”, caracteriza-se, em nível sintático-semântico, por ter o paciente da ação verbal na função de sujeito e, em nível morfossintático, por construir-se como uma locução verbal formada pelo particípio do verbo principal e, tipicamente, pelo verbo auxiliar ser. Faz parte dessa caracterização a implicação de que somente verbos transitivos diretos (ou seja, que ocorrem, na voz ativa, com um complemento do tipo objeto direto) admitem a forma passiva. Além disso, fica implícito que a reversibilidade ativa-passiva é natural e automática para qualquer verbo desse tipo.

Postula-se, ao mesmo tempo, uma outra “reversibilidade”: entre as chamadasvoz passiva analítica” e “voz passiva sintética”. Esta última define-se pela ocorrência do clítico se junto a verbos transitivos diretos acompanhados de um SN com valor semântico de paciente da ação verbal. Tal SN é o que seria normalmente considerado o objeto direto de tais verbos. No entanto, a ausência de um SN com valor de sujeito/agente leva à formulação tradicional de que se tem, nesses casos, uma variedade de voz passiva, com o SN-paciente preenchendo a função de sujeito. Enfatiza-se, então, a “equivalência entre frases como (1a) e (1b), abaixo, e insiste-se na necessidade da concordância verbal com o suposto sujeito:

(1) a. Compraram-se livros novos para a biblioteca.

    b. Livros novos foram comprados para a biblioteca.

A inconsistência de tal análise tem sido apontada por estudiosos (cf. Bagno, 2000). de início, é necessário reconhecer que ela obscurece, por um lado, as diferenças sintático-semânticas entre as duas configurações ditas “voz passiva” e, por outro lado, as semelhanças entre a “voz passiva sintética” e a construção em que o clítico se ocorre com verbos transitivos indiretos ou intransitivos chamadasujeito indeterminado”.

Ou seja, em nome de uma suposta sinonímia, que é, quando muito, apenas parcial, aplica-se uma mesma análise formal a duas estruturas diferentes (procedimento que é, aliás, muito generalizado em nossa tradição gramatical). Contraditoriamente, são ignoradas outras sinonímias inscritas no sistema do português, que favoreceriam outras possibilidades de análise. Como observa Bagno (2000: 99),

Podemos perguntar por que Vende-se esta casa é “igual” a Esta casa é vendida e somente a isso? Por que não dizer que também é igual a Estão vendendo esta casa, Alguém está vendendo esta casa etc.?

Os seguintes traços comuns entre as construções com se referidas acima deixam de receber tratamento adequado:

a. O espaço sintático-semântico do sujeito não é preenchido;

b. O verbo é flexionado na terceira pessoa e acompanhado de se;

c. A interpretação semântica, em termos genéricos, é a indeterminação do ser a que se atribui o processo verbal.

Said Ali (1966a: 100) afirma que o paralelismo entre as construções com se é tão perfeito, que empregar análises diferentes, conforme o verbo seja ou não transitivo direto, seria utilizar dois pesos e duas medidas.

Os próprios compêndios de orientação tradicional refletem, por vezes, incongruências decorrentes da distinção entrevoz passiva” e “indeterminação do sujeito para as construções com se. Em Leitão (1995: 150-151), por exemplo, a frase (2a) ilustra a voz passiva sintética, enquanto a frase (2b) ilustra a indeterminação do sujeito:

(2) a. Amam-se poucas pessoas neste mundo.

    b. Ama-se a poucas pessoas neste mundo.

Fica claro, neste exemplo, que a distinção formal, baseada na transitividade do verbo, não tem qualquer contraparte semântica, ao contrário do que parece sugerir a terminologia tradicional, e se revela incoerente na medida em que o verbo de (2b) é tradicionalmente considerado transitivo direto (sendo a preposição opcional, empregada por razões estilísticas, formando o chamado “objeto direto preposicionado”) e, portanto, por definição, (2b) deveria ser um exemplo de voz passiva sintética – o que acabaria levando à incoerência de atribuir a função de sujeito a um termo regido por preposição.

Por outro lado, a “voz passiva sintética” tem duas diferenças formais em relação à voz passiva propriamente dita, que parecem mais relevantes e fundamentais que o traço formal comum – a transitividade verbal que tem justificado a identificação entre essas duas estruturas.

No português contemporâneo, a “voz passiva sintética não admite a ocorrência do agente da passiva, que ocorre com a voz passiva propriamente dita. Esse fato, que na abordagem tradicional parece gratuito, encontra explicação ao se admitir, conforme propõe Pimenta-Bueno (1979), que o clítico se elimina um dos espaços sintático-semânticos do verbo, impossibilitando seu preenchimento, mas conservando implícito o valor semântico do espaço assim marcado, exatamente como ocorre no caso do sujeito indeterminado.

Pimenta-Bueno (1979) estuda o emprego do clítico se como redução do número potencial de argumentos do verbo, no quadro da Teoria Padrão Ampliada da Gramática Gerativa, e integra num tratamento unificado não as situações aqui examinadas, como também as ocorrências dos tipos reflexivo, recíproco e intrínseco. O que a autora denomina “se impessoal abarca as construções tradicionalmente diferenciadas comopassiva sintética” e “indeterminação do sujeito”. Ambas são descritas como uma mesma estrutura sintático-semântica, ou seja, são geradas por uma mesma regra.

Na voz passiva propriamente dita, por outro lado, o preenchimento do espaço sintáticosujeito pelo termo com valor de “paciente não elimina o espaço semânticoagente” – com este últimovazio”, a frase admite a ocorrência de agente da passiva. Ou seja, o emprego do clítico se reduz a “valência” do verbo, subtraindo efetivamente um de seus argumentos, o que não ocorre na voz passiva propriamente dita.

Outra diferença entre as duas estruturas descritas como voz passiva é que a posição mais natural, ou menos marcada, do SN-paciente é, no casosintético”, após o verbo e, no casoanalítico”, antes do verbo – o que não é um dado desprezível ao se pretender atribuir a função de sujeito a esse SN no primeiro caso. Em compêndios contemporâneos de orientação tradicional (Bechara 1999, Cunha e Cintra 1985, Kury 1986, Rocha Lima 1980, Leitão 1995, Ribeiro 1993), em todas as frases fornecidas como exemplos de “voz passiva sintética”, o SN analisado como sujeito ocorre posposto ao verbo. O último dos compêndios citados chega a apresentar esquematicamente a ordemverbo transitivo direto + pronome apassivador se + sujeito como característica da “voz passiva pronominal” (Ribeiro 1993: 177). Também em Neves (2000), obra de orientação funcional, todos os exemplos desse tipo de construção apresentam o “sujeito em posposição ao verbo. Veja-se ainda o fragmento de Sousa da Silveira (1972) transcrito adiante. Isso permite questionar a atribuição da função de sujeito a tal SN, considerando-se que a anteposição ao verbo é a posição não-marcada (ou mais básica) para o sujeito em português. A questão da ordem nessas estruturas é assim comentada por Said Ali (1966a: 93):

(...) a posposição de um substantivo sujeito, obrigatória ou pelo menos usual, em oração principal que não é nem interrogativa, nem exclamativa, nem imperativa, nem intercalada, é uma impossibilidade no domínio das línguas românicas (...) E se primitivamente o substantivo foi de fato o sujeito, como parece ter sido junto a verbos transitivos, também nessa época andava necessariamente anteposto ao predicado; mas desde o dia em que a sua posição se fixou depois do verbo, fixou-se também a sua função de objeto.

Em geral, não é possível, nas construções com se, antepor o suposto sujeito ao verbo sem alterar o sentido da oração. Em (2), por exemplo, a anteposição resultaria em interpretação reflexiva ou recíproca:

(2)a. Amam-se poucas pessoas neste mundo.

    c. Poucas pessoas amam-se neste mundo.

A atribuição da função de sujeito ao SN em causa é incompatível com tal impossibilidade de anteposição. Além disso, não condiz com a freqüência cada vez menor com que falantes brasileiros mesmo cultos, e mesmo em registros mais tensos e na modalidade escrita – empregam a concordância verbal conforme tradicionalmente prescrita no caso da “voz passiva sintética”. Esse fato, constatado facilmente por observação informal, pode ser ilustrado pelas seguintes ocorrências:

(3) É assim que se constrói tanto obras como cidadania.

(Folheto educativo do Ministério do Trabalho encartado no jornal O Globo em 12/05/98)

(4) (...) é importante a estabilidade para que as coisas realmente funcionem, para que se tenha instituições eficientes no mercado de capitais e redução de spreads.

(Entrevista concedida ao Jornal do Brasil por Emílio Carazzai, presidente da CEF, publicada em 19/9/99)

(5) Considerou-se válidas as provas decorrentes de escuta telefônica.

(Documento emitido pelo Poder Judiciário, referente ao caso da empresa Lunus, de Jorge Murad, e exibido pelo Jornal Nacional em 15/3/02)

Muitos trabalhos têm reconhecido esse fato, como Bagno (2001), que apresenta várias ocorrências em que falantes cultos não efetuam a concordância conforme tradicionalmente prescrita, ou ainda Cavalcante (1999: 106-107), que menciona os seguintes exemplos encontrados em crônicas de Luís Fernando Verissimo:

(6) Veja-se os discursos de posse. (Jornal do Brasil. 3/1/99)

(7) Catita sabe que não se mata crianças, nem as dela nem as dos outros, por nenhuma razão. (O Globo. 26/2/99)

Seria possível supor (como fazem Possenti e Ilari 1992: 14) que a ausência de substantivo antes do verbo nesse caso determina a não-concordância. É essa a interpretação de Sousa da Silveira (1972: 219):

Ora, entre as construções em que o sujeito vem posposto ao predicado, as mais comuns são as de verbo na voz passiva sob a forma reflexa: daí o encontrarem-se alguns exemplos de verbo no singular e sujeito no plural, quando a voz passiva está feita com o pronome se.

Observa-se, no entanto, que a flexão de número do verbo haver impessoal, que também não se constrói com um substantivo à esquerda, ocorre com freqüência no português do Brasil, contrariando a prescrição tradicional (p.ex. houveram problemas, haverão dificuldades). Desse modo, a não-concordância verbal no caso da “voz passiva sintética” provavelmente se deve menos à ausência de um substantivo à esquerda, e mais à identificação sintático-semântica que os falantes brasileiros fazem entre essa forma e a indeterminação do sujeito, o que acarreta que o SN posposto não é, de fato, interpretado por eles como sujeito. Gomes (2000: 71) relata que alunos do Ensino Médio de um colégio particular do Rio de Janeiro justificaram sua dificuldade em realizar a concordância culta no caso da “voz passiva sintética” alegando identidade de sentido entre essa forma e a forma de “sujeito indeterminado”. Alguns falantes brasileiros cultos, em contextos muito formais, ainda observam a concordância verbal no emprego do clítico se com verbos transitivos diretos, por força da pressão normativa. Na escrita jornalística contemporânea, por exemplo, é raro que a concordância com o SN-paciente plural não seja observada, segundo constatação de Cavalcante (1999). A gramática normativa contemporânea do português poderia incluir essa situação entre os diversos casos reconhecidos de concordância facultativa.

Tudo indica que se trata de uma mudança em curso, com a convivência, no momento presente, de duas formas alternativas, sendo que a ocorrência da concordância perde terreno dia a dia. Said Ali (1966a: 96) observa que o português não realizou “o progresso das línguas irmãs” (francês, espanhol e italiano, que não aplicam a concordância verbal nas construções com o clítico se), implicando, assim, que a perda da concordância, nessas línguas, foi uma mudança histórica. É interessante acrescentar que, não obstante essa comparação com outras línguas românicas, o autor descarta a “explicação corrente na tradição prescritiva, segundo a qual a perda da concordância em português se deveria à influência francesa. Seu argumento é irrefutável: a concordância ocorre com menor freqüência entre falantes não-instruídos (comopintores de tabuleta”), que não têm qualquer contato com a língua francesa, mas é efetuada por intelectuais e literatos, conhecedores do francês. Enquanto muitos procuram explicar a falta da concordância nas ocorrências dessa construção, Said Ali considera que é a persistência da concordância em português que precisa ser explicada, e a atribui à influência de frases de verbo pronominal com sentido manifestamente reflexivo. Hoje, porém, como visto acima, tal persistência, que se deve à pressão normativa, encontra-se enfraquecida.

O caráter anti-intuitivo dessa regra de concordância é atestado por ocorrências de hipercorreção, que demonstram que o falante não reconhece diferença sintático-semântica entre verbos transitivos diretos, de um lado, e intransitivos ou transitivos indiretos, de outro, nas construções com se, como no exemplo abaixo:

(8) Não se tratam apenas de motivações para que a aula fique interessante. (Jornal do Brasil. 23/6/02. p.24)

Bagno (2001) registra algumas ocorrências desse tipo. Segundo Cavalcante (1999: 107), Nunes (1990) também apresenta exemplos de hipercorreção e afirma que a sobrevivência da concordância se deve à “renitência da gramática normativa”. Aliás, não pode passar despercebido o fato de que a insistência da tradição normativa (seja nos compêndios, seja na prática de ensino) sobre as “formas corretas” é, por si mesma, forte evidência de que as “formas erradas” correspondentes ocorrem com freqüência significativa e, do ponto de vista normativo, ameaçadora à estabilidade da língua padrão.

No domínio semântico, a justificativa para a análise tradicional é a pretensa sinonímia entre a voz passiva propriamente dita e a “voz passiva sintética”. Tal sinonímia não se verifica em inúmeros casos, como se pode constatar, por exemplo, comparando-se a frase (2a), citada acima, com sua “equivalente” em formaanalítica”:

(2) a. Amam-se poucas pessoas neste mundo.

d. Poucas pessoas são amadas neste mundo.

Naro (1976), citado por Cavalcante (1999: 18), observa que a sentença

(9)a. A mesma mulher não é amada duas vezes

é ambígua, podendo significar que uma determinada pessoa não ama a mesma mulher em duas ocasiões distintas, ou que, uma vez que uma determinada pessoa amou uma mulher, ninguém mais vai amar a mesma mulher numa segunda ocasião. A equivalente pronominal, porém, apresenta o primeiro desses significados:

(9)b. Não se ama a mesma mulher duas vezes.

Nesses casos, as supostas equivalentes apresentam sentidos obviamente diferentes. A rigor, porém, a diferença de sentido é perceptível mesmo nos exemplos correntemente empregados para ilustar a alegada sinonímia:

Tem-se dito que a nossa forma reflexiva se identifica com a voz passiva. Apesar das restrições que todos concedem, que são forçados a conceder, tenho a afirmação por leviana, a começar pelos exemplos banais com que a esteiam. Aluga-se esta casa e esta casa é alugada exprimem dois pensamentos, diferentes na forma e no sentido. Há um meio muito simples de verificar isto. Coloque-se na frente de um prédio um escrito com a primeira das frases, e na frente de outro ponha-se o escrito contendo os dizeres esta casa é alugada. Os pretendentes sem dúvida encaminham-se unicamente para uma das casas, convencidos de que a outra já está tomada. O anúncio desta parecerá supérfluo, interessando apenas aos supostos moradores, que talvez queiram significar não serem eles os proprietários. Se o dono do prédio completar, no sentido hipergramatical, a sua tabuleta deste modo: esta casa é alugada por alguém, não se perceberá a necessidade da declaração e os transeuntes desconfiarão da sanidade mental de quem tal escrito expõe ao público. (Said Ali 1966a: 98)

casos, ainda, em que a conversão de uma forma na outra resulta em frases inaceitáveis. É o que ocorre com o exemplo Não se dança Beethoven, comentado por Bagno (2000: 100), que não é reversível para ?Beethoven não é dançado. O mesmo se passa em

(10) – Posso namorar o papai ou meu irmãozinho?

Não, não pode. O papai é o namorado da mamãe, e irmão não se namora.

(Revista Meu Nenê. Ano 4. No 41. Setembro de 2001. Editora Símbolo. p.40)

Em resumo, o tratamento dado à “voz passiva pronominal com base na suposta sinonímia entre a estrutura frasal assim designada e a voz passiva propriamente dita não conta de distinções importantes entre as duas situações; ao mesmo tempo, a afinidade sintático-semântica não é levada em conta, tratando-se como fatos distintos a “voz passiva sintética” e a indeterminação do sujeito com o clítico se. Não é novidade, aliás, que a distinção pouco nítida entre os níveis de análise formal e semântico na gramática tradicional tem levado a inúmeros problemas dessa natureza. Ao se justificar a aplicação de determinada análise a uma forma com base na sinonímia entre essa forma e outra, acaba-se chegando a impasses que, no limite, inviabilizam a tarefa descritiva, conforme lembra Perini (1985), bem como Said Ali (1966a: 100):

Guinda-se inquestionavelmente um nome objeto à altura de nome sujeito com a troca, nem sempre hábil ou exata, de um ama-se (a alguém ou alguma coisa) pela forma é amado, assim como para o mesmo fim se transmuta da ativa para a passiva qualquer verbo transitivo acompanhado de seu objeto direto. Mas substituir não é analisar; e ou se há de fazer a análise das formas tais quais se apresentam, deixando de parte os possíveis equivalentes estilísticos, ou a gramática não existe.

No trabalho citado, Said Ali faz uma excelente análise da construção com o clítico se, articulando argumentos sincrônicos e diacrônicos para demonstrar que não se tem voz passiva nesse caso. Da leitura desse texto, cuja primeira edição é de 1908, pode-se inferir que a discussão é antiga em nossa tradição gramatical, e que a principal motivação para a postulação de uma “voz passiva sintética por alguns gramáticos teria sido o incômodo causado pela inexistência de um termo que pudesse assumir a função de sujeito nessa estrutura. É o que também se constata no capítulo referente aos verbos impessoais, no mesmo livro:

As dificuldades na análise destes casos [a) os verbos impessoais que exprimem fenômenos da natureza; b) as orações impessoais em que se emprega o verbo haver; c) as orações em que para não mencionar o agente empregamos o verbo acompanhado do reflexivo se] nascem entre nós não tanto dos fatos em si; resultam antes do estarmos sempre propensos a subordinar e amoldar todos os fatos gramaticais a certas doutrinas tradicionais estabelecidas a priori. Em vez de aceitarmos os fenômenos lingüísticos tais quais se apresentam, andamos geralmente a procurar fora da linguagem um termo reclamado por um princípio apriorístico. Fantasiamos possibilidades, socorremo-nos de sujeitos imaginários, fingimos a sua existência, ou então, sentindo-nos incapazes de analisar uma frase diretamente, substituímo-la por outra, lingüisticamente diversa, e analisamos a segunda. Em suma, não analisamos: sofismamos a análise. (Said Ali 1966b: 80)

Essedesconforto que a inexistência de um sujeito causa à “análise lógica” tradicional, muito calcada em critérios históricos e princípios filosóficos, pode ser constatado em compêndios gramaticais mais antigos, anteriores à NGB, conforme ilustrado pelos seguintes excertos:

O pronome se (...) serve para constituir:

(...)

3o A passividade pronominal:

[Seguem-se quatro casos, com especificações de estruturas sintático-semânticas.]

4o Sujeito indeterminado:

A) Sempre que, exprimindo indeterminação, não haja na phrase palavra adaptada à função de sujeito [Exemplos]

B) Sempre que, exprimindo indeterminação, o verbo seja de predicação completa e tenha objecto indirecto [Exemplos]

[Nota:]

Ao publicarmos as edições anteriores, tinhamos sentido necessidade de admitir o se como sujeito, pois, tendo a lingua a sua individualidade syntactica, não importa que o se provenha de sui, sibi, se que não possue nominativo, adaptado á funcção de sujeito.

(...)

Não o admittindo como sujeito, seremos obrigados a recorrer a subterfugios para explicarmos muitas phrases, taes como: vive-se, vae-se, precisa-se de, trata-se de, etc.

Alguns professores, sem minimo fundamento, reputam erroneas taes construcções, como si a grammatica não fosse o registro dos factos da lingua.

Além disso, todas as linguas têm um pronome monosylabico, de funcção subjectiva para exprimir o sujeito indeterminado.

Assim é que no Francez existe o pronome on, no Inglez one, no Alemão man.” (Maciel 1916: 302-304 – 2a ed. 1894)

 

Esta explicação [o pronome se como sujeito] não é destituida de senso, embora contraria á historia da lingua até ao latim, onde o se, caso obliquo, não poderia ser sujeito do verbo finito.

(...)

Não é pequena a difficuldade de analyse da passiva com se. É demasiada subtileza dizer que na phrase ‘Louva-se a Deus’ a palavra Deus não é complemento objectivo, e affirmar que a Deus é sujeito (com preposição!). Além disso, ‘Louva-se a Deus não significa queDeus é louvado’, e apenas queDeus é para ser louvado, é digno de louvor’, da mesma fórma ‘Vende-se casas’, não significa ‘casas são vendidas’, mascasas são para vender ou vendaveis’.

Do mesmo modo analysem-se fórmas comoAqui bebe-se vinho puro.’ – ‘Em Roma vive-se com pouco.’ – ‘A que horas se come?’.” (Ribeiro 1911: 220 – 16a ed.)

A NGB acabou por fixar a classificação de “voz passiva para os verbos transitivos diretos construídos com o clítico se, o que, no entanto, não parece ter-se dado sem polêmica, levando-se em conta Jucá Filho (1958). Nesse trabalho, o autor, tendo deixado a comissão encarregada da elaboração do anteprojeto da NGB, apresenta 132 restrições ao mesmo. Na restrição de número 112, intitulada ‘SE’ INDETERMINADOR, lê-se:

Eis aqui está uma palavrinha que escapou de sumir-se no abismoso bornal das Partículas & Locuções. Por um triz...

É a partícula ‘se’, tratada como indeterminadora de sujeito. Mas não podemos limitar-lhe a possibilidade sintática. Porque a verdade é que mais a usamos como indeterminadora de complemento da passiva.

O pronome ‘se’, deixando de ser reflexivo ou recíproco, adquiriu no Português a possibilidade de indeterminar uma das integrações do verbo.

Se o verbo tem três integrações, tocado pelo condão da partícula ‘se’, passa a ter duas:

Fulano deu conselhos aos meninos;

       Deram-se conselhos aos meninos.

Se tem duas integrações, contenta-se com uma:

Fulano aluga casas;

       Alugam-se casas.

Se tem uma integração, fica sem nenhuma:

Fulano dorme melhor aqui;

       Dorme-se melhor aqui.

Fulano precisa de auxiliares;

       Precisa-se de auxiliares.

Fulano é pai desde ontem;

       É-se pai desde ontem.

Nos dois primeiros casos, a partícula não indetermina sujeito: indetermina complemento da passiva. Nos outros é que indetermina sujeito.

(...)

Se compararmos a construção portuguesa com a castelhana:

Alugam-se casas;

Se alquilan casas por mí,

patenteia-se-nos o valor indeterminativo daquela que praticamos. Aliás, ainda no século XVI era possível dizer:

Alugam-se casas por mim.

Mas o que não podemos hoje expressar em tais frases é o complemento da passiva.” (pp.112-113)

Nesse fragmento, a descrição inicial do valor do se como indeterminador de uma das “integrações” do verbo é adequada, coadunando-se com a análise de Pimenta-Bueno (1979), citada acima. Porém, a fundamentação apresentada para interpretar o se como “indeterminador de complemento da passiva”, baseada em argumento de natureza histórico-comparativa, não pode servir, naturalmente, para justificar a adequação de tal análise ao português contemporâneo. O autor não apresenta justificativa plausível para a diferença de análise entre os dois primeiros casos exemplificados (com os verbos dar e alugar), de um lado, e os demais (com dormir, precisar e ser), de outro. A afirmação final – “o que não podemos hoje expressar em tais frases é o complemento da passiva” – seria igualmente aplicável ao sujeito. Além disso, o próprio argumento histórico é incoerente. Afinal, se no exemplo ilustrativo do uso do século XVI o clítico se coocorre com o “complemento da passiva”, é porque não é essa a “integração” do verbo que está sendo indeterminada.

Conclui-se, portanto, que a atual distinção feita nos compêndios gramaticais do português entrevoz passiva pronominal” e “sujeito indeterminado” é fruto de uma conjunção de fatores: em primeiro lugar, a exigência de que todas as frases tenham sujeito, em conformidade com os príncípios da “análise lógica”; em segundo lugar, a primazia conferida a argumentos históricos que, de fato, a construção com se foi, no passado, uma realização da voz passiva – e, finalmente, a confusão, generalizada em nossa tradição gramatical, entre os níveis formal e semântico de análise.

Aponta-se freqüentemente o “sentido (ou valor) passivo” das construções com se e verbo transitivo direto como justificativa para a referida distinção, mesmo em obras que propõem uma abordagem diferente da tradicional (p.ex. Neves 2000: 465). No entanto, o que se entende porsentido passivo nunca é explicitado – encontra-se, sim, nessas obras, uma descrição formal da “voz passiva”. Em última análise, tem-se uma tautologia: alugam-se casas é “voz passiva porque o “sujeito” é paciente; e casas é “sujeito porque a frase tem “sentido passivo”.

Considerando-se o significado como um contínuo, de modo que formas distintas podem assemelhar-se ou diferenciar-se, conforme o traço semântico tomado como referência, os sentidospassivo” e “indeterminado” apresentam, pelo menos, um traço comum. Assim, pode-se atribuir a construções passivas propriamente ditas, em muitas de suas ocorrências concretas, o mesmo valor semântico-pragmático atribuído pela gramática tradicional ao “sujeito indeterminado”:

Algumas vezes o verbo não se refere a uma pessoa determinada, ou por se desconhecer quem executa a ação, ou por não haver interesse no seu conhecimento. Dizemos, então, que o sujeito é indeterminado. (Cunha e Cintra 1985: 125)

Quando o falante “desconhece quem executa a ação ou quandonão interesse no seu conhecimento”, diversas alternativas formais estão disponíveis em português, nas diferentes variedades:

(11) a. Estão exigindo a apresentação da carteirinha de estudante no bandejão.

b. Alguém está exigindo a apresentação da carteirinha de estudante no bandejão.

c. Está-se exigindo a apresentação da carteirinha de estudante no bandejão.

d. A apresentação da carteirinha de estudante está sendo exigida no bandejão.

e. Tem gente exigindo a apresentação da carteirinha de estudante no bandejão.

f. Neguinho tá exigindo a apresentação da carteirinha de estudante no bandejão.

Ou seja, o “desconhecimento ou desinteresse sobre a identidade de quem executa a ação” é um significado, não uma forma. A tal significado correspondem diferentes alternativas de realização léxico-gramatical, entre as quais a voz passiva e o emprego do verbo na terceira pessoa do singular com o clítico se. O que se alega comosentido passivo nos casos em que o verbo é transitivo direto não é mais que um dos traços semânticos da voz passiva, comum às construções de se com outros tipos de verbos.

É interessante registrar, a propósito, que Said Ali (s/ data. pp.173-174) inclui sob a designação “sujeito indefinido tanto a construção com o clítico se, como a construção com verbo na terceira pessoa do plural e o sujeito representado por pronome indefinido, exemplificando com as seguintes frases: assassinaram o ministro; estão batendo à porta; morre-se de frio; alugam-se cadeiras; desistiu-se da empresa; alguém está batendo.

Não qualquer razão objetiva para sustentar que o significadosujeito indeterminado”, definido no fragmento supracitado de Cunha e Cintra, não ocorre também com verbos transitivos diretos. A descrição hoje corrente resulta numa situação de distribuição complementar, que um dos significados postulados para as construções com o clítico se – “indeterminação oupassividade” – ocorre nos contextos em que o outro não ocorre. Esse fato, por si, seria suficiente para colocar em dúvida a adequação de tal distinção.

Em síntese, o pressuposto de que a voz passiva propriamente dita e a construção com o clítico se são sinônimas é em parte justificado, pois as duas construções efetivamente partilham uma propriedade semântica. No entanto, tal pressuposto e, principalmente, a análise formal dele decorrente obscurecem as diferenças entre elas com relação a outras propriedades importantes, não-partilhadas.

Em termos mais gerais, constata-se que o que se denomina, hoje em dia, “gramática tradicional do português abarca, muitas vezes, somente uma parcela da tradição gramatical brasileira: a mais recente, posterior à uniformização estabelecida pela NGB. O contato com nossa tradição em sentido amplo, incluindo as obras mais antigas, leva a perceber que não nada de natural, óbvio ou consensual na análise da impropriamente denominada “voz passiva sintética”, tal como se apresenta amplamente difundida. Esse talvez seja um bom ponto de partida para reavaliar o lugar concedido à “tradição” no ensino atual da língua portuguesa.


 

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[1] Este trabalho é uma versão modificada de um capítulo de minha Tese de Doutorado (vide bibliografia).