A
militância
lingüística
de Gládstone
Chaves
de Melo,
meu
avô
Luísa
Chaves
de Melo
(UERJ)
Fui
convidada a
participar deste
Congresso
para
contar
como
era o
meu
avô, Gládstone
Chaves de
Melo,
em
família.
Não
preciso
afirmar a
grande
felicidade ao
saber dessa
homenagem
póstuma,
nem a
grande
honra de
ser
eu uma
espécie de
representante de
nossa
grande
família neste
evento.
Respondendo ao
convite
feito, vou,
aqui,
descrever
alguns
momentos de
nossa
vida
privada.
Vida essa
que,
conforme
aprendi
com
vovô, recebe
tal
nome
por
estar subtraída da
ação
pública, essa
sim,
digna de
louvor
para os
gregos, dos
quais herdamos
esses
dois
termos.
Quando,
portanto,
poderiam
eles
imaginar
que
algum
dia haveria
essa
inversão: o
privado
ser
tão
importante
quanto a
atuação
pública,
por
revelar
algo a
mais
sobre o
gênio de
cidadãos
notáveis,
sejam
eles
políticos,
pensadores
ou
figuras da
mídia?
Logo,
embora
eu esteja
em
um
congresso de
nacional de
Lingüística e
Filologia
não pretendo
explicar
nada, no
sentido
acadêmico do
termo,
mas
sim, de
acordo
com
sua
origem
etimológica,
aprendida
com
vovô,
abrir
caminhos
para
um
melhor
conhecimento
sobre
ele, ao
trazer a
público
cenas de
nossa
convivência
familiar.
Assim, se “plicar”
em
latim é
dobrar,
aqui ex-plico,
ou desdobro,
um
pouco de
nossa
intimidade.
Pequeno,
magro,
com
óculos
grossos de
aro
preto,
tiques e
manias várias,
sempre de
terno e
suspensórios,
vovô
era
um
ícone
em
nossa
casa.
Desde
pequena,
aprendi a
respeitar
aquele
homem, de
honestidade
exemplar,
que
fora
vereador e
havia
escrito
inúmeros
livros.
Sua
atuação
política,
embora desse
aos
meus
olhos
status
de
grande
importância,
não
me
impressionava
tanto
quanto a
autoria de
vários
livros.
Escrever
um
livro
didático-científico,
mesmo
que
eu
não soubesse
exatamente
sobre o
que se
tratava,
era
para os
meus
poucos
anos
algo
inacreditavelmente
grande,
um
feito
admirável,
um
atestado de
sapiência, reafirmado
pela
história
familiar,
muitas
vezes contada,
de
que
meu
avô
não fizera
faculdade de
Letras,
pois
em
entrevista
oral ganhara o
título
por “notório
saber”. Devo
confessar
que
não sabia,
exatamente, o
significado de
notório,
mas a
palavra
me parecia
pomposa e,
conseqüentemente,
o
título
também o
seria. Na
época, achava
que o
conhecimento
era
algo
pronto,
absoluto,
que estava nas
coisas.
Não
me ocorria,
então,
que
ele fosse
construído
através da
reflexão, da
pesquisa e da
experimentação.
Ou seja,
excluída a
literatura,
cuja autoria
nos
era revelada –
sabíamos,
por
exemplo,
que a poetisa
Cecília Meireles havia
escrito
Ou
isto
ou
aquilo
ou
que a
escritora Ruth
Rocha
escrevera
Dois
idiotas
sentados
cada
qual
no
seu
barril
–
era
como se os
livros
que usava no
colégio (e
não eram
muitos)
já nascessem
prontos,
tivessem
estado
lá
desde o
início dos
tempos,
não tivessem
sido
escritos
por
ninguém.
Conto
isso
não
para
falar de
mim,
pois
não sendo
eu
figura
pública,
pouco
interessam as
lembranças de
minha
infância,
mas
para
introduzir a
primeira das
características
de
vovô
que
desejo
apresentar.
Para Gládstone, o
conhecimento
não podia
ser
imposto ao
outro. O
aprendizado
só ocorria,
quando
era
descoberta
pessoal,
quando partia
da
indagação do
aprendiz.
Talvez, se
assim fosse
em
meu
colégio,
eu
não tivesse,
nas últimas
décadas do
século XX,
essa
impressão
substancialista do
mundo
que trazia
comigo.
Por
acreditar nessa
premissa,
meu
avô,
mesmo
em
família,
empreendia
diálogos
bizarros.
Certa
vez, uma
tia
minha chegou
em
casa contando
que
quase morrera,
pois o
motorista de
ônibus
era
um
louco, corria
feito
um alucinado,
freava de
repente,
mudava de
pista
sem
olhar os
outros
veículos,
jogava
seu
carro
sobre
outros
ônibus. Terminado o
relato, afirmou: "sorte
que
ele
era
um
bom
motorista".
Meu
avô,
prontamente,
respondeu: "Não,
ele
não
era
um
bom
motorista". E
ela: "era,
papai,
era
um
ótimo
motorista,
você precisava
ver
sua
destreza ao
volante".
Novamente
meu
avô negou: "ele
não
era
um
bom
motorista". Os
dois ficaram
assim
algum
tempo,
ele negando,
ela afirmando
a
qualidade do
motorista do
ônibus,
até
que
alguém de
fora
interveio: "ele
não
era
bom
motorista,
porque se
fosse
um
bom
motorista
não colocaria
em
risco a
vida dos
passageiros".
Meu
avô concordou
com uma
única
palavra – "óbvio"
– e deu o
assunto
por encerrado.
No
caso, havia
um
problema de
léxico: os
dois conheciam o
Português,
mas
cada
qual
tinha
um
entendimento
diverso
sobre a
expressão "bom
motorista". O
ruído na
comunicação,
contudo,
só
era
experimentado
por
minha
tia,
vovô sabia da
diferença de
conceito
em
questão e se insistia
naquele
diálogo de
surdos
não
era
porque queria
ser
chato –
muito
embora às
vezes
assim
parecesse a
seus
interlocutores
–
mas
por
querer
extrair a
resposta do
outro,
ainda
que
sob a
forma de
pergunta, e
não
impor,
simplesmente,
o
que sabia. A
curiosidade
era,
em
seu
entender, a
premissa
básica da
inteligência.
Sei disso
por
outra
história, da
qual sou
protagonista
indireta.
Desde
pequena
muito
perguntava a
meu
avô.
Primeiro
porque
me fascinava
idéia de
ele
conhecer a
origem das
palavras.
Adorava
quando
descobria o
que
vinha do
latim, o
que
vinha do
grego, o
que
era
germânico,
qual
palavra
era
tomada
diretamente ao
latim,
como
óculos,
digital e
hodierno,
cujas
matrizes
oculus, digitus e hodie tornaram-se,
com as
modificações do
falar ao
longo dos
anos,
olho,
dedo e
hoje. E
quando a
palavra
chegava a
nós
via
popular,
ele
exemplificava
com os
termos
equivalentes nas outras
línguas
românicas, explicando os
caminhos da
transformação do
uso, as
letras
que foram
caindo
ou sendo
substituídas
em
cada
palavra e
eu ficava
impressionada
com o
fato de
ele
conhecer tantas
línguas.
Por
isso,
sempre
que alguma
palavra soava
estranha,
perguntava a
ele
sua
origem.
Depois,
porque
com o
passar dos
anos, sabendo
ter ao
meu
alcance uma
sumidade
em
Filologia,
Língua
Portuguesa e
Filosofia
Clássica, a
preguiça
me levava a
recorrer a
ele, e
não aos
livros
ou
gramáticas,
quando
me deparava
com uma
questão
sobre
esses
assuntos. No
segundo
grau, na
faculdade, na
minha
prática do
jornalismo e
até
mesmo
durante o
mestrado,
inúmeras
vezes
telefonei
para
ele
para
perguntar: “como
é a
concordância
no
infinitivo
pessoal nessa
frase?”, “como
se pronuncia
palimpsesto?”,
“qual a
diferença
entre
escutar e
ouvir?”, “qual
a
concepção de
tempo
para Aristóteles?” etc.
Por
fim,
perguntava
muito
porque,
algumas
vezes,
pessoas
que
não tinham
acesso
direto a
ele,
mas sabiam de
meu
parentesco
encomendavam uma
pergunta, a
ser
feita na
próxima
reunião
familiar.
Explicado o
contexto,
passo à
cena a
ser narrada.
Um
professor de
Português do
colégio
encontrou
meu
avô num
congresso e
foi
dizer a
ele
que
tinha
dado
aula
para
suas netas,
Luísa e Mônica.
Ele
imediatamente
comentou: “ah,
sim, a Luísa é
muito
inteligente” e
como
nada falasse
sobre
minha irmã,
em
outra
oportunidade,
meu
professor contou a
ela
história e
concluiu dizendo
que
seu
prestígio
junto ao
vovô
era
pouco, ao
que
minha irmã,
sem se
fazer de rogada, emendou:
“é
porque
ela fica
ligando
pra
ele e fazendo
perguntas...”
Não sei
como
meu
avô agia
em
sala de
aula,
quem sabe
considerasse
que se as
pessoas
estavam
ali
significava o
desejo de
aprender.
Entre
nós
ou
entre
amigos e
conhecidos,
era
sempre
assim:
vovô
era
capaz de
manter,
indefinidamente,
essa
alternância
entre a
afirmação do
outro e a
sua
negação se o
interlocutor
não
perguntasse o
porquê
ou descobrisse
por
si
próprio o
equívoco.
Era
um
processo
quase
maiuêtico.
Ele
não queria
afirmar o
fato,
porque se o
fizesse as duas
identidades
permaneceriam
paralelas.
Nada seria
acrescentado ao
aprendiz: se
ele quisesse
saber,
sem
dúvida
perguntaria.
Conheço,
portanto,
vários
exemplos desse
tipo de
diálogo,
alguns dos
quais
presenciei.
Entre as
muitas
histórias,
estava a de
um
exame
oral na PUC. O
ponto foi sorteado e coube
ao
aluno
falar
sobre
Romantismo.
Como
vovô
percebesse
que o
aluno
nada sabia
sobre o
assunto,
perguntou:
–
Em
que
século foi o
romantismo?
–
Século XIX,
respondeu
prontamente o
aluno.
–
Em
que
ano começou e
em
que
ano terminou o
XIX?, continuou.
– No Brasil
ou
em Portugal?,
quis
saber o
aluno.
– Pode
ser no Brasil...,
continuou o
vovô, dando
trela.
Meu
pai lembra-se
que
um
dia chegou da
escola,
todo
animado,
contando
que a
professora
tinha
dito alguma
coisa.
Vovô negou: “não,
ela
não disse
isso”.
Meu
pai insistiu:
“disse, disse
sim”. Ficaram
nesse
jogo
até
que
meu
pai,
entre irritado
e magoado
por
ser tachado de
mentiroso, deu
a
deixa: “como
você sabe
que
ela
não disse se
você
não estava
lá?”. Foi a
senha
para
ele
responder: “porque
sua professora
jamais
cometeria
um
erro de
concordância
como
esse”.
Talvez
hoje
ele
não tivesse
tanta
certeza
em
negar a afirmação de
meu
pai.
Não resisto,
agora, a
contar,
aqui,
outra
anedota
familiar.
Passados
alguns
dias do
debate
final
entre Collor e
Lula na
disputa à
presidência da
República de
1989, houve uma
reunião de
família na
casa de
vovô. Foram
perguntar a
ele se
tinha
visto o
debate e
qual
sua
opinião
sobre o
programa. Ao
invés de
fazer
um
comentário
político,
vovô disse
apenas: “só
se provou a
falência da
escola
pública (fez
uma
pequena
pausa) e da
escola
privada”.
Enquanto
todos se
preocupavam
com os
rumos do
país, nas
primeiras
eleições
diretas
em
mais de vinte
anos –
meu
pai votava
pela
primeira
vez
para
presidente
junto
comigo –,
Gladstão (como
algumas
vezes
nos referíamos
a
ele
em
casa) estava
mais
interessado
com o
uso do
português
pelos
candidatos do
que
propriamente
com o
pleito
eleitoral.
Daí o
título de
minha
comunicação
hoje: a
militância
lingüística de Gládstone
Chaves de Melo
(espero
que
ele
me perdoe
por
ter escolhido
justamente
essa
palavra
tão execrada
por
ele: a
militância é
palavra
minha e,
talvez,
reflita nossas
divergências
políticas).
Vovô
era
um
homem
íntegro,
não
apenas no
sentido
figurativo de
ser
um
sujeito
honesto e de
bom
caráter,
sentido
que no Brasil
tornou-se o
mais
popular,
mas
em
sua
acepção
original de
alguém
que está
inteiro,
onde
quer
que esteja.
Em
nenhum
momento,
vovô
descansava da
Filologia, da
Lingüística
ou do
ensino da
língua.
Era
pesquisador e
professor
em
tempo
integral,
chegando, muitas
vezes, a
usar
como
exemplos
em
seus
livros,
frases ditas
dentro de
casa.
Sua militância
lingüística deixava-o
sempre
atento (e
preocupado)
aos
rumos da
educação no
país, às
mudanças da
língua e aos
usos
equívocos de
palavras
gramaticais.
As
palavras
gramaticais,
definidoras de
nossa
língua, deviam
permanecer inalteradas;
já as
palavras
vernáculas, definidoras do
nosso
estilo de
falar –
por
expressarem
idéias e
não alterarem
a
estrutura da
língua –,
podiam
ser transformadas,
criadas, reinventadas.
Por
isso, foi
ele a
única
voz
que ouvi
defender o ex-ministro do
Trabalho e da
Previdência
Social,
Antonio Rogério Magri (depois
soube
que Antonio
Houaiss e Evanildo Bechara
também vierem,
publicamente,
em
seu
socorro),
quando
ele afirmou
que a
caderneta de
poupança
era imexível.
"É
um
neologismo
vernáculo e,
portanto,
aceitável", disse à
época, afirmando,
inclusive,
que os
sentidos de
imutável
ou
imóvel seriam
de
outra
ordem e,
por
isso,
não poderiam
exprimir o
que o
ministro
queria
dizer.
Hoje, a
palavra foi
incorporada a
nosso
vocabulário, figurando
em
jornais
como
O
Estado
de S. Paulo, a
Folha
da
Tarde e
O
Dia,
ainda
que
acompanhada
por
aspas. O
neologismo,
reconhecido no
relatório da
Comissão
Acadêmica, foi
incluído no
Vocabulário
Ortográfico da
Língua
Portuguesa, publicado
pela
Academia
Brasileira de
Letras.
Se,
contudo,
era
um
defensor de
neologismos,
não perdoava
erros de
ortografia.
Em
sua
atuação na
câmara dos
vereadores,
além de
ter sido
revisor da
Constituição
do
Estado do
Rio de
Janeiro –
ainda
em
vigor –, contestava
projetos de
lei
mal
escritos, o
que levava
outros
vereadores à
exasperação.
Certa
vez,
vovô
pronunciou-se
contra
um
projeto de
lei
que propunha a
criação de
cinqüenta
bibliotecas
públicas na
cidade. O
vereador ficou
furibundo:
como
ele,
um
homem de
Letras podia
se
opor a
proposta desse
quilate?
Gladstão respondeu:
–
Primeiro,
Vossa
Excelência
não diz a
origem da
verba,
então
não há
como
saber se o
número é
adequado.
Por
que cinqüenta
e
não
cinco
ou trezentas?
Depois,
porque o
projeto
não pode
ser aplicado, uma
vez
que
Vossa
Excelência
nomeia
como
encarregados
da
execução da
lei e da
preservação
das
bibliotecas
profissionais
graduados
em
curso
inexistente.
–
Claro
que existe,
me admira
Vossa
Excelência
não
conhecer a
graduação
em
bibliotecomania.
–
Não existe
tal
curso.
Existe,
não existe.
Aquela
discussão
cujos
moldes
já conhecemos
se estendeu
por
alguns
instantes,
até
alguém
soprar no
ouvido do
relator
que o
curso
era de
biblioteconomia
e
não
bibliotecomania.
–
Mas,
Vossa
Excelência
está fazendo
caso de
um
erro ortográfico?
–
Ortografia na
pronúncia?,
retrucou
vovô
ironicamente.
O
pesquisador
Gládstone
Chaves de Melo
era
extremamente
rigoroso. Se identificasse
a
possível
relação
entre
dois
vocábulos, o
primeiro
antigo e o
segundo
mais
moderno,
mas
não
encontrasse
um
registro
que
comprovasse o
caminho
intuído, desconsiderava a
descoberta.
Quem leu
A
Língua
do Brasil sabe disso. Quantas assertivas
ele derrubou
por
verificar
falhas na
pesquisa
ou
nos
conceitos?
Papai
conta
que chegou
em
casa
um
dia, dizendo
ter aprendido
com
um
colega
como o
termo
grego equus,
que deu
origem
em
português a
eqüestre,
teria
feito
surgir a
palavra
cavalo.
Depois de
desfiar a
longa
lista de
termos
associados,
ouviu de
vovô: “Seu
amigo é
muito
bom de
imaginação,
mas
péssimo de
lingüística.
Cavalo vem de
caballus,
palavra
latina
para
pangaré”.
Em
casa,
meu
avô
era
um
homem
calado,
um
tipo
bem
mineiro,
daqueles
que
mais ouvem do
que falam.
Contribuía
para
isso,
talvez, o
fato de
ele
não
gostar de
muito
barulho,
coisa
difícil
para
quem teve
sete
filhos e
quinze
netos. As
reuniões
familiares
eram
sempre uma
balbúrdia, e
vovô, de
algodão no
ouvido, tremia
quando o
grito de uma das
crianças
reverberava
pela
sala.
Contribuía
também o
fato de
ele
quase
não
precisar
falar,
pois vovó Cordelia,
amorosa
como
só
ela, estava
sempre
por
perto
para
falar
por
ele.
Não
que
ela falasse
demais, ao
contrário,
mas
tinha
um
carinho
todo
especial
para
cuidar dele,
antecipar
seus
desejos,
adivinhar
seu
pensamento e
para
nos
receber,
acarinhar,
conversar.
Vovô muitas
vezes,
portanto,
parecia à
parte,
apesar de
estar
ali,
atento e
vez
por
outra
soltar
um
petardo,
frase
definitiva,
pela
sabedoria
ou
pelo
humor
que
encerrava.
Vovô
era
calado,
mas
tinha
grande
senso
histriônico.
Seu
humor
manifestava-se,
contudo, de
forma
assaz
peculiar.
Gargalhar
era
algo
que
desconhecia,
quando
ria,
ria
baixo,
quase
sem
fazer
som,
tão
silenciosamente
que às
vezes,
só a
contração dos
músculos da
face
denunciavam a
risada.
Não perdia,
entretanto, a
oportunidade
de
fazer
um
gracejo,
mesmo se
seu
interlocutor
não tivesse
condições de o
entender.
Assim ocorria
com
meu
irmão
caçula.
Sempre
que Vicente ia
à
casa do Cosme
Velho,
vovô pegava
uma
edição de
Os
Lusíadas
em
japonês,
afirmava
saber
ler os
ideogramas e
começava: “quer
ver? As
armas e os
barões
assinalados,/
Que, da
occidental
praia
lusitana,/
Por
mares
nunca de
antes
navegados...”.
Quando
ele começou
com a
brincadeira,
contudo,
Vicente
era
muito
pequeno,
estava
longe de
aprender a
ler e
não devia
sequer
saber o
que
vinha a
ser
japonês
ou
ideogramas.
Era
mais
para
ele
próprio se
divertir do
que
para o
garoto,
que olhava
espantado
tudo
aquilo.
Seu
peculiar
senso
de
humor
e
sua
agilidade de
raciocínio
levavam-no a
produzir,
com
uma
seriedade
inabalável,
blagues
dignas de
programas
humorísticos. Vovó contava
que,
em
viagem
de
navio,
usava uma
corrente
imitando
pérolas,
mas
era
uma
bijuteria
barata,
pouco
trabalhada.
Um
italiano,
para
ser
gentil,
elogiou o
colar
e perguntou se eram de majorca.
Vovô,
sem
perder
tempo,
exclamou: “Não,
são
de Cascadura”. Ao
que
o italiano,
sem
conhecer
o Brasil, emendou: “mas
as
pérolas
de majorca
são
de
casca
tropo
duras”.
Outra
diversão
pessoal
de
vovô
era
brincar
com
os
fonemas
das
palavras.
Em
uma
papelaria
ou
farmácia
pedia
um
“André Lopes”: “um
André Lopes de cibalena,
por
favor”.
O
candidato
de
um
concurso
era
sempre
o “cão
didático”.
Acho
que
nunca
na
vida
falou América
Latina,
que
era
sempre
chamada
“América
Latrina”,
numa
pilhéria
política.
Para
perguntar
o
preço
de alguma
coisa
em
alemão
–
vovô
foi várias
vezes
à Alemanha,
para
participar
de
congressos
–, dizia rapidamente: “viva
Afonso
Costa”
(was kostet es?).
Quando
foi
adido
cultural
em
Portugal, no
início
da
década
de 1960, chamava o
embaixador
do Brasil, Bolitaut
Fragoso,
de Beatle,
não
apenas
pela
semelhança
fonética.
Bolitaut
era
completamente
careca
e os
músicos
dos Beatles
conhecidos
por
suas
cabeleiras.
Garantem
que
o
embaixador
nunca
percebeu a
ironia.
Outra
história
que ilustra
bem essa
característica da
personalidade
de
vovô é
mais uma das
muitas – e
impagáveis –
anedotas dos
tempos da
Câmara.
Como
um
vereador
tivesse
dito,
em
plenário,
respondendo a uma
contestação de
Gládstone,
que
tráfico de
influência
era
algo
normal,
um
fato
social
que existia
em
toda
parte,
vovô preparou
um
projeto de
lei,
intitulado ISTICA:
Imposto
sobre
Tráfico de
Influência e
Corrupção
Administrativa.
O
projeto foi
redigido
em
detalhes,
com
artigos,
parágrafos,
alíquotas
previstas
para
cada
tipo de
ação. O
primeiro
preâmbulo
dizia
algo
como:
“partindo da
constatação de
que o
tráfico de
influência e a
corrupção
administrativa
são
fatos
sociais,
movimentando
financeiramente
a
sociedade, e
que cabe ao
Estado
cobrar
tributos das
atividades
econômicas lucrativas, propõe-se a
criação do
ISTICA”.
Quando
vovô
encaminhou o
projeto
para
votação,
criou-se uma
celeuma na
câmara. Queriam
cassar o
mandato dele e
talvez
isso de
fato tivesse
ocorrido se a
revista
norte-americana
Times
não tivesse
explicado a
situação, numa
reportagem
cuja
manchete
era “Big
joke in the golden cage”.
Mais uma
anedota
que reafirma a
integridade de
meu
avô
nos
dois
sentidos
já
mencionados.
Vovô
não
diferenciava
lugares.
Não havia,
para
ele,
atitudes
apropriadas
para
um
ambiente e
inapropriadas
para
outro. O
que
ele
era,
era
em
toda
parte. As
coisas nas
quais
acreditava, eram ditas
ou
feitas,
independente de
quem fosse o
interlocutor e
de
quais as
conseqüências
do
ato.
Sua
concepção
escolástica
de
mundo
fazia o
acessório
ser,
necessariamente,
secundário.
Para
ele,
só
o
substantivo
importava.
Por
isso,
na
época
em
que
era
adido
em
Portugal, vestia o
mesmo
terno
fuleiro,
usado no
dia-a-dia,
em
recepções
diplomáticas. Na
primeira
vez
que
isso
aconteceu, uma
tia
minha
repreendeu-o: “mas
papai,
você
vai
com
essa
roupa?”.
Vovô
respondeu: “Se
eles
estão
me
convidando
pelo
meu
terno,
não
me
convidarão
mais,
o
que
não
me
fará
falta;
se for
pela
minha
conversa,
o
terno
não
fará
diferença”.
Em
sua
atuação na
Câmara,
vovô
era de uma
assiduidade
absoluta,
que incomodava
muitos de
seus
colegas,
segundo
Ledo Ivo,
em reportagem
para a
revista
Manchete,
publicada
em
abril de 1955.
Certa
vez, acometido
por uma
doença
qualquer,
precisou
faltar
dois
ou
três
dias.
Quando recebeu
seu
salário, viu
que
não tinham
sido descontados os
jetons
relativos aos
dias
em
que esteve
ausente.
Naquela
época, o
pagamento
era
feito
em
dinheiro e
entregue num
envelope
fechado.
Sem
fazer
alarde,
calculou a
diferença e
devolveu o
dinheiro
para o
departamento de
recursos
humanos. A
moça do
caixa, assombrada,
afirmou: –
Mas
vereador,
eu
não tenho o
que
fazer
com
esse
dinheiro,
não existe
mecanismo
legal
para
sua
devolução aos
cofres
públicos...
– O
que a
senhora vai
fazer
com
esse
dinheiro
não
me interessa,
comigo
não ficará
porque
não
me
pertence
por
direito.
A
devolução
de
parte
de
seu
ordenado
aos
cofres
públicos
virou
constante
quando
foi
aprovado,
na
Câmara,
um
aumento
do
salário
dos
vereadores
pela
expressiva
votação
de 49 a 1.
Como
era
contra
o
aumento,
por
achá-lo
moralmente
condenável, devolvia
todo
mês
a
diferença
do
seu
ordenado.
Tinha
sete
filhos
e levava uma
vida
apertada,
mas
rejeitava o
aumento
por
uma
questão
ética.
Isso
nunca
saiu na
imprensa
e
pouca
gente
soube.
Não
havia,
portanto,
nenhuma
intenção
promocional
por
trás
do
ato.
Tratava-se de uma
ação
ética,
no
sentido
kantiano
do
termo:
sem
ser
movido
por
interesse
algum,
transformou
sua
liberdade
em
dever.
Em
sua militância
lingüística,
além de
dar
aulas e
escrever
livros,
nos ensinou a
respeitar e a
amar
nossa
língua
materna.
Meu
pai (e
provavelmente
seus
irmãos)
aprendeu,
com
meu
avô, o
valor da
integridade
moral e da
devoção à
língua –
lembro-me
que
quando pedia
alguma
coisa a
meu
pai “para
mim
fazer”,
ele, a
exemplo de
vovô, negava o
pedido,
pois “mim
não faz
nada” –, e
isso
nos cobrava
diariamente a
mim e
meus
irmãos,
como
ainda
cobra de
meu
irmão
caçula.
De
um e de
outro herdei o
cuidado
com o
Português.
Com
papai e
com
vovô, fui
aprendendo a
amar essa
língua e a
achá-la
mais
bela
dentre as
línguas
românicas. Lembro-me
até
hoje o
orgulho
experimentado,
quando ouvi de
meu
avô
que
saudade
não
tinha
tradução:
era,
então, uma
palavra
só
nossa. E,
para
mim
que
tinha perdido
meu
outro
avô na
primeira
infância,
era uma
palavra
fundamental,
pois expressava
um
sentimento
que reconhecia
em
mim.
Não conseguia
imaginar
como
outros
povos
resolviam o
problema de
sentir
saudades,
mas
não
ter
como a
expressar.
Foi,
talvez,
para
nos
prevenir da
pior
saudade –
aquela
que vem
misturada
com o
arrependimento
por
não
termos
aproveitado
suficientemente
a
pessoa
quando
viva –
que,
eu e
meu
irmão,
Cristiano, pedimos
para
vovô
nos
dar
aulas de
Português.
Por
seis meses,
íamos todas as quartas-feiras
pela
manhã à
casa do Cosme
Velho. Pude,
então,
conhecer
sua
grande
vocação
para o
magistério.
Vovô,
com
quase 80
anos,
aposentado há
muito,
recebia-nos
com
entusiasmo.
Dava-nos
fotocópias de
textos de
autores
clássicos,
como Camões
ou
padre Antonio
Vieira, e, se
não levávamos
dúvidas de
português,
lia os
textos
conosco,
pegando
cada
palavra e
mostrando
como
ela
tinha sido
formada.
Pena
que,
depois de
seis meses,
ficou
difícil
continuar
com
esses
encontros.
Meu
irmão, recém
formado
em
Direito, foi
contratado
por
um
grande
escritório e
pouco
tempo
tinha.
Eu, às
voltas
com
meus
prazos do
mestrado,
exilei-me
em
Teresópolis,
em
um
apartamento de
vovô,
para
escrever
minha
dissertação.
Dessa
época,
contudo,
guardo na
memória a
alegria de
vovô ao
ensinar e o
horror
que
tinha às
regras
inventadas, às “gramatiquices”,
como chamava.
Como
exemplo,
conto uma
última
história.
Em
aula
sobre
colocação de
pronome,
vovô
nos ensinou
que
em
frases
negativas,
ocorria a
próclise.
Imediatamente
repetimos a
regra
aprendida no
colégio: “ah,
sim,
porque o /não/
atrai...”.
Meu
avô soltou
um
pequeno
riso,
entredentes, e disse: “isso
é uma
fantasia, a
palavra
não é
imantada”.
Com
isso,
encerro
meu
depoimento
sobre
vovô. Espero
que
minhas
declarações
tenham resgatado a
acepção
original da
palavra –
aprendida
com
ele, nessas
poucas
aulas – de
tornar
claro,
clarificar,
de-clarar o engajamento
lingüístico e
a
integridade de
meu
avô.
Integridade
que o fez
cortar o
segundo /l/ do
seu
sobrenome e do
de
seus
filhos
mais
novos,
pois, Melo se escreve
com
um
único /l/ e a
assinar o
próprio
nome
com
acento,
por se
tratar de uma
palavra
proparoxítona.
Também
meu
nome ganhou
acento e /s/
em
vez de /z/
por
causa da
revisão de
vovô. E, na
infância,
lutava
pelo
meu
acento,
como
quem corre
atrás de uma
bandeja de
brigadeiros.
Era
como se aquela
Luiza,
sem
acento e
com /z/
não fosse
eu,
afinal o
meu
nome
tinha a
grafia
correta.
Agradeço, então, a Gládstone Chaves de Melo por
ele ter me deixado, além do nome, a certeza de que saber também é sabor e ter
conhecimento nada mais é do que sentir o gosto da coisa.