A
ORIGEM DA
LINGUAGEM
Gladstone
Chaves
de Melo (UFF)
Para
ser a
comunicação
verbal o
mais
cotidiano e
constante
fato de
cultura e
por
nos afazermos
a
ele
como à
respiração e à
ingestão de
alimentos,
só
muito
raramente e
em
raros aparece
a
indagação
por
que?
E
como?
Começaria
eu
por uma
distinção
que
não se costuma
fazer: Fala-se na “origem
da
linguagem”,
quando se
queria
falar na
origem,
remota e
primeira, das
línguas.
Sim,
porque
linguagem
é a
palavra de
duplo
sentido,
nenhum dos
quais adequado
à
nossa
indagação de
hoje. Pode
significar a
faculdade
que o
homem tem de
comunicar-se
intencionalmente
e
por
meio de
sinais. Neste
caso, a
origem do
homem,
porque se
trata de uma
propriedade
essencial à
espécie:
todos os
homens têm e
sempre tiveram
essa
faculdade.
Significa
também a
palavra
qualquer
manifestação
exterior
realizada
por
sinais, sejam
eles gestuais,
fisionômicos
ou
construídos,
como as
fogueiras
significantes,
o
telégrafo de
Morse, os
atuais
semáforos
para
governar o
trânsito nas
cidades
maiores, a
dupla
comunicação
dos surdos-mudos,
através de
gestos
que significam
letras
ou dos
gestos
simbólicos
por
eles
criados e
que permitem
uma
conversa
quase
tão
rápida
quanto a
nossa.
Neste
segundo
sentido da
palavra
linguagem,
ela
vale
como
elaboração
concreta da
faculdade, de
acordo
com a
indústria
humana,
mais
remota
ou
mais
recente.
O
problema
que de
fato se
nos põe é o da
origem
primeira de
um
tipo de
linguagem
articulada,
porque se
realiza
por
meio de
sons
ou
ruídos
vocais,
produzidos
pela
laringe e
modificados na
caixa de
ressonância,
fixa
ou
móvel,
que produz,
num
caso, o
timbre
individual e,
noutro
caso, os
diversos
fonemas
que constituem
o
sistema
sonoro do
idioma
tal
ou
tal: /a/, /e/,
/i/, /o/, /u/, /b/, /t/, /ç/ etc.
Vemos,
pois,
que a
língua é uma
espécie – e a
mais
importante –
do
gênero
linguagem,
cuja
origem tem
sido
preocupação de
filósofos e
curiosidades
da antigüidade, da
Idade
Média e dos
tempos
modernos.
Os
lingüistas
geralmente
não se ocupam
do
problema,
porque foge de
suas
cogitações. No
século
passado
estiveram
eles aplicados
em
estudar,
através da
comparação, os
grupos de
línguas
afins,
resultados
históricos de
uma protolíngua
muito
antiga e
já
desaparecida.
Essa
atividade
prosseguiu,
com
menos
fervor, no
primeiro
quartel deste
século, tendo
os
lingüistas,
daí
por
diante,
aplicado
seu
esforço e
erudição
em
descrever
estruturalmente a
língua x
ou y,
descrição
tão
minuciosa
quanto
possível e
usando uma
nomenclatura
técnica
bastante
complicada e
inacessível aos
leigos.
O
lingüista
trabalha
com
documentos,
escritos
ou
falados, e,
evidentemente,
da
primeira
língua
que o
mundo se usou
não ficou,
nem pode
ter ficado
qualquer
documento.
A comparação,
tão
fecunda no
século
passado e
nos
começos deste,
chegou a
estabelecer diversas
famílias
de
línguas,
resultados
históricos e
variados de
um
tronco
remoto,
chamado
pelos
alemães
Ursprache.
Com
maior
ou
menor
rigor descobriram diversas
famílias,
como a
indo-chinesa, a dravídica, a malaio-polinésica, a uraloaltaica, a indo-européia,
a
banta, a
camítica, a
semítica, a
sudanesa e os
grupos
americanos.
O
eminente
glótico
italiano Alfredo Trombetti foi
defensor
acérrimo do
monogenismo
lingüístico e
pensava
que,
com os
dados
atuais, se
poderia
chegar à
existência da
Ursprache,
que estaria na
origem de
todos os
idiomas
atualmente
falados (mais
de
dois
mil,
fora os
dialetos).
Defende a
tese no
seu
livro
Elementi di Glottologia (Bolonha, 1923),
que,
apesar de
chamar-se Elementi, tem 751
páginas,
fora os
mapas.
Das diversas
famílias
aqui
enumeradas, a
mais
conhecida e
mais estudada
é a indo-européia,
que apresenta
documentos
muito
antigos e
que
cobre uma
grande
área,
desde a
Índia,
passando
pelo Afganistão, a Pérsia
e o
Mar Cáspio,
até
praticamente
toda a Europa,
exceptuadas
apenas
três
línguas, o
basco, o
húngaro e o
finlandês,
estas duas últimas aparentadas,
embora
separadas e distanciadas a
talvez
dois
mil
anos.
Esse
indo-europeu
comum,
que teria
existido há
mais de
quatro
mil
anos,
com o
tempo e
com a
expansão, se
desgarrou
em 12
grupos, dos
quais manam
sobgrupos e, daí,
dezenas de
línguas
diferentes: o
hitita,
falado
outrora na
Capadócia e
desaparecido há
cerca de
dois
mil
anos, o
tocário,
também
desaparecido,
falado
em Koutchua
até o
século VII de
nossa
era, e o
ramo
indo-iraniano,
que se
desdobrou
em índico e
iraniano. Saltando
por
etapas
intermédias, está
ele
hoje
representado
por
mais de
cem
línguas,
que se falam
quase todas
dentro dos
domínios
políticos da
Índia (onde
se ouvem
mais de 200
idiomas
filiados
ou
não ao
indo-europeu, ao dravídico
e ao monkmer).
Aí se destaca,
pela
importância
cultural, o
sânscrito,
fixado
pelo
admirável
gramático
Panini,
cuja
obra
só
agora vem
sendo
conhecida e
que viveu no
século IV a.
C. O
sânscrito é
uma
língua
clássica, de
vasta
literatura e
que
até
hoje funciona
como
língua
erudita de
comunicação
entre os
pandites da
Índia,
exatamente
como o foi o
latim na
Idade
Média. Poderíamos
fazer
referência,
entre as
línguas
atuais, ao
Bengali (na
região de
Calcutá e do
delta do
Ganges),
em
que estão as
obras do
poeta
universal Rabindranath
Tagore.
Do
ramo
persa
ou irariano,
provieram e provêm diversas
línguas,
que se
estendem dos
vales do Pamir
ao Curdistão e do Balochistão e Afganistão ao
Mar Cáspio.
Delas a
mais
importante é o
persa,
que vem de
longe e
que
atualmente é
escrito
em
alfabeto
árabe,
como,
aliás,
acontece
com
quase todas as
línguas
modernas do
grupo. A
par da
influência na
escrita
contribui
largamente o
árabe
para a
língua
persa de
hoje,
cujo
vocabulário é
já
talvez
menos iraniano
que
semita.
Dos
ramos
que
floresceram e se multiplicaram na Europa, cabe
referir
em
primeiro
lugar (pela
ordem
geográfica) o
grego-comum,
idioma dos
antigos
helenos.
Quando se
toma
contato
histórico
com a
língua,
já está
ela
diversificada nas diversas
regiões, de
modo
que se podem
classificar os
falares
em
quatro
grupos
dialetais,
jônico-ático,
aqueu,
eólico e dórico. Das
línguas
antigas, destaca-se,
como
todos sabem, o
grego
clássico,
atico,
veículo de uma
importantíssima
literatura e de
que se
serviram Platão e Aristóteles. O
grego
atual,
ou
romaico,
está
para
esse
grego
clássico,
mais
ou
menos
como o
italiano
para o
latim.
Teria havido uma
unidade
ítalo-celta,
cedo repartida
em
itálico e
celta,
teoria de
Meillet,
abalada
por
Marstrander. O
traço
comum seria o
genitivo
em –i.
De
qualquer
modo, do
ramo
itálico
promanam o
latim, o osco
e o umbro, sendo o
primeiro, a
princípio, a
língua de Roma
e
arredores.
Todos conhecem
o
impressionante
destino dessa
pobre e
tosca
língua de
pastores:
com o
tempo e a
expansão da
urbs
veio a
ser
falado
em
toda a România
Ocidental e
hoje está
representado
por
cerca de
quarenta
línguas e
grandes
dialetos,
entre os
quais
figura o
nosso
português, ao
lado do
castelhano, do
italiano, do
francês e do
romeno (que
ainda tem
vestígios de
declinação e
usa o
artigo
posposto ao
nome),
para
só
falar nas
línguas de
civilização,
isto é,
correspondentes
a
unidades
políticas
autônomas. O
celta,
mal
conhecido no
seu
aspecto
antigo, se
triparte
em gaulês,
britônico e
gaélico. Do
britônico o
atual galês,
do
País de Gales
na Inglaterra, e o
bretão, usado nas
zonas
rurais da
Armórica Francesa. Pertencem à
feição
gaélica a
língua
local do
interior da
Irlanda e do
interior da
Escócia.
Do
antigo
germânico
procedem várias
línguas
atuais,
excluído o
gótico e
seus
dialetos,
hoje
língua
morta. Do
germânico
setentrional temos
hoje o sueco,
o norueguês e o dinamarquês. Do
germânico
ocidental,
consideravelmente
menos
uno
que o
nórdico
procedem
vários
fatores e
línguas,
entre as
quais se
destacam o
alemão
culto, o
neerlandês,
o frisão e o ferroês.
No
interior da
Alemanha, a
língua é
muito
dialetada, pertencendo os
diversos
falares ao
chamado baixo-alemão, Neider-Deutsch. O
alemão
culto é do
tipo
alto-alemão, Hoch-Deutsch e provém de
falares
francônios,
que receberam
sua
feição
literária na
versão de
Lutero,
que,
sob
este
ponto-de-vista, se assemelha a Dante,
para o italiano
culto.
Este se opõe a
grande
quantidade de
dialetos,
muitos dos
quais
são
verdadeiras
línguas,
como o
napolitano e o barês.
O
inglês formou-se na
segunda
metade do
século XIV,
com
predominância
de
elementos do
centro do
país e
que, da
cidade de
Londres, se irradiou
por
toda a
ilha, a Irlanda e as
ilhas
menores
circunvizinhas.
Pela
colonização, estendeu-se aos
Estados
Unidos, Canadá Austrália,
Nova Zelândia
e,
como
língua-segunda, ao Egito,
Índia e África
do
Sul,
sem
falar nas
jovens
nações
africanas
que o adotaram
como
língua
nacional.
Depois da
segunda
guerra mundial
adquiriu
grande
prestígio e
alçou-se à
condição de
língua
universal,
apesar da
extrema
dificuldade da
pronúncia e da
disparidade
total
entre a
feição
falada e a
feição
escrita.
Para se
ter uma
idéia
concreta de
como as
línguas se
modificam no
tempo, peço
licença
pra
transcrever
aqui
três
versos do
poema
Beowulf,
que
remonta ao
século VI,
mas
que foi
escrito
muito
depois:
Gethenc
nu, se maera
maga
Healfdenes,
Snofra fengel,
nu ic eom
sidhes fus,
Gold-wine gumena, hwaet wit geo spraecon:
(vs. 1474-76)
Traduzindo: “Lembra-te
agora, ó
ilustre
filho de
Healfdene,
chefe
sábio, –
agora
que
eu estou
pronto
para
partir,
generoso
amigo dos
homens –, do
que
nós
dois dissemos
para
partir,
generoso
amigo dos
homens-, do
que
nós
dois dissemos há
pouco”.
Com
um
pouco de
esforço,
poderemos
aí
descobrir alguma
coisa do
inglês
moderno:
em ge-thec
não é
difícil
descobrir to think:
em
nu,
now:
em Healfdenes,
no-es
final, o
genitivo –s
ainda usado
em
determinadas
situações;
em ic (aliás
igual ao
holandês
atual),
pode-se
desvendar o
pronome
pessoal da
primeira,
hoje
sem a
consoante
final e
com a
vogal alongada
em
ditongo – I;
eom traz à
memória am
(ic eom, I am); gumena é o genitivo
plural de
guma, “homem”,
facilmente aproximável do
latim homo
e do
atual
inglês woman
que,
historicamente, é o
correspondente
da
forma indo-européia
masculina;
hwaet
quase se
identifica
com what;
wit é o
dual de “nós”
(cfr. we) ; spraecon está
próximo do
alemão sprechen e
não
muito
longe do
atual
inglês
speech.
Do
antigo
báltico, temos
hoje
representantes no letão e no lituânio,
língua esta
particularmente
interessante ao indo-europeísta,
por
causa de
seu
aspecto
muito
arcaico,
exemplificando
em esti
(terceira
pessoa do
singular do
verbo “ser”)
paralelo ao
sânscrito
védico ásti e do
grego
homérico
esti.
O
ramo
eslavo,
cujo
protótipo é o
velho-eslavo, no
qual
São Cirilo e
São Metódio
traduziram os
Evangelhos,
datável do
século IX,
tripartiu-se
em
meridional,
oriental e
ocidental. Do
primeiro temos
hoje
representantes do búlgaro, no serbo-croata (da Iugoslávia) e no esloveno. No
segundo,
encontramos o
grande russo,
ou
simplesmente
russo,
que adquiriu
grande
importância
depois da
Segunda
Guerra; o
pequeno russo,
ruteno
ou
ucraniano e
o russo
branco,
língua da
Bielorrúsia. No
ocidental
encontramos o
tcheco, o
eslovaco,
muito
parecido, e o
polonês.
Com
seus
dialetos
lequitas, sorábico, eslovinco e o catchub,
talvez os
dois
últimos
emudecidos,
por
causa da
trágica
situação da
Polônia.
Do
ramo
albanês,
só
conhecido no
século XV,
destacam-se
hoje os
falares
guéguico, ao
norte, e
tosco, ao
sul,
língua da
Albânia e dos albaneses
habitantes de
dezenas de
paesi italianos, na Calábria, Apúlia, Abruzos e Sicília.
O armênio,
hoje espalhado
um
pouco
por
toda a
parte,
por
causa da perseguição
turca, é
falado,
com
relativa
unidade,
por
três
milhões de
pessoas,
que se
entendem,
apesar das
duas
línguas
literárias
em
que se
bipartiu.
Fizemos
hoje
longo e
fastidioso excurso,
para
mostrar
como as
línguas,
apesar do
tronco
comum, se
diferenciam e se multiplicam, dando
esse
resultado
aqui
resumido,
em
que
não quisemos,
quase,
falar
em
datas e
em
dialetos. E
isto,
em
muitos
casos, num
espaço
curto de
tempo.
A
tendência
natural das
línguas é
para se modificarem, o
que é uma
espécie de
mistério,
porque as
novas
gerações fazem
sempre
questão, põem o
maior
empenho
em
reproduzir a
língua
que
lhes é
ministrada. Se a
diversificação
não é
maior e se se
consegue
manter uma
língua
una
durante
um
lapso
maior de
tempo,
isto se deve a
fatores
extralingüísticos,
como a
escrita, a
unidade
nacional, a
escola e o
prestígio das
elites.
Faltando
esses
elementos,
entregues à
sua
própria
sorte, as
línguas se
modificam
muito e
rapidamente. É
ver,
por
exemplo, o
que aconteceu
ao
latim
vulgar,
fonte das
línguas
românicas, no
lapso de
tempo
entre o
século V e o
século IX,
em
que
desapareceram
ou entraram
em
crise os
elementos
frenadores da
evolução
lingüística.
Imaginemos
agora o
que terá
acontecido às
línguas da
América, faladas
por
tribos
esparsas e
carentes de
ação unificadora.
Aliás,
note-se,
entre
parênteses,
que
quando se
organizou politicamente o
Império
Inca, houve
nele uma
língua
comum, o
quíchua,
que
até
hoje é o
mais
falado dos
idiomas
pré-colombianos:
5.000.000 de
falantes.
Hoje há
línguas
ameríndias faladas
por uma
centena de
pessoas e
ás
vezes
até
por
menos,
como aconteceu
ao
fulniô, no
interior de
Pernambuco e Alagoas,
que,
por
fim,
quando o pôde
gramaticalizar
o
Padre Antônio
Barbosa,
já estava
reduzido, se
não
me trai a
memória, a
vinte e
seis
pessoas.
Imaginemos,
igualmente, o
que aconteceu
e acontece
com as
línguas da
Austrália e da África, distribuídas
por
centenas e
centenas de
tribos.
Em
todo
caso, as
línguas do
grupo
banto
são
muito
aparentadas
entre
si,
mas a
língua dos
hotentotes,
por
exemplo,
apresenta
um
tipo de
consoantes
implosivas,
chamadas
cliques,
que semelham
ao
som
que utilizamos
para
incitar
um
cavalo à
marcha.
Um
leigo (e
quase
todo o
mundo o é
em
relação a essa
língua)
não distingue
entre os
estalos de
língua:
porém, na
realidade,
eles
são
opositivos,
como se diz
em
Lingüística
Moderna,
isto é, servem
de
suporte a
diferenças de
significado,
como,
em
português, as
diferentes
consoantes
desta
série:
bala,
cala,
fala,
gala,
mala,
pala,
rala,
sala,
tala,
vala.
Não
obstante a
variedade de
línguas
sudanesas, guineanas, nigrilas, hotentotes, bosquímanas e banas,
um
grande
africanólogo. Homburger, no
seu
famoso
livro
Lês
langues africaines et
lês
peuples
que
les parlent (Payot, Paris, 1941), defende a
tese da
unidade
inicial dessas
muitas
línguas
negras: “Dans le dernier chapitre nous avons exposé les faits qui nous ont
amenée à voir dans les langues négro-africaines modernes des formes tardives de
l’egyptien ancien”. (Avant propos).
Para
ele,
pois, as variadas e
numerosas
línguas da
África
Negra
são
nada
mais
que
formas
atuais do
antigo
egípcio.
Ainda
quando
pequena é a
distância no
tempo
entre a
protolíngua e as derivadas, podem
ocorrer
diferenças
muito
sensíveis e
até profundas
no
resultado
histórico. O
latim aqua,
por
exemplo, está
representado
por
ova,
no engadinês, no friulês age, no
lombardo
uva,
no
francês
atual eau.
Esta
última
forma é a
mais
distante da
forma
originária, e
ninguém,
leigo no
assunto,
poderia
ver
aí uma
evolução
fonética.
Também
ninguém pode
desconfiar
que vinculu,
latino, viesse
a
dar,
por
evolução e
derivação,
brinquedo
em
português.
Tão
pouco seria
um
leigo
capaz de
encontrar
em
ontem,
português, a
continuação
histórica de
ad noctem. E
assim,
eu
poderia
multiplicar às
dúzias
exemplos
em
que o
resultado
final de uma
cadeia
evolutiva
desfigura
completamente
a
forma
originária. E
isto, nas
línguas
latinas,
que,
para o
estudo e
pesquisa,
são
privilegiadas,
porque temos
meios,
vários, de
reconstituir a
Ursprache, o
latim
vulgar, e de
acompanhar, a
partir do
século IX,
algumas transformações sofridas
pela
fonte vocabular.
Depois do
século XII,
então,
dispomos de
farta
documentação,
que
nos atestam a
evolução das
formas.
Assim, de
tenere, temos, ao
longo do
tempo,
tẽer,
teer,
ter,
cujo
resultado
atual está
paralelo ao
engadinês tignair e ao frinlês, tiñi.
Até
agora temos,
do
assunto,
como
preâmbulo,
bom
material
lingüístico,
atestado
direta
ou
indiretamente.
Cabe
ainda
lembrar
que,
atualmente, há
forte
tendência a
supor
que o
indo-europeu, o caucásio
com as
línguas
mediterrâneas, do lício ao
basco, o fino-urgiano e o
câmito-semita (hoje
considerado uma
família
única) têm
origem
comum,
em
data
muito
remota.
Vemos,
pois,
que
só
com os
dados
positivos,
manipulados
pelos
lingüistas,
temos várias
trilhas
conducentes a
um
resultado
unigenético.
Eu gostaria de
lembrar
ainda
que Meillet,
no
prefácio da
primeira
edição de
Les langues du monde (depois
recolhido
em
Linguistique historique et linguistique générale), observa
que todas as
línguas,
em
todos os
tempos, no
fundo têm a
mesma
textura:
são
palavras
arrumadas de
determinada
maneira.
Estamos,
pois, no
terreno dos
fatos,
apreendidos
com
maior
ou
menor
dificuldade,
pelos
lingüistas.
X
Pareceu-me
necessário
este
longo
preâmbulo,
para
mostrar
que a
ciência
lingüística
não pode
contrariar a
posição
que
eu
aqui
defenderei.
O
problema da
origem da
linguagem
articulada
não
pertence
nem pode
pertencer, à
ciência da
linguagem,
sobretudo nas
suas
feições
comparativas e diacrônicas –,
conforme se
diz
depois de
Saussurre,
para
designar a
perquirição
no
tempo,
passado,
sobretudo na
evolução
lingüistica.
Cabe à
Filosofia
indagar da
origem
mais
remota, do
ponto-de-partida, da
gênese do
fenômeno,
tão
universal e
hoje
tão
embaraçosamente
variado. E
não têm
faltado filósofos e filosofantes
que propuseram
solução
ou
soluções
para o
problema.
Na antigüidade, Epicuro entendeu
que o
homem chegou à
linguagem
articulada
sem o
sentir,
como os
animais gritam
ou vazeiam.
Depois, o
progresso
teria sido
feito
por
convenção.
Lucrécio situa-se
mais
ou
menos na
mesma
posição,
acrescentando
que o
homem se valeu
dos
órgãos da
fala
para
inventar a
linguagem,
levando
pela
necessidade,
de
acordo
com
seu
conceito (De
rerum
natura,
V, 1029): utilitas expressit nomina rerum.
De Bonald, De Maistre e Lamennais entendem
que a
língua é
dom
divino.
Outros,
partidários da
aquisição
lenta e
gradual,
supõem
que o
homem a
princípio
proferiu
exclamações e
imitou os
barulhos da
natureza. É a
origem
onomatopéica,
cheia de
adeptos.
Renan, romântico
que
era, sustentou
que a
aquisição da
linguagem
articulada foi
instantânea e
de
um
jato no
gênio de
cada
raça. (Apud
CoutinHO, 1962: 24).
Ora, o
conceito de
raça é
muito
relativo e, de
fato,
não há
qualquer
paralelismo
entre
língua e
raça:
povos de
raças
diferentes
falam a
mesma
língua e
um
grupo
humano de
semelhantes
caracteres
somáticos (ou
da
mesma
raça) falam
línguas
diversas.
Basta
lembrar o
português
falado (e
muito
bem
falado)
por
negros
mulatos
angolanos
ou
moçambicanos,
assim
como o
francês
falado
por
congoleses.
A
língua é
um
fato de
cultura e
nada tem
que
ver
com a
cor da
pele, o
ângulo facial,
o
formato do
nariz. Uma
criança
trazida da China
ou do Japão,
novinha,
para o Brasil e
posta num
meio
lingüístico
homogênio falará
como
qualquer
brasileiro.
A
teoria da
origem
onomatopéica,
que a
tanto a
seduziu,
não tem a
menor
base.
Primeiro, a
onomatopéia
já é
um
fato de
cultura,
tanto
assim
que varia de
língua
para
língua: na
linguagem
infantil,Cachorro
é auau no Brasil, béubéu, na Alemanha wauwau na Inglaterra
bow-wou, wanwan
em
japonês e
por
aí
fora. (Cf.
Baldinger, 1970: 30)
A
criança
ou o
adulto
não repete o
ruído
ou
som da
coisa
ou a
voz do
animal;
cria
uma
palavra
sugestiva e,
com
isso,
já se situou
no
campo da
língua,
que é o do
sinal
convencional,
motivado
ou imotivado.
No
caso
em
apreço,
motivado. O
pássaro
chamado joãotemneném
evidentemente
não se
chama a
si
mesmo
por
esse
vocábulo,
que,
criação
lingüística,
lhe interpreta
o
canto.
Além disso,
segundo
ensina o
grande
lingüista
americano Sapir,
que conhecia
muitas
línguas
ameríndias, o
número de
vozes
onomatopéicas nas
línguas
primitivas é
muito
menor do
que o das
nossas
línguas
modernas de
civilização.
Aliás,
também é dele
a
observação
arguta de
que a
onomatopéia
já é
língua,
já é
elaboração do
espírito,
já é
sinal e
não
mera e
simples
imitação.
(BALDINGER, 1953: 12-16)
Há
também a
teoria
gestual,
por
alguns
seguida: o
homem teria
começado
por se
comunicar gesticulando,
até
que
um
dia descobriu
que o
gesto
laríngeo, a
voz
articulada, é
um
gesto
mais
rico,
porque
unívoco.
Quando expus a
Gustavo Corção esta
teoria,
ele
respondeu-me
imediatamente,
com
um
argumento
decisivo e
definitivo: “Esse
homem se
esqueceu de
que há
noite no
mundo”.
É
claro
que os
gestos (sobretudo
para os italianos do
sul)
são
auxiliares da
comunicação e
acompanhantes
da
linguagem
articulada;
mas constituem
aquilo
que Sechehaye
chama
contexto,
que
são
elementos
extralingüísticos,
coadjuvantes
da
comunicação.
Opõe-se ao
texto,
que é o
elemento
estritamente
lingüístico.
Quero
agora deter-me
mais
longamente na
teoria de
um filósofo de
valor e de
excelente
orientação, F.
J. Thonnard,
que, no
meu
entender, errou seriamente
na
matéria,
exatamente
por
falta de
preparo
lingüístico. O
assunto é
filosófico,
mas exige
conhecimento
seguro do
fenômeno
língua,
de
seus
componentes e
de
seu
funcionamento.
Tratando do
assunto
em
perspectiva
estritamente
filosófica,
depois de
esclarecer,
em
nota,
que, de
fato, a
Bíblia
nos
ensina
que
Deus revelou a
linguagem
articulada ao
primeiro
homem,
Thonnard se inclina
pela
formação
gradual,
tomando
como
modelo, digamos, o
aprendizado da
língua
por
parte da
criança.
Demos-lhe a
palavra, numa
citação
longa:
Neste
assunto, a
Filosofia
só pode
formular uma
hipótese.
Supondo
que o
homem surgiu
na
terra dotado
apenas de
seu
instinto
bem aparelhado e de
bom
senso,
sem
instrumento
sensível
apropriado,
devemos
concluir
que
ele tem de
forjar
para
si
esse
instrumento
indispensável
ao
progresso de
seu
pensamento,
pelo
mesmo
método da
criança
atual;
mas
inventando,
pouco a
pouco, os
sinais
convencionais
que
ainda nenhuma
sociedade
lhe
poderia
fornecer. Parece
que se impõe a
escolha da
linguagem
articulada,
por
si
mesma,
por
causa de
suas
vantagens,
sem,
aliás,
ser de
uso
exclusivo;
porque os
outros
sinais
convencionais,
visuais e
táteis,
gestos,
toques etc.,
também se usam
como
linguagem
complementar.
Pode-se
imaginar a
evolução
como começando
também
pelo
emprego de
sinais
naturais,
em
particular
onomatopéias,
que
em
grande
número se
encontram nas raízes das
palavras de
nossas
línguas
modernas,
como,
por
exemplo,
em
francês,
buisser, crisser, ronfler, susurer, o coq, o cou-cou, o
glou-glou, o tic-tac etc. Eram
já
sinais
vocais,
que
ele ajeitava e
variava,
para torná-los adequados a
significar os
matizes do
pensamento,
transformando-os
em
sinais
arbitrários:
estabelecem-se espontaneamente
desde
que
dois
ou
vários
homens se
compreendem...
Aperfeiçoar-se
pelo
esforço de
todos a
linguagem
assim
inventada e
graças à
tradição,
que transmite
os
resultados
bem sucedidos;
mas ao
mesmo
tempo,
ela se
modifica,
como
tudo
que vive; e
quando as
raças e
grupos
sociais da
humanidade se
dividiram e diversificaram,
também
ela se cindiu
em
línguas
diferentes.
Aqui se
verifica
que a
linguagem se
comporta
como
um
fato
social;
apesar de
formada
por
sinais
arbitrários,
ela
não evolui ao
acaso,
mas, ao
contrário,
seguindo
leis
que a
ciência
determina: há, e estas têm,
por
exemplo,
tendência a se
abreviarem: sacramentum torna-se serment, a cinématographie
torna-se
cinema,
ou
cine
etc.;
leis
morfológicas,
concernentes
às
regras
gramaticais;
por
exemplo, caem
em desuso as
declinações, o
que
torna
mais
rígida a
ordem das
palavras e
multiplica as
partículas de
ligação; –
leis
semânticas,
relativas ao
sentido das
palavras:
por
exemplo, o
sentido vai do
concreto ao
abstrato, da
parte ao
todo etc.
Tais
leis,
aliás, se
explicam
em
conformidade
com os
outros
fatores
sociológicos de
evolução,
como o
meio, o
tempo, a
raça.
Assim, as
línguas
universais
criadas
peça
por
peça,
como o
esperanto, o
volapuque e o
ido
sempre
serão de
uso
secundário; se
elas fossem
adotadas
pelos
povos,
diversificar-se-iam,
como a
primeira
língua da
humanidade.
Apesar de
todas as
diversidades,
todas as
línguas
humanas têm
um
fundo
comum,
constituído
por
certo
número de
raízes
semelhantes.
Mas,
sobretudo o
que
por
toda
parte é
idêntico
é o
próprio
pensamento,
são as
operações
intelectuais
significadas e sintetizadas
em
sistemas de
verdades
científicas:
em
todos os
lugares e
sempre,
sem
grande
dificuldade,
os
homens de
todas as
raças
chegam a compreender-se e a
comunicar, uns aos
outros,
seu
patrimônio
intelectual,
estabelecendo uma
equivalência
entre
suas
línguas. A
única
hipótese
explicativa
deste
fato é a
unidade
específica
da
humanidade,
estando
ligada a
diversidade
das
línguas às
diferenças
individuais,
socializadas pelas
raças e as
nações. (Thonnard,
1950: 782-83)
Esta
longa
citação foi de
propósito,
para
tentar
não
trair o
pensamento do
autor,
que é de
primeira
categoria. O
último
parágrafo da
citação,
relativo à
unidade
básica de
todas as
línguas do
monogenismo da
espécie
humana e da
universalidade do
pensamento e
de
seus
processos está
inteiramente
certo. O
único
senão é
considerar a “raça”
como
fator de
câmbio
lingüístico,
coisa
que
já vimos,
antes,
não
ter
fundamento,
porque
não há
qualquer
paralelismo
entre
tipo
racial e
tipo
lingüístico,
mesmo
atenuado,
como faz o
autor,
pela
dimensão
socializadora. Repetimos: as
línguas
são
fatos
culturais e independem,
absolutamente,
de
fatores
raciais:
qualquer
indivíduo, de
qualquer
raça, pode
falar
perfeitamente
qualquer
língua.
Thonnard faz uma
hipótese
inaceitável,
com
vários
desdobramentos.
Assim, de
começo
ele estabelece
um
paralelismo
entre a
invenção da
linguagem
articulada e o
aprendizado da
língua por
parte da
criança:
Nous devons conclure qu’il doit se forger
cet instrument indispensable au progrès de as pensée,
par la même
méthode
que l’enfant
actuel;
mais inventant
peu à peu les signes conventionnels qu’aucune société ne pouvait encore
lui
fornir.
Ora, vai nisso
um
indiscutível
engano. As
duas
situações
são
completamente
diversas. A
criança
encontra
um
sistema
lingüístico
já
todo
feito,
que
ela vai
assimilar aos
poucos. Chego
a
pensar
que o balbucio
dos recém-nascidos é
algo
diferente,
segundo as
línguas
que
eles estão
ouvido:
talvez
um
bebê
alemão balbucie
diferente de
um
bebê
brasileiro.
Depois, a
criança vai
associando
determinados
vocábulos a
tais
ou a
tais
objetos:
começa a
compreender,
muito
elementarmente,
a
língua
que se
lhe está
fornecendo. Nessa
altura
ela
muita
vez
inventa
palavras,
monossilábicas
ou
dissilábicas, imitativas
ou
não,
para se
fazer compreendida.
Mas
já tem
vaga e
instintiva
noção do
que chamamos
signo,
isto é,
relação
entre
significante e
significado.
Daí
por
diante,
ela vai
tateando, à
procura da
aquisição
ativa do
complexo
sistema
que ouve, seja
nas
conversas a
ela dirigidas,
seja nas
conversas de
terceiros.
Mais:
ela aprende e
compreende a
língua às
vezes
muito
antes de
começar a
falar (todos
já observamos
isto).
Entre
três e
quatro
anos,
ela
já se
assenhoreou do
sistema,
para
expressar
seu
mundo
infantil e o
ambiente
que a
cerca:
já
fala de
aviões,
carros,
televisores,
cavalos,
charretes etc.
O
essencial
aí é
notar
que a
criança vai
receber e de
fato recebe
um
sistema
lingüístico,
que
lhe
vão fornecendo
os
que o rodeiam:
crianças
mais velhas,
adolescentes,
pais,
tio e
outros
adultos.
Todo o
seu
esforço é,
pois, de
interpretação
e de
imitação,
laborioso,
penoso,
mas coroado de
sucesso.
Não
era esta –
nem podia
sê-lo – a
situação do
primeiro
casal,
que
tinha o
que
assimilar e o
que
imitar.
Mas
também
não
poderia
criar uma
língua,
como vamos
tentar
explicar.
X
Depois de
Saussure, ficou
clássica na
Lingüística
Moderna a
dicotomia “língua”
e “fala”
– langue e parole.
São os
dois
aspectos
fundamentais
da
atividade e da
realidade
lingüística. A “língua”
é
social; a “fala”
é
individual.
A langue é
um
sistema,
isto é,
um
todo,
extremamente
complexo e
fechado. Podemos,
para
facilidade,
desdobrar
esse
sistema
em
subsistemas:
fonológico,
morfológico,
sintático,
semântico.
Considerando o
primeiro, observaremos
que o
material
sonoro de uma
língua é
coerente e
interdependente.
As dezoito
vogais
mais
comuns da
língua
portuguesa têm
um
mesmo
tipo
geral de
articulação,
de
intensidade,
de musicalidade, de
modulação.
Quando falamos
uma
ou
mais
línguas
estrangeiras, tendemos a
levar
para o
novo
idioma as
características
do
nosso,
nativo: é o
sotaque. A
música, o
ritmo, o
desempenho da
frase
também é
diferente, e
isto é o
que
mais
nos
custa
apreender, se é
que chegamos a
fazê-lo. Exemplifico
com o
subsistema
vocálico
inglês
em
relação ao
português.
Sobretudo no
que diz
respeito aos
tênues
matizes das
vogais
chamadas
neutras. E
que ocorrem
com
extrema
freqüência. A
língua, na
sua
feição
culta (pelo
menos)
não tem /a/
puro,
mas,
sim,
velarizado
ou
palatalizado,
quando
tônico, e
indefinível
quando
neutro. A
música,
tonalidade e
cadência da
frase
são
completamente
diversas das nossas.
Com o
francês se
passa a
mesma
coisa, no
que diz às
nasais,
diferentes uma
das outras e todas
diferentes das
portuguesas. O
alemão (neste
ponto,
como o
francês) tem
vogais
compósitas, palato-velares, e tem
um
forte
acento de
intensidade
inicial, de
palavra, de
frase e de
período,
que é
quase
impossível
imitar,
mas
que
qualquer
alemãozinho de
cinco
anos sabe
perfeitamente
fazer. E
por
aí
afora.
O
mesmo se diga
do
complexo
consonântico,
que
forma
um
todo
coerente,
mas
que é
diverso
em
cada
língua.
Assim,
por
exemplo, os
alemães têm as
oclusivas aspiradas,
coisa
que
não acontece
no
português
ou no
espanhol,
por
exemplo. O
holandês tem uma
aspiração
glotal
sonora,
que é
praticamente
impossível
para
nós (e
qualquer
estrangeiro)
realizar. O
árabe tem íctus
intervocálico,
muito
característico e
que se opõe
frontalmente
ao
nosso
subsistema,
que funde as
vogais átonas
finais na
inicial do
vocábulo
seguinte,
produzindo
ditongo,
tritongo
ou
crase: “nesta
idade”;
Foi
em
março,
ao
final das
chuvas...”, “ainda
agora”
–
que soam
“nestaydade”, “marçaw
findar”, “aindagora”.
O
subsistema
morfológico, o
mais
fácil de
perceber, pode
chegar a
ter uma
enorme
complexidade. O
nosso é
bastante
complicado na
ordenação dos
constituintes
imediatos dos
vocábulos, tem
grande
variedade de
prefixos e
sufixos (com
matizes
semânticos
muito
variados), tem
um
plural
sigmático (que,
nos
casos
concretos,
oferece
variantes):
mesa-mesas, fácil-fáceis, barril-barris, doutor-doutores, lápis-lápis.
Formam-se
palavras
novas,
tiradas das
virtualidades
da
língua,
por
derivação
(sufixal, prefixal, parassintética e
regressiva),
por
mudança de
classe e
por
composição. Os
verbos,
além de
pertencerem a
três
conjugações
(caracterizadas
pelo
tema),
apresentam uma
abundância de
formas,
que totalizam
sessenta e
cinco,
fora os
tempos
compostos e as
chamadas
perifrásticas
ou
locuções
verbais, estas
quase
sempre
como
recurso de
aspecto,
que a
língua
não tem
como
categoria
gramatical
autônoma.
Somem-se a
isto os
chamados
verbos
irregulares,
onde
brilha o
verbo
ir,
com
três raízes
diferentes.
A
sintaxe portuguesa
marca-se
pela
variedade e
pela
liberdade,
sobretudo
quanto à
ordem das
palavras na
frase. A
concordância,
em
vários
casos,
apresenta
variantes
aceitas e a
regência
verbal e
nominal (como,
em
geral,
em todas as
línguas) é
muito
complexa e
apresenta
não
poucos
casos de
sincretismo.
Está
aí
dada,
descritivamente, uma
primeira
idéia de
sistema (ou
esquema,
ou
código,
como
hoje preferem
dizer os
partidários de
certa
corrente
lingüística,
ainda
muito
prestigiosa no
Brasil).
Esse
sistema,
que é o
arcabouço da
língua,
sua
estrutura,
sua
montagem,
existe
em
estado
virtual na
memória de
todos os
membros de uma
comunidade
lingüística e constitui o
que se
poderia
chamar a
gramática
interior.
Todas as
suas inúmeras
peças se
equilibram e se combinam, valendo-se umas às outras, justificando-se umas às
outras, num
todo
homogêneo,
coerente e
fechado,
que
só se rompe
para
dar nascimento a
outra
língua.
Um
exemplo:
teoricamente e (na
realidade)
instintivamente
e
por
força de
hábito
maquinal,
para se
compreender uma
forma
verbal
como fiz,
é
necessário
estabelecer uma
porção de
oposições
lingüísticas,
como,
por
exemplo:
fiz
não é
faço,
não é
farei,
não é
fazemos,
não é
fizemos,
não é
faremos. E
assim
por
diante.
Isto é a
travação
interna do
sistema,
que,
além disso, se
manifesta
nos
dois
eixos
sintagmático e paradigmático, de
que
não vou
tratar
para
não
importunar
mais do
que o venho
fazendo.
Hoje,
como disse,
muitos dizem
código,
em
vez de
sistema,
por
dar
nova (e
mais
completa)
explicação do
circuito
lingüístico,
binário
até Saussure.
A
fala (ou
discurso,
ou
texto,
como tem
traduzido a parole saussuriana) é a
execução
individual da
língua, do
sistema.
Cada
pessoa
que se
exprime,
oralmente
ou
por
escrito, faz
sucessivas
escolhas no
grande
armazém de
possibilidades,
que é o
sistema,
transformando o
que é
virtual
em
atual,
concreto.
Escolhe
fonemas,
formas,
palavras,
combinações de
palavras
ou
frases, e vai
exteriorizando
suas
vivências.
Aí esbarramos
com
um
curioso
paradoxo. A
língua é
importantíssimo
fato
social e
só existe
em
estado
latente, na
memória dos
membros da
mesma
comunidade.
Só temos
contato
com a
fala
dos
indivíduos.
Quem
me ouve neste
momento está
acompanhando
meus
sucessivos
atos de
escolha no
material
lingüístico
pré-existente, e interpreta-o.
Assim se
forma o
circuito:
um
emissor se
exterioriza,
dentro de
um
código (ou
sistema);
sua
mensagem (que
é o
conteúdo) é
transmitida
através da
atmosfera e é
captada
pelo
receptor (que
tem na
memória o
mesmo
sistema) e
descodifica-a,
ou interpreta,
ou entende.
Logo,
para
haver a
comunicação, o
circuito
lingüístico, é
necessário
que os
emissores e
receptores (ou
falantes e
escreventes;
ouvintes e
leitores)
tenham na
cabeça o
mesmo
código, o
mesmo
sistema.
Se
eu disser a
um
estrangeiro (que
não
saiba
português): – “Você
é
um
canalha”,
ele ficará na
mesma, fará
um
ar
indagatório e
dará a
perceber,
pela
fisionomia
ou
por
um
gesto,
que
não entendeu,
isto é,
não captou,
decifrou, descodificou
nada.
Para
que
um
ouvinte tome
conhecimento
da
mais
simples
frase, é
necessário
que
ele tenha,
em
estado
virtual, na
memória, o
mesmo
sistema.
Para se
entender a
mais
simples
frase – “está
chovendo”, “il pleut”, “it rains”
ou “es
regnet”, é
preciso
que o
ouvinte
conheça o
código
português,
ou
francês,
ou o
inglês,
ou o
alemão. Do
contrário,
não
descodifica,
não
interpreta.
Agora,
examine-se a
hipótese de
duas
pessoas,
que
não têm na
cabeça
nenhum
sistema,
conversarem.
Ou, se
quiserem, forme
um no
outro,
peça
por
peça,
desde a
primeira,
um
código. É
impossível a
intelecção.
Noutros
termos: o
sistema
que
possibilita e
fala,
preexiste a esta,
senão
ela
nunca poderá
realizar-se. O
caso da
hipótese é
mais
absurdo do
que entenderem
um chinês e
um
brasileiro
que
não conheçam,
cada
um, o
código do
ouvinte-falante e falante-ouvinte.
Mais
absurdo,
porque,
em
todo
caso,
cada
um dos
dois
interlocutores
incompreensíveis
já têm na
cabeça
um
código,
apenas
não
conhecido dos
dois. Poderão entender-se,
por
gestos e
indicações
digitais,
coisas
simplicíssimas,
elementares,
curiais e,
ainda
assim, irão,
sem o quererem
(melhor,
sem disso
tomarem
consciência),
acompanhando os
gestos
com as
respectivas
palavras nas
respectivas
línguas.
Os
dois
supostos
interlocutores
que
não têm na
cabeça
qualquer
código
jamais poderão
conversar,
ainda
que de
coisas
rudimentares.
É
impensável a
formação,
complexíssima, do
código a
partir da
mútua
estaca
zero.
Portanto,
é-nos
forçoso
concluir
que os
dois
primeiros
falantes
receberam (de
fato,
não de
direito)
o
código
feito e daí
por
diante
começaram a usá-lo.
Com o
tempo e na
variedade do
espaço,
seus
descendentes
foram-no alterando e
aí surgiram os
dialetos e
novas
línguas (a
partir da
ruptura do
sistema),
até se
chegar às
milhares de
hoje,
espalhadas
pelo
mundo
inteiro.
Ignoro se
outro
lingüista
já fez
exata
análise
para
chegar,
assim, à
mesma
conclusão.
Mas, no
caso
afirmativo,
tanto
melhor
para
mim: estarei
bem
acompanhado.
O
que
não posso
aceitar (e estou
certo de
que
ninguém
que considere
com
realismo o
problema), o
que
não posso
aceitar é a
teoria da
formação
gradual da
língua
ou de
sua
origem
imitativa,
onomatopaica
ou gestual.
Nada disso
explica. É uma
petição de
princípio.
O
mal é
que os
lingüistas
geralmente
não põem
este
problema,
porque
não está ao
alcance da
documentação e
da
pesquisa da
ciência
positiva,
enquanto os
filósofos
que indagam da
origem da
linguagem
articulada e de
sua
formação
geralmente
não conhecem,
na
sua
estrutura
íntima, o
fenômeno
lingüístico e
não analisam o
circuito,
coisa,
aliás,
muito
recente, a
partir de Roman Jakobson,
se estou
bem informado.
Não sei se
consegui fazer-me
entendido, num
assunto
meio
abstrato
como
este e
que exige
vários
pressupostos,
que
não têm
obrigação de
possuir os enfadados
ouvintes.
Aproveito
para
lembrar
que
um dos
dramas da
cultura é a,
talvez
inevitável,
incomunicabilidade.
Acontece
que,
por
vezes,
homens
sábios chegam
a
conclusões
idênticas seguindo
caminhos
diferentes,
ou reclamam de
certas
carências,
ignorando uns o
trabalho dos
outros. É o
que acontece,
por
exemplo,
com Ferdinand
de Saussure, o
pai da
Lingüística
atual, e
com o
grande
filósofo Maritain; reclamam
pela
constituição
de uma
nova
ciência,
sem
que os
dois, defasados,
aliás, no
tempo,
pudessem
saber da
coincidência.
Saussure,
para
situar
bem a
Lingüística,
acha
que seria
necessário enquadra-la
numa
disciplina
mais
geral, a
que
chama
Semasiologia,
que tivesse
como
escopo o
estudo da
importância do
sinal
na
vida das
sociedades, e
Maritain faz o
mesmo reclamo,
bastante
tempo
depois, no
capítulo
“Signe et symbole”, do
seu
Quatre essais sur l’esprit dans as codition charnelle.
Há
cerca de 30
anos
aqui esteve
Eugenio Coseriu (talvez
o
maior
lingüista de
hoje) e
fez-nos duas
conferências
sobre as
idéias
lingüistas de
Platão e Aristóteles, muitas delas
correspondentes
e coincidentes
com as nossas
nações de
hoje. Na
ocasião
até escrevi
um
artigo (nesse
tempo
eu
era
colaborador
regular de
O
Jornal)
exatamente
com o
título “Um
drama da
cultura”.
Quanta
coisa
nova
ou novíssima
aparece
hoje,
que
já foi
dita e
arrazoadas
pelos
antigos!
Certas
coisas de
Psicologia de
Freud estão
em
Santo
Agostinho,
assim
como no
seu De
Magistro está,
com todas as
letras e
todos os
argumentos, a
moderna
teoria
pedagógica, de
que o
principal
educador é o
próprio
educando e de
que
nada se
aprende papagueando
ou repetindo o
professor,
mas meditando
e chegando,
pela
própria
inteligência, à
conclusão,
certa, a
ele
comunicada
ab
extrínseco.
Este excurso
final
talvez seja
pretexto
para
eu
me
desculpar de
lhes
ter prendido a
atenção
com
coisas
estranhas e
talvez áridas.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BALDINGER,
Kurt.
Teoria
Semántica. Madrid, 1970.
––––––. Le langage.
Trad. de S. M. Guillement. Paris: Payot, 1953.
COUTINHO, Ismael de
Lima Coutinho.
Pontos
de
Gramática
Histórica.
5ª ed.
Rio de
Janeiro:
Acadêmica,
1962.
Thonnard,
F. J.
Précis de Philosophie.
Paris, Tournai, Rome: Société de Saint Jean l’Evangeliste, Desclée & Cie., 1950.
Nota do
autor: “De
fato,
ensina-nos a
Bíblia
que
Deus
revelou a
linguagem
articulada ao
primeiro
homem”.
Nota do
autor:
“Cf. Ribot, Evolution des idées générales, p, 81